Como voltaremos à Idade das Trevas em uma Geração, por Nader Amadeu

Como voltaremos à Idade das Trevas em uma Geração

por Nader Amadeu

Primeiramente é preciso explicar uma revolução que está começando agora será uma das mais disruptivas desde a invasão dos godos a Roma em 410 DC, que deu início à chamada idade das trevas. A tecnologia criptográfica atual nos permite guardar uma fortuna completa sob uma simples senha, mais precisamente sob uma chave privada. Sob tal chave poderemos no futuro próximo depositar não só todo nosso dinheiro mas também uma inúmera gama de ativos (ações, bens, imóveis, títulos de propriedade, registros, documentos e dados pessoais). Nessa nova realidade a atribuição de ativos será feita de forma delocalizada na internet, i.e. eles não serão mantidos em local específico, em um país ou território, onde poderiam ser fisicamente confiscados ou destruídos.

Usando moedas criptográficas os ativos serão distribuídos em inúmeros computadores ao redor do mundo e portanto além do arbítrio de qualquer governo ou instituição. Para destruir tal sistema teríamos que destruir a internet, uma tarefa quase impossível, pois a ela não é uma entidade centralizada. Um governo a pode destruir ou restringir em seu território, mas fazê-lo em ordem mundial é atualmente impensável.
As moedas criptográficas legitimam a verdade através do consenso coletivo. Essa foi a primeira forma alcançar vereditos concebida pelas sociedades humanas. Comunidades de organização tribal ainda o fazem assim. Nelas não existe um cartório de registros, onde a propriedade de sua casa (ou tenda) está assegurada, é o consenso comum de que aquela tenda te pertence que te assegura a sua propriedade.

Hoje todos conhecemos o fenômeno de moedas criptográficas sob o nome de Bitcoin. Esta representa a ideia original, publicada em um artigo de 2009 por um autor desconhecido sob o pseudônimo Satoshi Nakamoto. Apesar de introduzir os conceitos fundamentais como o da corrente pública de blocos (blockchain), a bitcoin constitui uma versão muito rudimentar do que virá a ser essa tecnologia nos próximos anos. Na verdade ela funciona na minha opinião mais como uma prova de conceito do que como um produto útil e viável. Inúmeras novas ideias estão surgindo baseadas no recurso de blockchain e todas as aplicações imagináveis serão ensaiadas nos próximos anos. Exemplos são a distribuição de trabalho computacional (CPU/GPU etc), a distribuição de energia elétrica, identificação pessoal (a substituir documentos de identidade e passaportes), propriedade coletiva (a substituir ações em bolsa), autoria de trabalhos artísticos, armazenamento e tutela de dados pessoais, biométricos e de saúde, sistemas de votação e gestão coletiva, sistemas de comunicação entre máquinas, todos os tipos de transações bancárias ou de valores, vários tipos de contrato de serviço e de compra e venda etc.

Um interesse especial merece o item contratos: como bens e títulos poderão ser registrados em moedas criptográficas, assim também poderão ser vendidos/comprados/negociados. O mesmo ocorre com muitos tipos de serviços e procedimentos. Em síntese, estamos transferindo atividade econômica para esse novo ambiente. Agora vale lembrar que há uma série de projetos nessa área desenvolvendo métodos completamente anonimizados para executar contratos e transações. Com isso viabilizamos atividade econômica completamente invisível aos governos. O impacto dessas mudanças é incalculável.

Sem embargo um dos efeitos mais impactantes dessa mudança será a competição entre moedas. Passaremos de um cenário de monopólio dos bancos centrais na emissão de moeda para um ambiente plurimonetário. Já hoje existem mais de mil moedas criptográficas e novas surgem todos os dias. É óbvio que apenas algumas sobreviverão, mas assim como a bolha ponto-com não destruiu a internet, a bolha criptográfica não destruirá os novos fundamentos por ela estabelecidos. O caminho mais natural mira na solidificação de algumas centenas de moedas em escala global enquanto outras manterão influência local.

