Curta da Semana: “The Disappearance of Willie Bingham” – quando a justiça é privatizada, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

A atual agenda internacional das privatizações toma conta da grande mídia e do discurso de políticos e economistas. Preocupado com o alcance e consequências dessa panaceia que toma da opinião pública, o diretor australiano Matt Richards imaginou um futuro próximo no qual as privatizações alcançariam o sistemas judiciário, prisional e o próprio Estado de Direito. Resultado: o Direito e a Justiça viram commodities. E os limites entre a civilização e a barbárie começam a desaparecer. Combinando sci-fi, horror e humor negro, o curta “The Disappearance of Willie Bingham” (2015) mostra num futuro próximo na Austrália a “Amputação Progressiva”, nova forma de punição criada por um sistema judiciário privatizado que substitui a pena de morte, no qual a concessionária busca formas socialmente “sustentáveis” de punição: traga lucro para a empresa gestora, sirva de exemplos para “escolas problemáticas” e satisfaça o impulso de vingança das vítimas.

A constituição do Estado de Direito e de uma esfera pública na qual cidadãos se comportam como corpo público sob as regras de uma comunidade de interesses públicos que se sobrepõem aos privados (pessoais, de classe, corporação etc.) foi um dois principais passos civilizatórios para a sociabilidade.

E ao lado disso, também o papel civilizatório da ética judaico-cristã no ordenamento jurídico do Estado moderno democrático e dos princípios humanistas do Direito – no lugar do “olho por olho, dente por dente” da antiga Lei do Talião, os princípios da dignidade humana: empatia, compaixão, amor, justiça, perdão etc.

Sem tudo isso, a humanidade correria o risco de retroceder à barbárie, tornando a pacificação social um objetivo impossível de ser alcançado.

Porém, na atualidade o que vem se imponto é a agenda das privatizações na defesa da necessidade do chamado Estado mínimo, colocando em risco a existência de uma esfera pública de interesses – o interesse público administrado por interesses privados (sejam corporativos, ONGS, fundações etc.) que se travestem como públicos através de uma imagem construída pela mídia, publicidade e relações públicas.

 

As consequências do avanço dos interesses privados sobre a comunidade pública de interesses já foi tema de diversos filmes hipo-utópicos (subgênero sci fi no qual o futuro é figurado a partir da projeção das mazelas do presente): Robocop, Distrito 9, Metropia, a série brasileira 3%Black Mirror etc.

Mas nada como o curta australiano The Disappearance of Willie Bingham (2015) do cineasta Matt Richards, com uma incomoda combinação de horror com sátira política – misteriosamente fantástico, tragicômico, mas profundamente enraizado nas tendências da realidade atual.

Inspirado num pequeno conto chamado The Wilbur Bledsoe Amputations de Michael Fawcett, Richards mostra a ruína gradual de muitas liberdades civis sob a aparência de segurança e proteção num mundo onde as pessoas abandonaram o senso de compaixão e justiça. Tudo sob o beneplácito da privatização do próprio sistema judiciário que abre as portas para a barbárie – afinal, o cidadão, agora transformado em cliente, tem sempre razão.

O Curta

Em um futuro próximo, o sistema judiciário e prisional australianos foram privatizados. Em consequência, os limites entre o Direito e a vingança foram dispensados ao ponto que, aqueles que se sentirem lesados, feridos ou que perderam de forma criminoso um membro da família, poderão ser tão cruéis quanto o próprio criminoso.

 

Willie Bingham (Kevin Dee) encontra-se condenado por assassinato e preso no sistema prisional que oferece uma radical alternativa em substituição à pena de morte. Chama-se “Amputação Progressiva” no qual o marido da esposa assassinada instrui os médicos a sequência das partes do corpo que serão cirurgicamente amputadas no condenado como penitência física do seu crime.

Um supervisor (interpretado por Gregory Fryer) é nomeado para garantir que Willie permaneça vivo e saudável por toda a sua trajetória do “tratamento”. 

Até porque além das partes amputadas e órgãos do condenada serem comercializados pela empresa que gerencia o sistema, Willie também é levado para escolas com crianças problemáticas para ser exibido como um exemplo que desmotive outros crimes no futuro – o que, como mostrado no curta, parece não ter o menor impacto sobre jovens de escolas públicas caindo aos pedaços.

Enquanto os cirurgiões amputam cada parte do corpo de Willie, o marido da esposa assassinada observa através de parede envidraçada para não só se certificar da execução da amputação, mas também para sentir o prazer da vingança.

 

Willie aos poucos torna-se uma sombra silenciosa de si mesmo, na medida em que cada parte dos membros é retirada, para depois partir para órgãos e até partes do próprio rosto. Até tornar-se uma massa de carne desfigurada, ainda viva, em silêncio esperando o final de cada mês no qual será levado num tour em escolas para ser exibido como caso exemplar.

Enquanto isso, acompanhamos paralelo a própria decadência do marido da vítima que comanda a “amputação progressiva”: a cada sessão, crescem as olheiras, os olhos ficam mais fundos, a barba cresce e o abatimento toma o semblante – as repetidas sessões de vingança envenenam o psiquismo.

Hipo-utopia e a Justiça socialmente “sustentável”

A via crucis de Willie Bingham nos faz não apenas refletir sobre os limites dos dispositivos de segurança do Estado que supostamente são usados para nos proteger. Mas também como a racionalmente cínica lógica gerencial corporativa (o futuro que nos espera com atual agenda selvagem de privatizações do Estado e dos interesses públicos) pode invadir a área que tenta garantir os limites entre a sociabilidade e a barbárie: o Estado de Direito.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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