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O Diabo Dá Uma Segunda Chance?

Ter uma segunda chance para voltar no tempo e redimir-se das decisões erradas na vida. Uma velha estória sempre contada pelos filmes hollywoodianos sob um viés moralista. Mas no filme argentino Querida, Voy a Comprar Cigarrillos y Vuelvo” (2011) o tema vai mais além ao acrescentar o elemento do Fantástico: um homem medíocre e fracassado faz um pacto faustiano com o demônio na tentativa de, através do conhecimento do futuro, manipular o Tempo, o Destino e enganar o próprio demônio. Através de uma narrativa irônica e de humor cáustico, cria-se um clima ambíguo onde é impossível julgar o anti-herói.

 

Certa vez ouvi de alguém: “Passamos metade da vida tentando corrigir os erros que cometemos na outra metade.” É possível termos uma segunda chance depois de tomarmos consciência das decisões erradas do passado? E se tivermos essa chance, teremos a sabedoria e o livre-arbítrio para não cair nos mesmos erros?

Uma estória contada seguidas vezes pelo mainstream hollywoodiano, sempre pelo otimista viés moralista e religioso que nunca coloca em questão um aspecto: o homem realmente quer mudar? Ou será que a mediocridade e o obscurantismo a qual a vida nos reserva pode impedir essa mudança?

A dupla de diretores argentinos Mariano Cohn e Gastón Duprat vai mais além ao tratar um tema tão recorrente acrescentando o elemento do Fantástico: a presença do Mal através da figura de uma espécie de demônio e a vitimização humana diante de uma realidade que o condena à mediocridade. De um lado um antigo mercador (Eusebio Poncela) que, no século III no Marrocos, é atingido duas vezes seguida por um raio tornando-se um ser imortal que vaga pelo mundo propondo tratos e fazendo trapaças temporais. Do outro, Ernesto (Emilio Disi), um sessentão que passa os dias queixando-se das oportunidades que teve e fracassou, casado com uma mulher que a todo momento joga na cara o seu fracasso.

Desencantado, vê os dias monótonos e arrastados passarem em uma provinciana cidade no interior da Argentina (Olavarría) até que encontra mercador/demônio em um bar. Enquanto a esposa de Ernesto vai ao banheiro, o mercador questiona se ele é feliz e faz um estranho acordo: um milhão de dólares em troca de Ernesto retornar no tempo e reviver dez anos da sua vida. Enquanto isso teriam se passado apenas cinco minutos no tempo presente, tempo necessário para Ernesto sair e comprar um cigarro, álibi usado para se ausentar enquanto sua esposa o aguarda.

Em uma narrativa hollywoodiana seria a oportunidade do protagonista se redimir, mas Cohn e Duprat mostrarão um anti-herói que tentará de tudo para tirar vantagem, mentir e fugir para ganhar dinheiro fácil.

Tendo conhecimento do futuro, Ernesto tentará ganhar dinheiro em tentativas desajeitas como, por exemplo, implantar um reality show na emissora de TV de Olavarría quando ainda o gênero não era uma febre mundial. As tentativas mais hilárias são quando tenta alertar a mídia argentina dos atentados ao WTC em 11 de setembro de 2001. Ninguém o leva sério até que, depois dos atentados, a CIA bate à porta levando-o preso para os cárceres de Guantânamo onde é submetido a torturas: por que ele sabia dos atentados?

Sabendo do futuro sucesso da música “Imagine”, tem a infeliz ideia de lançá-la no mercado fonográfico argentino antes de John Lennon. Resultado: sofre um pesado processo por plágio do ex-beatle. Ernesto tenta fugir do acordo com o mercador se matando, mas, como sempre, nada dá certo. Irritado, o mercador decide que, dessa vez, ele escolherá para qual período Ernesto voltará no tempo, submetendo-o, a partir daí, a uma situação de mal-estar que justificará todas as oportunidades perdidas no futuro.

Baseado no conto de Alberto Laiseca, o próprio autor narra em off e comenta para a câmera de forma irônica e, muitas vezes, brutal, as desventuras do protagonista.

A crítica especializada descreve o filme como um “sombrio retrato dos argentinos”. Mas o olhar de Cohn e Duprat é muito mais atemporal: tangencia temas metafísicos como a irreversibilidade do tempo versus livre-arbítrio e a descrição da condição humana a partir de dois mitos: o de Sísifo e o de Fausto. O que faz o filme adquirir um humor ácido e cínico, desesperançado e niilista.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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