A oposição às moedas criptográficas fazem as hoje conhecidas moedas fiat: Dólar, Euro, Real etc. A palavra fiat significa imposta, pois assim o fazem os governos através de seus bancos centrais.

Este texto pretende contextualizar uma previsão de derrocada dos estados nacionais seguindo o advento de moedas criptográficas. Em essência, dois fatores protagonizarão esse processo: a progressiva incapacitação dos estados de cobrar impostos e a perda do monopólio monetário. Sem esses dois pilares estados nacionais se tornam insustentáveis.

Em que prazo isso acontecerá?

Várias tecnologias desse tipo já existem e novas ideias aparecem todos os dias. Como sua adoção possibilitará atividades econômicas completamente isentas de impostos o interesse será grande. Acredito que mudanças serão observáveis na escala temporal de anos enquanto na escala temporal de décadas veremos grandes pontos de inflexão ou mesmo “viradas de mesa”.

Como será o desenrolar dos fatos?

Como primeiro efeito, dinheiro advindo de atividades ilegais tornar-se-á livre de confisco (isso já é realidade com a rudimentar bitcoin, apesar de esta não ser tecnicamente anônima, mas sim pseudônima, i.e. todas as transações são transparentes, mas a posse das respectivas chaves públicas não). Em seguida fortunas adquiridas de forma legal serão transferidas para moedas ou sistemas criptográficos e tornadas secretas. Após a crise de 2009 houve massiva impressão de dinheiro por parte dos bancos centrais (“quantitative easing”). Esse dinheiro extra entrou na economia direto para o topo da pirâmide e está constantemente buscando oportunidades especulativas em escala global. Tal cenário pode ser associado a uma barragem d‘água constantemente prestes a desabar. Trata-se de um dinheiro muito arisco e com potencial de impacto global e que, em geral, está a frente dos acontecimentos.

A migração de grandes fortunas para moedas criptográficas aumentará a oferta de moeda fiat, gerando pressão inflacionária. Por outro lado a crescente evasão fiscal aumentará os déficites públicos. Note que esses dois fatores são altamente sinergísticos. A receita tradicional para governos nessas condições sempre foi imprimir moeda fiat (e.g. o governo JK, o Sarney, a república de Weimar e a Hungria nas décadas de 30 e 40). Mas agora qualquer pessoa pode pular para uma moeda criptográfica a fim de se proteger de uma desvalorização da moeda fiat. O algoritmo de moedas criptográficas frequentemente prevê uma oferta máxima fixa, que no caso da Bitcoin é de 21 milhões. Esse valor jamais será mudado, o que inclusive a confere um potencial deflacionário. Obviamente outros ativos de chamado valor real como metais preciosos e ações também se valorização nesse processo.

Um próximo passo implicará a adoção de moedas criptográficas pelo cidadão comum, que será mais lenta e gradativa pois o grau de receptividade a novas tecnologias obedece sabidamente uma larga distribuição na sociedade. A popularização de aplicativos possibilitando o uso de moedas criptográficas em transações comerciais assim como sua crescente aceitação por parte do mercado facilitarão esse processo. Por outro lado a inflação persistente, os cortes orçamentários (certamente em serviços públicos e políticas sociais) e o ambiente de incerteza fornecerão um estímulo adicional. A credibilidade das moedas fiat será gradativamente colocada em cheque ao passo em que moedas criptográficas preencherão o vácuo de confiança por aquelas deixado.

É indisputável que o novo ambiente de diversidade monetária e competição entre as moedas causará muita confusão aos cidadãos despreparados para esses novos tempos. A atribuição de valores tornar-se-á difícil e incompreensível para muitos. Nesse processo pessoas com maior afinidade a novas tecnologias gozarão de grande vantagem competitiva ao infortúnio das demais. A resistência por parte da população será apenas gradativamente superada, não obstante ao abrolhar de uma nova geração a adesão será majoritária.

