Cultura

O Larzac e a ecologia (2), por Walnice Nogueira Galvão

O Larzac e a ecologia (2)

por Walnice Nogueira Galvão

No Larzac, grandes discussões envolveram a decisão de reconstruir um aprisco de ovelhas que tinha desmoronado. Solicitaram permissão à prefeitura, que negou. Discutiram então a diferença entre legalidade e legitimidade: era ilegal mas não era ilegítimo, as ovelhas não podiam ficar ao relento e o inverno era rigoroso, morreriam todas. Com a ajuda de toda aquela gente, construíram um enorme edifício, bem feito, armado em blocos de pedra, tão bonito que até parece uma igreja. E lá abrigaram seus animais.

Também vieram a criar um jornal, Lo Larzac, porque perceberam a necessidade de divulgar suas próprias notícias, e não as calúnias que a mídia dos patrões lhes atribuía.

Mas a repressão foi recrudescendo e uma das casas chegou a ser bombardeada com uma bomba de plástico, que a demoliu em parte mas felizmente não matou ninguém – não que eles se importassem. Era a casa da maior família de Larzac, com 7 crianças pequenas que escaparam com ferimentos leves, afora o casal e um pastor que hospedavam. A investigação não levou a lugar algum.

Depois disso, sem conseguir informações na prefeitura sobre escrituras e posse de terrenos, resolveram invadi-la durante a noite e retirar, e se fosse preciso destruir, os papeis dos grileiros. Conseguiram o que queriam, mas foram presos, julgados e condenados. A esposa de um dos líderes recebeu 15 dias de prisão mas não seu marido, que ficou humilhadíssimo. Os camponeses perceberam que era estratégia da repressão: os nativos pegaram penas leves, como essa, mas os de fora que estavam ali para ajudar pegaram penas mais longas, de 2 ou 3 anos. O intuito era dividi-los, jogar uns contra os outros.

Foi cortada a luz, a água, o telefone. A tudo reagiram com criatividade, e conseguiram até fazer o telefone funcionar só localmente. Com os postes sem serviço, construíram uma bela casa de madeira. Segundo dizem, nunca telefonaram tanto, porque era de graça. Depois que as coisas se acalmaram, e que tinham que pagar pelo uso, deixaram de telefonar, só se fosse em caso de emergência…

Quando já fazia 10 anos que lutavam, estavam exaustos, porque, como constataram, com tanta militância na defesa do Larzac não sobrava muito tempo para pastorear.

Em 1981, votaram todos na esquerda e ajudaram a eleger Mitterrand presidente. Ele fizera a promessa de campanha de liquidar com as pretensões do exército – o que fez, imediatamente.

Do movimento surgiu a liderança de José Bové, que ficou conhecido no mundo inteiro quando demoliu com seu trator uma loja McDonald`s perto do Larzac. Assim, chamava a atenção para o que servia a comida industrializada: para destruir a agricultura local, de subsistência, que é boa para a saúde.

Aos poucos o movimento foi incorporando outras pautas, sempre por necessidade interna, e se expandindo para a defesa do pequeno produtor, tornando-se ambientalista e preocupado com comida saudável, sem agrotóxicos e sem transgênicos. Para tanto, é preciso lutar contra o aquecimento global e contra os combustíveis fósseis, em busca de energia natural e renovável. Veio a predominar a ecologia.

José Bové faria carreira política, tornando-se porta-voz da Via Campesina. Seria eleito deputado à União Europeia pelo partido Europa Ecologia e pelos Verdes, e mais de uma vez, a partir de 2009. Também concorreria à presidência da França em 2007, sem sucesso, mas conseguindo 800 mil votos.

Em 2001, veio ao Brasil para o Forum Social Mundial em Porto Alegre e foi entrevistado no Roda Viva, da TV Cultura – sempre bonachão, com sua bigodeira e sua pachorra. Visitou o MST e tornou-se um amigo e aliado. Em terras gaúchas, participou da invasão de uma plantação de soja geneticamente modificada da Monsanto, arrancando todas as mudinhas. A Polícia Federal deu-lhe 24 horas para deixar o país.

Concluindo: foi assim que nasceu na França, onde permanece até hoje, um dos focos do movimento ambientalista e ecológico.

Os franceses tiveram a boa ideia de filmar um documentário, Tous au Larzac, dirigido por Christian Rouaud, que faz o histórico do movimento. Há belas recuperações de imagens do passado, cheias de vibração. Na atualidade, traz entrevistas com os principais líderes, que são lições de sabedoria e de calor humano.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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