Direitos humanos

Em audiência pública ignorada por governo Tarcísio, vítimas contam como é viver sob a Operação Escudo

do Brasil de Fato

Em audiência pública ignorada por governo Tarcísio, vítimas contam como é viver sob a Operação Escudo

por Thalita Pires, de São Paulo

Nas mais de 20 falas realizadas na audiência pública do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), desta sexta-feira (1) na capital paulista com moradores da Baixada Santista, uma tônica foi dominante: a exigência do fim da Operação Escudo e a falta de respostas do governo do estado de São Paulo, seja na própria audiência, como também sobre as inúmeras denúncias de violações de direitos humanos na ação policial. 

As críticas vieram de vítimas, organizações que atuam na questão da segurança pública e instituições públicas envolvidas de alguma forma na questão da violência policial. No início da audiência, André Carneiro Leão, defensor público federal e presidente do CNDH, informou aos presentes que tanto o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, como o secretário estadual de Segurança Pública, Guilherme Derrite, foram convidados para o evento, mas não compareceram nem enviaram representantes.

Derrite já havia desmarcado na semana anterior encontro que teria com organizações de defesa dos direitos humanos, entre elas a Anistia Internacional. De acordo com Jurema Werneck, diretora entidade, sem justificativa ou indicação de nova data para que a conversa. 

O governo federal também recebeu cobranças  – em menor grau – dos presentes. Dimitri Sales, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe), afirmou que os ministérios da Justiça, dos Direitos Humanos e da Igualdade Racial deveriam fazer mais do que apenas ir aos locais.

“É preciso que se olhe para o que está acontecendo em São Paulo, com uma atuação conjunta, que não fique só na visita”, disse. 

Moradores entre a mobilização e o medo

Realizada em um pequeno auditório no prédio da Defensoria Pública da União em São Paulo, a audiência contou com a presença de cerca de 150 pessoas. Moradores das cidades de Santos, Guarujá e São Vicente – a maioria mulheres – se organizaram para comparecer, apesar da distância e dos custos de transporte, carregando suas dores e seus filhos, desde bebês até adolescentes.

A sala ficou lotada de moradores das comunidades atingidas, mas poucos tiveram a confiança de falar. Com a operação ainda em curso – 24 já foram mortos, na mais letal operação desde o massacre do Carandiru em 1992 -, o medo domina os atingidos. 

‘Mora na favela, pra gente é bandido’

Thais*, moradora do Guarujá, contou que suas filhas estão com medo de voltar à escola. Em horário de aula, houve tiroteio próximo de onde elas estudam. “Minhas filhas foram muito afetadas pela Operação Escudo. Voltei para casa e elas estavam chorando, falando ‘mãe, o tiro estava muito perto, mãe, o tiro estava muito perto’, isso na hora do recreio. E eu tive que dizer que estava tudo normal para convencê-las a voltar para a escola, ensinando a sair de perto da janela, se jogar no chão e ir para o corredor”, contou, com lágrimas de revolta.

Samara*, que vive em uma das comunidades atingidas, contou que perdeu vários amigos na Operação. “Tive a minha casa invadida, com meus filhos lá. Fui ameaçada porque encontraram uma faixa [usada em uma manifestação realizada no Guarujá]. Um policial falou pra mim ‘mora na favela, pra gente é bandido’. Só que a gente não mora na favela porque quer, é por necessidade”, afirmou. “Só vão parar quando matarem alguma criança”, acredita.

Bruno*, morador de São Vicente – cidade que faz divisa com Santos e também está sendo afetada pela operação – relatou o ataque de um grupo de policiais contra um morador. “A polícia passou no morro, bateu na porta do Caio* e perguntou se havia alguém em casa. Ele estava tomando banho, disse que sim. Os policiais então perguntaram se ele estava sozinho. Ele disse que sim. Os policiais arrombaram a porta e alvejaram o Caio. Isso foi às 11h, o socorro chegou às 14h. Agora ele está em estado gravíssimo”, contou.

Fora dos holofotes, Karina* conversava com outras mulheres. Ela é moradora de São Vicente e não está sendo atingida diretamente pela operação. Mesmo assim, em um gesto de solidariedade, se juntou às vítimas e, com seus filhos, compareceu à audiência. “Faço isso pela vida. Todos nós somos atingidos pela violência policial, todos os dias. Pode ser homem, mulher, preto, branco. Morou na favela, a gente sofre”, afirmou. “A qualquer momento pode ser a gente

‘Execuções sumárias’

Os relatos dos moradores foram intercalados com participações de entidades e organizações. Regina Santos, do Movimento Negro Unificado, classificou as mortes da Operação Escudo como “execuções sumárias”.

“A polícia funciona muito bem para controlar e exterminar corpos negros. E tenho que discordar da Samara*, que disse que eles vão parar quando morrer uma criança. Não vão. A polícia do Rio de Janeiro já matou mais de dez crianças esse ano e não parou”, disse, para ser interrompida por aplausos. 

Débora Silva, fundadora do movimento Mães de Maio, cobrou a investigação de todas as mortes, inclusive a do policial Patrick Reis. “Onde está a capacidade de investigação da polícia civil? Inteligência não dispara um tiro”, afirmou. “Esse é um Estado terrorista, que mata e não dá satisfações”, completou.

Policiais intimidam jovens

Durante a audiência pública, que durou mais de 3 horas e meia, um grupo de jovens saiu do prédio da Defensoria Pública, que fica próximo à avenida Paulista, para ir a uma lanchonete. De acordo com eles, três viaturas os abordaram. Nesse momento, quatro jovens teriam corrido. Luiz, que ficou na abordagem, afirmou que os policiais sabiam que eles estavam na audiência pública. “Eles disseram ‘você está lá na Defensoria, qual o nome da sua mãe?’ Só que eu não sou obrigado a responder” Em seguida, os policiais teriam ameaçado “pegar” os jovens que haviam fugido. “Eles disseram ‘tá bom, pode ir lá, que a gente vai pegar seus amigos'”, afirmou. 

Luiz desconfia que alguém presente na audiência pública denunciou o grupo para os policiais. “Parecia que alguém daqui falou ‘pega aquele neguinho que ele é folgado'”, afirmou. A reportagem do UOL questionou a Secretaria de Segurança Pública sobre o ocorrido, mas não teve resposta.

Brasil de Fato entrou em contato com a SSP para saber o motivo da ausência de representantes da pasta na audiência e do cancelamento da reunião agendada com a sociedade civil. A pasta enviou em resposta uma nota padrão, que não responde os questionamentos.

* Os nomes foram trocados para proteger as identidades

Edição: Rodrigo Durão Coelho

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