Os governos tentarão obviamente contra-atacar regulando os mercados e criando suas próprias moedas criptográficas, o que desacelerará o processo, mas não o cessará. A verdade é que os estados nacionais não têm armas eficazes contra esse novo fenômeno e tampouco estão preparados para as mudanças iminentes. Sucessivos cortes em gastos públicos serão necessários, que por sua vez intensificarão a economia informal. Estados com baixa disciplina fiscal serão os primeiros a sucumbir às novas moedas. Exemplos históricos de quadros críticos em que uma virada de mesa poderia ocorrer são incontáveis: Argentina 1998-2002, USSR após 1989, Brasil 1990 (plano Collor) e 1994 (hiperinflação, plano Real), o Zimbábue muito recentemente e a lista segue. A repetição de uma dessas crises proporcionaria o cenário perfeito o triunfo das moedas criptográficas e consequente colapso do respectivo banco central. Uma nova crise de ordem mundial como a de 2008-2009 teria consequências nefastas. Mas ainda que o colapso dos bancos centrais não ocorra subitamente, a corrosão de seu poder no longo prazo ele é inevitável. Se tivermos a sorte de contemplar os acontecimentos de forma mais gradual, quiçá os bancos centrais conseguirão se reestruturar e encontrar um novo papel no ambiente vindouro.

É importante notar que mesmo os governos se beneficiarão das novas tecnologias ao tornar certos serviços mais eficientes e transparentes. Já hoje existem países transferindo seus serviços de cartório para tais moedas a fim de combater práticas corruptas como a grilagem. Todos os tipos de registros e documentos serão, por fim, transferidos para sistemas blockchain. Dados biométricos podem ser juntamente gravados de forma que a identificação de pessoas em fronteiras ou em investigação criminal se torne muito mais eficaz. Contanto o abalo à autoridade estatal não será com isso compensado.

Outro elemento catalisador do processo de derrocada dos estados nacionais virá dos mini-estados que hoje praticam o modelo de negócio chamado paraíso fiscal. Estes declarar-se-ão abertos ao recebimento de riquezas advindas de moedas criptográficas. Receberão enormes investimentos privados, que ninguém saberá de onde vieram. Poderão montar seus mini-exércitos para se proteger das crescentes ameaças. Tais mini-estados serão uma espécie de ralo de drenagem do poder dos grandes estados nacionais. Para quem não sabe, já existem grupos de bilionários buscando terras para comprar e criar seus mini-estados soberanos. O bilhete de entrada em uma dessas sociedades custará muitos milhões ou bilhões.

Mas e as potências de hoje?

Uma pergunta importante é como se comportarão potências militares como os EUA, Rússia, China. Seus exércitos estarão entre duas alternativas: ou se desintegram completamente ou se tornam criativos e inventam motivos para iniciar movimentações militares de grande alcance em uma tentativa desesperada de sobreviver. Poderíamos ver aqui o surgimento de uma nova gerra mundial?

Onde chegaremos após a crise?

As transformações serão profundas em todos os campos: político, social, econômico, militar etc. Primeiramente triunfará a cultura do salve-se-quem-puder, pois os estados se redimirão de seu tradicional papel protetor. Com o desaparecimento dos seus serviços, organizações privadas ocuparão essa lacuna. A crescente insegurança pública levará a um reordenamento urbano onde pessoas que podem pagar por segurança privada se aglomerarão em núcleos de autoproteção. A invenção brasileira do condomínio autossuficiente conquistará o mundo. Pequenas cidades autônomas se multiplicarão e farão sua própria lei. A segurança nacional dará lugar à segurança local. Fora deste domínio organizações paramilitares poderão preencher o vácuo de poder. Guerrilhas conquistarão territórios e imporão sua ordem.

