Cultura

Duas fotos: um romance que atravessa os afetos durante a Lava Jato, por Rogerio Dultra

Duas fotos: um romance que atravessa os afetos durante a tempestade política do país

por Rogerio Dultra dos Santos

O Brasil se ressente, nas últimas duas décadas, pela ausência de uma produção cultural voltada para o exame crítico de suas mazelas políticas contemporâneas. Tanto mais na literatura romanesca.

Os nossos clássicos romances politicos, já consolidados, aparentemente não deixaram herdeiros. As meninas, Capitães de areia, Memórias do cárcere, Agosto, são apenas alguns exemplos que parecem hoje peças de museu, a serem visitados para avivar a memória sobre as violências que nos constituíram como povo.

A mídia de massas no país, de forma intencional ou não, tem dado às costas para uma literatura que desnude, analise e explique os caminhos que o país singrou recentemente, especialmente nas águas tormentosas do passado recente. Até porque está implicada diretamente na propagação da barbárie. Mas, ao invés de terem desaparecido, esses livros e autores foram e são, de alguma forma, silenciados e se tornam cada vez mais inalcançáveis para o grande público.

O certo é que parece que nos sobraram apenas os textos acadêmicos e do jornalismo de esquerda. Na academia e na imprensa alternativa temos um conjunto de livros e pesquisas que documentam, avaliam e criticam as estranhas manifestações de 2013 e sua captura pelas pautas da direita; a farsa do impeachment e o golpe na democracia em 2016; o governo fantoche de Temer; a ascensão e queda da famigerada “Operação Lava-jato”; a prisão ilegal e inconstitucional de Lula; a criação fraudulenta do herói Sérgio Moro pela mídia burguesa e sua demolição pela vaza-jato; a eleição de Bolsonaro e o negacionismo assassino do governo militar com vestes civis. É muita reviravolta.

Mais e a ficção política, onde está? Nesse mar revolto das guerras híbridas, dos levantes populares de perfil reacionário e dos golpes à democracia aparece um novo espécime que merece leitura e divulgação. É o livro ficcional mais recente de Marcelo Semer, Duas fotos: um romance do Brasil da lava-jato (Amanuense, 2024). Ele nos faz perceber que aquilo que aconteceu praticamente “anteontem” ainda precisa de testemunho, carece de avaliação cuidadosa e, principalmente, de interpretação compreensiva que nos relembre, que nos guie nas ondas de discursos que se sobrepôem constantemente a nos querer afogar e confundir. E sem a linguagem às vezes cifrada do texto acadêmico, mas com a clareza da boa narrativa. Tanto melhor se esses acontecimentos forem apresentados numa trama de ação que implora para virar filme ou minissérie.

O cenário é São Paulo. As arcadas da Faculdade de Direito da USP, a Sanfran, é o elemento geopolítico que articula crítica, establishment e resistência numa trama de personagens arquetípicos do Brasil distópico contemporâneo: um professor de direito progressista, um tanto desiludido dos caminhos da política que recebe uma lufada de vento fresco ao ver se aproximar uma ex-aluna, agora jornalista, que cai de paraquedas na cobertura da operação lava-jato. Esta, por sua vez, tentando compreender os rumos e significados da política recente, acaba por casar com um promotor de justiça de perfil um tanto conservador e que se vê enredado, aos poucos, ao novo desafio da instituição, criado pelos procuradores de Curitiba, de salvar o país da corrupção.

Entre certezas e dúvidas morais e políticas, esse triângulo amoroso explosivo caminha pelos acontecimentos num arco temporal que retrata com precisão o momento que virou o país de cabeça pra baixo. A mescla dos personagens ficcionais aos fatos históricos e sua interação com figuras reais da política faz lembrar o filme Forrest Gump, com a diferença de que aqui os personagens têm consciência de seu papel histórico e agem conforme seus interesses vão ficando mais definidos.

O texto, ao focar numa trama pessoal que se desenrola num quadro de mudança conjuntural constante, mistura afetos e reflexão política. Apresenta, com muita fidedignidade e através de seus protagonistas, posicionamentos às vezes não tão opostos, mas que se modificam seguindo as circunstâncias, às vezes em direção à radicalização.

Duas fotos, é um livro escrito por alguém que se revela um especialista nos meandros do direito e da política (Marcelo Semer é juiz de carreira, hoje desembargador, vinculado à Associação de Juízes pela Democracia) e que apresenta de forma quase didática o caminho que nos legou instabilidade institucional, extremismo e, paradoxalmente, capacidade de superação. É um porto seguro para que a gente se proteja desse temporal de irracionalidades que assolou e ainda assola o país.

Rogerio Dultra dos Santos – Professor de História Constitucional Brasileira na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense

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