Afeganistão: os talibãs e sua política terrivelmente religiosa, por Marcio Valley

O governo talibã permaneceu no poder até 2001. Assim como ocorreu com Sadam Hussein, foram retirados do poder por quem os colocou nele: os EUA.

Afeganistão: os talibãs e sua política terrivelmente religiosa

por Marcio Valley

            Vinte anos depois da invasão americana, o Afeganistão volta a ser dominado politica e militarmente pelos talibãs. Repetem-se as cenas de desespero vistas quando do fracasso americano no Vietnã, décadas atrás, em Saigon.

            Ontem (15/08/2021), pessoas em desespero tentavam fugir de Cabul por qualquer meio que fosse. Aviões com capacidade inferior a duzentos passageiros alçaram voo com mais de oitocentas pessoas a bordo. Ao menos três foram vistas caindo de um avião em pleno voo; não se sabe se foram jogadas ou se a queda decorreu de terem se agarrado ao trem de pouso. A aflição dessas pessoas, sua agonia e sofreguidão pela fuga é evidente e quem quer que se considere humano deve lamentar a existência de um poder estatal tão pernicioso que conduz pessoas a um desespero de tal magnitude que o vislumbre da morte pareça mais palatável do que a simples submissão em vida.

            A grande indagação aqui é: por que tantas pessoas, afegãs ou não, temem um governo talibã ao ponto de preferirem arriscar a vida? A resposta passa pela confluência entre o apego desumano a uma interpretação equivocada da religião e um interesse geopolítico americano que se coloca acima da perspectiva civilizatória.

            Quanto ao interesse geopolítico americano, vale lembrar as regiões de fronteira do Afeganistão. Ao norte, o país faz fronteira com três ex-repúblicas soviéticas: Turcomenistão, Uzbequistão e Tajiquistão. Como sabemos, americanos e soviéticos eram inimigos mortais, animosidade que persistiu em relação à Rússia. A oeste, o país, de maioria sunita, possui fronteira com o Irã, cuja maioria é xiita, condição que os torna adversários, mesma motivação que faz do Iraque um inimigo do Irã (e que levou os americanos a criar Saddam Hussein). Em paralelo, o Irã é um dos países mais odiados pelos diversos governos americanos ao longo do tempo. A leste, em pequena extensão, confronta-se com a China, que a potência hegemônica considerava e ainda considera inimiga. Quanto ao Paquistão, os EUA fingem dele ser aliados, mas o odeiam, tanto por ser uma potência nuclear, portanto menos sujeito à persuasão militar, como por entenderem que encontra-se repleto do que classificam como “terroristas” (rectius: qualquer um que não se submeta à hegemonia americana).

            Por conta dessa estratégica posição geográfica, quando a União Soviética invadiu o Afeganistão, em 1979, os americanos não pensaram duas vezes e decidiram apoiar a resistência afegã formada pelos chamados “mujahidin”. O apoio poderia lhes render um aliado capaz de abrigar tropas e instalações militares americanas (diretamente ou através das forças afegãs) nas imediações de diversos inimigos: União Soviética, Irã, China e Paquistão. Ocorre que, no seio dos mujahidin, encontrava-se o ovo da serpente: os talibãs.

            A palavra talibã significa estudante. Jovens insatisfeitos com a invasão soviética ao Afeganistão, iniciada em 1979 e que durou até 1989, tornaram-se “mujahidin”, ou seja, combatentes pela pátria e pela fé. Como se tratava de oposição à União Soviética, os Estados Unidos deram aos mujahidin dinheiro, instruções, treinamento e armamentos. Os rebeldes venceram. A União Soviética pôde experimentar o seu próprio Vietnã. Porém, após expulsar os soviéticos, os rebeldes se fragmentaram. Diversos grupos disputaram o poder nacional. O grupo vencedor era formado pelos talibãs, que tomou o poder em 1996. Para isso, contaram com a simpatia de afegãos crédulos na promessa de um governo religioso.

            O governo talibã permaneceu no poder até 2001. Assim como ocorreu com Sadam Hussein, foram retirados do poder por quem os colocou nele: os EUA. Após a derrubada das torres gêmeas, os americanos voltaram-se contra os antigos aliados, acusados de darem suporte a Osama bin Laden. Rapidamente, em questão de dias, os americanos tomaram militarmente o país, sem grandes dificuldades, exatamente como fariam em 2003 com o Iraque. Porém, se tomar o poder à força é fácil, mantê-lo é outra história. Apesar dos bilhões de dólares gastos no Afeganistão, as forças rebeldes jamais foram completamente dominadas. O resultado é que, após vinte anos de presença e escaramuças, os americanos cansaram e se derem por vencidos. Os mujahidin talibãs retomaram o poder. A tomada de Cabul se torna o segundo Vietnã dos ianques, basicamente com o mesmo enredo composto por saída desonrosa, apressada e plena de fugitivos desesperados.