A situação histórica mais semelhante que eu conheço foi a derrocada do império romano. Na idade das trevas, que a seguiu, não havia estados nacionais na Europa. A população daquele continente vivia basicamente em organização rural. As poucas cidades eram autônomas e estavam mais preocupadas em se proteger do que em fazer campanha militar expansionista. Com o tempo novas estruturas políticas suprarregionais surgirão, como o Sacro Império Romano-Germânico. Mas elas eram muito frágeis e desconhecidas pela população rural. Imposto, serviço público ou militar eram fenômenos localizados e não atingiam a maioria da população. O império Romano-Germânico era muito mais um acordo entre pessoas de poder do que um fenômeno territorial-militar nacional. A única grande instituição supranacional da época, a igreja católica, era de caráter privado, detinha o controle sobre a escrita e a informação e explorava o cidadão comum sem qualquer regulação externa. Mais para o final dessa era se multiplicaram os burgos, estruturas pré-urbanas de um castelo rodeado por casas. Com o tempo muralhas de proteção foram construídas ao seu redor o deram início às cidades medievais. Mas isso não parece familiar ao surgimento de agrupamentos autônomos anteriormente descrito?

É interessante observar que o modelo gerencial de megalópoles também está seriamente ameaçado. O contrato social necessário para sua existência não contempla todavia uma correspondente inovação viável na tecnologia de blockchain, tampouco consigo vislumbrar sua viabilidade no momento. Um ponto crítico aqui reside no fato de a tecnologia de blockchain funcionar muito bem na base voluntária, mas ser ineficaz no campo da contribuição compulsória. Com o progressivo enfraquecimento do modelo gestor atual e a consequente geração de um hiato de poder, novamente poderemos apreciar a emancipação de guerrilhas, tomando o poder em regiões urbanas centrais. Eu uso aqui o termo emancipação porque elas, pelo menos no Brasil, já existem, principalmente nas favelas. Apenas expandirão sua área de domínio.

Por fim fica uma pergunta importantíssima: quem controlará a internet?

Seu conteúdo continuará tão ou mais livre do que o é hoje. Mas a internet tem seu lado físico, é ancorada em cabos de fibra óptica ou em satélites, ainda por hora majoritariamente controlados por estados nacionais. Estes estarão contudo enfraquecidos ou completamente desintegrados no referido futuro próximo. Parece natural que grupos privados preencham esse vácuo. Eles terão condições de proteger as estruturas físicas que embasam a internet e terão sob certo aspecto o controle sobre os meios de informação em escala mundial. Um momento, volte um pouco no texto e releia aquela parte sobre a única grande instituição supranacional da idade das trevas. A forma de dominação será diferente, mas semelhanças são irrefutáveis.

Estamos sendo pessimistas demais?

Fato é que as grandes civilizações sempre tiveram um apogeu, seguido por uma estagnação, crise e desintegração. Por vezes esse fim se deu pelo esgotamento dos recursos naturais, por outras porque o bem-estar e a acomodação com relação ao status quo subtraíram das sociedades a capacidade de se reinventar. Nada obstante, forças inovadoras estão sempre a surgir e suas capacidades disruptivas são imprevisíveis.

Triste é notar que as derrocadas das grandes civilizações são em geral seguidas por períodos de caos, desgoverno, violência e retrocesso civilizatório. Foi assim desde os sumérios, por quê então acreditamos que será diferente desta vez? Será que não estamos sofrendo de um excesso de positivismo e uma carência de dialética? Eu acredito que o positivismo e a esperança foram evolutivamente selecionados porquê sem eles o ser humano não luta pela sua sobrevivência. Mas será que eles resistem a uma racionalização?

Afinal a tecnologia de blockchain será boa ou ruim para a humanidade?

Claro que a resposta é difícil. Ela trará em um primeiro momento várias vantagens. A decentralização de todos os serviços de distribuição de conteúdo online ocorrerá de forma rápida. Já existe um bom exemplo, a plataforma Steemit, que distribui conteúdo de forma semelhante ao Facebook, mas utilizando tecnologia blockchain. Isso significa que Steemit não é uma empresa, não está centralizada em uma servidora, não é controlada por administradores de sistema ou censurada por governos. É um serviço decentralizado e distribuído mundialmente. Algo semelhante ocorrerá com outros serviços como Youtube, Spotify etc, o que fará com que geradores de conteúdo, jornalistas, artistas etc terão uma remuneração mais justa. Mas por mais que a tecnologia de blockchain seja admirável, suas consequências políticas podem ser gigantescas e todavia não foram identificadas pelo poder vigente.

Mas como funcionam moedas criptográficas?

Primeiro fundamento, como funciona a criptografia:
métodos tradicionais usavam uma única chave para encriptar e decriptar um texto. Um exemplo da infância é “pa plin_pgua_pgem p_do p_pê”, com a qual alguns adultos conversavam assuntos sensíveis na presença de crianças. Nela você intercala “p’s” para encriptar e os desintercala para decriptar. Outro método bastante usado em ambientes mais críticos (e.g. comunicação militar) foi a rotação 13: você troca todas as letras de um texto pelas correspondentes a 13 posições adiante no alfabeto. Por exemplo “Brasil” torna-se “Oenfvy”. O remetente encripta seu texto e relata ao destinatário que usou rot13. A mensagem é enviada e decriptada pelo destinatário. Esse método, além de ser muito fraco, exige que o mecanismo de encriptação (a chave) seja conhecido por ambas as partes (criptografia simétrica), o que debilita a segurança. Durante a segunda guerra mundial era usada a criptografia simétrica, mas as partes envolvidas definiam uma chave diferente para cada dia e horário de comunicação, a fim de dificultar o deciframento.

Uma revolução na área ocorreu com o invento da criptografia assimétrica. Nela um algoritmo matemático permite o uso de duas chaves distintas: uma para encriptar, outra para decriptar. Esquematicamente seria assim: Texto_A + chave_A -> Texto_B; Texto_B + chave_B -> Texto_A.

O conhecido sistema de encriptação de Email PGP usa esse princípio. Você envia a todos os seus amigos sua chave pública (ch_pub). Alguém escreve uma mensagem e a encripta com a ch_pub (msg_legivel + ch_pub -> msg_encriptada). A mensagem pode agora ser transmitida pela rede de computadores, onde todos podem acessá-la, pois está ilegível. Somente você, de posse da correspondente chave privada pode decriptar a mensagem (msg_encritada + ch_priv -> msg_legivel).

Exemplo: a chave pública:
MCwwDQYJKoZIhvcNAQEBBQADGwAwGAIRANarz50hIJ1Ifpz9vXdUxYcCAwEAAQ==

corresponde à chave privada:
C4ynaI8M9hT4ACOO2tVpw04VGfQsxX24IbpJEbAn+J5WQUTZDEQMNRTk8NuZzZqi
CgOKj4IEAwwi4y3T9XL+gqqEKAizNQR4JS55XB1KaYaRCr8LQKy9yqGVdbWn8uDe
ME6ZYyFgME3YAJ5MlmvOEw==

Com a primeira você pode decriptar um arquivo, tornando-o ilegível, e espalhar pelo mundo. Somente o detentor da segunda poderá abri-lo. Veja que mesmo a comunicação entre indivíduos sem nenhuma informação sobre o paradeiro alheio é possível (e.g. útil em espionagem). Vale lembrar que as chaves acima são muito curtas (RSA 128 bit) e frágeis para os padrões atuais.

Note que o critério de legibilidade de aqui é humano. Isso significa que o caminho inverso também é possível. Exemplo: Maria encripta uma mensagem com sua chave privada (que é mantida em segredo), gerando assim o texto “ilegível”. Esse texto é agora a assinatura de Maria, que ela anexa às suas mensagens. Um destinatário desta mensagem pode decriptar a assinatura usando a chave pública de Maria e se certificar que ela realmente escreveu a mensagem. Claro que para isso ele deve primeiro acreditar que somente Maria detém posse da correspondente chave privada.