            A partir de agora, os rebeldes afegãos poderão se vangloriar da incrível façanha de terem vencido, em curto espaço de tempo (cerca de 30 anos), as duas maiores potências militares do mundo: a União Soviética em 1989 e os EUA em 2021.

            Talvez o único perdedor de fato seja o povo afegão, já que os americanos ainda podem tirar algum proveito da presença dos talibãs no poder; afinal, eram seus aliados, quem sabe voltem a ser? Quanto ao povo, a presença americana podia ser, e certamente era, ruim, mas um governo de religiosos será muito pior, como sempre foi ao longo da história e como os próprios afegãos já sentiram na pele até 2001. Numa hipotética e nada invejável necessidade de opção entre uma intervenção externa (soviética ou americana) e a submissão a um governo de religiosos fundamentalistas, a primeira afigura-se mais vantajosa. O custo em perda de liberdade e dignidade seria inferior sob uma invasão de russos ou americanos. Diga-se que, embora várias das ex-repúblicas soviéticas possuam maioria muçulmana, nenhuma se tornou fundamentalista.

            Na experiência iniciada em 1996, quando assumiram pela primeira vez o governo nacional, os talibãs cumpriram de imediato a promessa religiosa. Sem respeito algum por tratados internacionais, invadiram o prédio da ONU onde se refugiara o ex-presidente, o capturaram, castraram, arrastaram de carro e, finalmente, mataram a tiros o farrapo humano que havia sobrado. Milhares de prisioneiros foram sumariamente fuzilados, sem defesa, sem julgamento. Mulheres passaram a ser obrigadas a vestir a burka, proibidas de trabalhar, frequentar escolas ou ser atendidas por médicos homens, um sem-número delas foi vítima de estupros (há relatos de que está acontecendo novamente). Homossexuais foram mortos. Homens eram obrigados a professar a religião e a usar barba. Bibliotecas inteiras foram queimadas. Símbolos de outras religiões foram destruídos, inclusive as famosas estátuas gigantes de Buda. As barbaridades praticadas pelos talibãs são incontáveis. Não há dúvida de que repetirão esse “método de governo”, inclusive porque os livros sagrados, nos quais sustentam seus atos, continuam os mesmos.

            Todas essas ações eram consideradas “terrivelmente religiosas”, com sacerdotes respeitados garantindo, por escrito, que tudo tinha por base as sagradas escrituras.

            Essa é mais uma experiência histórica, desta feita atualíssima, que dá o que pensar num momento em que a política brasileira é cercada pelo proselitismo religioso. Hoje, uma das bancadas mais poderosas do Congresso é a religiosa, sem contar a constante invocação de textos religiosos por um presidente que vê como natural a indicação para o governo de pessoas em função da religião que professam e não da competência técnica, como caberia num país laico como o nosso. A prática talibã é o exemplo vivo e atuante do tipo de política que pode advir da invocação da religião como modelo geral de comportamento e conduta. Não é, nunca foi e jamais será. Alguns dos piores pesadelos já vivenciados pela humanidade foram realizados em nome de algum deus ou religião. Repito: a laicidade na política não surgiu por acaso; é uma imposição da civilização após o testemunho de séculos de confusão entre Estado e religião.

            Quanto a nós, brasileiros, cabe aos nossos representantes expelirem esse início de intromissão religiosa na política. Principalmente, cabe aos senadores da república refletirem sobre isso quando forem chamados a avaliar a indicação de um ministro do Supremo sob o epíteto de “terrivelmente evangélico”, “terrivelmente católico”, “terrivelmente espírita”, “terrivelmente judeu” ou “terrivelmente qualquer religião que seja”. A história nos conta que, quando religiosos ascendem ao poder, Deus costuma tornar-se a cada dia mais malévolo, mais cruel, mais exigente com comportamentos e mais inclemente com a dor do povo. Em grande parte dos casos, quando alguém invoca deus como responsável pelo comando que exerce sobre todos, é do diabo que se trata.

            Para nós, ainda há alguma esperança contra a intromissão da religião na política. Quanto ao povo afegão, toda e qualquer esperança foi enterrada ontem. Lamentavelmente, a cantilena religiosa chegou ao poder efetivo e chegou para ficar. Afegãos e afegãs, estas últimas principalmente, sofrerão as mais duras penas supostamente aplicadas em nome da salvação, como costuma ocorrer em teocracias.

            Resta-nos apenas lamentar e torcer por eles, desejando que organismos internacionais consigam proporcionar alguma defesa contra o governo “terrivelmente religioso” que retorna sedento ao poder afegão, matando, torturando e estuprando em nome de deus.

            Que a força, a resistência e um bom futuro estejam com os afegãos.

Choremos por eles.

Marcio Valley é formado em Direito pela UFF, com pós-graduação em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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