Segundo fundamento, a cadeia de blocos (blockchain):
Existem redes de computadores que administram uma espécie de ficheiro eletrônico ao qual informações ligadas a chaves públicas são adicionadas em ordem temporal. Cópias desse „ficheiro“ são distribuídas por milhares de computadores ao longo do mundo, que por sua vez conferem sua integridade e fazem averiguações recíprocas. Toda a informação é acessível a todos os computadores da rede, mas podem naturalmente ser previamente encriptadas. O princípio consensual é adotado para escrever e checar as informações: desde que a maioria dos nós trabalhe de forma independente, um ataque à rede é ineficaz. Para manipular a blockchain um agressor teria que controlar mais da metade dos nós (computadores), o que dadas a dimensões atuais parece inconcebível.

O poder computacional implementado hoje em blockchain é imenso. A rede dedicada à Bitcoin está no ar desde janeiro de 2009 e jamais foi derrubada apesar de constantes ataques, demostrando uma robustez impressionante. Essa indústria é bastante distribuída pelo mundo, se instalando em locais com eletricidade de baixo custo. Ainda há muitos indivíduos que participam de maneira privada, com um pc em casa. Juntando tudo se trata de um dos maiores parques computacionais existentes hoje, assim como um dos maiores consumidores de energia elétrica.

Voltando às “fichas” que compõem a blockchain: uma vez gravadas na blockchain seu registro se torna inalterável, assim como a ordem com que são gravadas. Vale aqui uma analogia à Constituição Federal e suas posteriores emendas. Milhões de cidadãos detém uma cópia, de forma que qualquer tentativa de corrompê-las seria imediatamente detectada (em tese).

Implicações: confiança dá lugar à segurança.
A tecnologia de blockchain substitui uma autoridade central pelo consenso coletivo. Neste ninguém é privilegiado, ninguém tem poder controlador. O trabalho coletivo de milhões de computadores ao redor do mundo mantém o sistema em curso e seu consenso estipula a verdade. Isso torna o conceito de confiança desnecessário, pois a confiança está associada a uma entidade personalizável e centralizada, como um banco. Bancos só existem porque nós confiamos que nosso dinheiro esteja neles bem guardado. Eles têm total controle sobre o dinheiro lá depositado e podem empregá-lo em seus negócios; mesmo assim os cidadãos confiam que poderão sacar suas economias sempre que necessitarem. Também é baseado na mesma confiança que realizamos transferências bancárias ou usamos um banco para operações cambias.

O algoritmo de moedas criptográficas confere completa segurança de que você detém um ativo sem a necessidade de intermediário. O mesmo vale para contratos baseados em moedas criptográficas (chamados smart contracts). Isso significa que você poderá fazer uma transação com alguém que não conhece, dispensando intermediários, mas com segurança total de que a transação ocorrerá perfeitamente. Em Inglês esses sistemas são chamados de „trustless“ (isento de confiança). Com isso os detentores de confiança no sistema financeiro atual (bancos públicos e bancos centrais, intermediários de diversos tipos) tornar-se-ão inúteis. O potencial para mudanças assim criado é colossal.

Adendo matemático: criptografia assimétrica em termos simples.
Quando você olha o relógio analógico às 15 horas, ele mostra 3. Este valor se repete a cada 12 horas. Matematicamente se diz que 15 módulo 12 congrui com 3 (ou 15 mod 12 = 3). Existem entretanto combinações interessantes desse cálculo: se tomarmos um número primo, digamos 17, e sua raiz primitiva, 3, temos a seguinte propriedade: se elevarmos 3 (o gerador) a um número inteiro aleatório n (por escrito: 3^n) e obtivermos módulo 17 do resultado, a solução será obviamente algum número inteiro entre 0 e 17. O interessante é que todos eles aparecem com igual probabilidade ao variarmos o expoente de 3. Em outras palavras, se calcularmos 3^n mod 17 para 10 < n < 10000000000000, teremos ao final todos os inteiros entre 0 e 17 aparecendo com igual frequência. Assim sendo, um resultado qualquer, digamos 9, não me dá nenhuma pista sobre qual foi o valor de n usado. A tentativa&erro pode ser uma opção para números menores, mas computadores lidam com números gigantescos. Dessa forma temos um cálculo que é fácil em um sentido, mas praticamente impossível no sentido inverso.

Agora imagine que Maria queira enviar uma mensagem encriptada para Pedro. Eles concordam em usar o gerador 3 e o módulo 17. Maria usa sua chave privada m1=4 e calcula sua chave pública como m2 = 3^m1 mod 17=13 (em extenso: 3 elevados a m1, módulo 17). Ela envia o valor de m2 de forma pública para Pedro. Este por sua vez adota a chave privada p1=8 e calcula sua chave pública p2 = 3^8 mod 17=16. Pedro envia o resultado p2=16 publicamente a Maria. Agora Maria decripta a mensagem secreta com msg=3^(p2*m1) mod 17=1 (por extenso: msg igual a 3 elevados ao produto entre a chave pública de pedro e a privada de maria, módulo 17). O resultado msg=1 é um segredo dividido somente entre Pedro e Maria. Para obtê-lo Pedro calcula msg=3^(m2*p1) mod 17=1. Com isso ambos chegam ao mesmo resultado secreto sem conhecer a chave privada alheia. Um interceptador não teria como decifrar a comunicação porque não detém nenhuma das chaves privadas. Simples assim, complexo assim.

Hashing:
Um método bastante útil em criptografia implica misturar irreversivelmente partes de um texto de forma a tornar impossível reconstituir a informação original (hashing). Entenda isso como você fazer um bolo para uma visita. A visita pode até imaginar que há trigo, açúcar, canela etc no bolo, mas ela não tem como fazer o processo inverso e obter os ingredientes e suas proporções. Assim temos um caminho unidirecional onde os ingredientes, suas proporções e o modo de preparo podem ser guardados em segredo, mas o produto deles é público.

Por exemplo, a rotina SHA-256 calcula para o texto de entrada (input) “Brasil” o texto de saída (output) “6641c5a7ff9f56ef2baceefb41d9906583b9816a7b3e9c4c23773646be584caf”. O cálculo inverso é analiticamente impossível. Para a estratégia de tentativa&erro os computadores atuais são ineficazes. Isso poderá mudar com os computadores quânticos, mas aí é uma outra longa história. Outra característica interessante é que mudar apenas um carácter do input muda completamente o output, de forma a incapacitar qualquer associação (e.g. o input “brasil” gera o output “b08b0a5c8892079ef20854589792e05957f60ac9bea6e58b0320550d752a0bb3”). A irreversibilidade do cálculo também permite que ele seja usado em mecanismos de autenticação sob princípio semelhante ao de chave privada (input) e chave pública (output).

Para exemplificar uma aplicação eu produzi uma hash SHA-256 deste texto, como escrito até o último parágrafo, que resulta em e0967ed6d089f185468db34a5d38d9fe55b83347d9b8742b34c3ad317f2772d8. Essa hash está gravada na blockchain da bitcoin, talvez por toda a história futura da humanidade, conferindo assim uma prova de autoria.
 

Redação

7 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Este será o meio mais eficaz

    Este será o meio mais eficaz de vir, com o passar do tempo a tornar os milionários em pobres. Se nem as tentativas de unidades de mercado ou moedas, patrocinadas pelos esforços dos vários países do planeta não conseguem reverter a pauperização e precarização da humanidade, além da constante degradação do planeta, nem de longe serão códigos de programação de pessoas que querem pagar para ver o que acontecerá com um mundo de estados e instituições mais fracas que já estão. Que se preparem para as próximas moedas: armamentos e grãos e em seguida, as sobras dos lixões

  2. Como voltaremos à Idade das Trevas em uma Geração

    simplesmente sensacional!

    esta análise mostra a grande mudança de paradigmas que a Esquerda no Brasil precisa fazer. apliquem-na no cenário atual. para saber como lutar, devemos conhecer nosso inimigo. para saber quais armas utilizar, devemos conhecer tanto as armas quanto as fragilidades de nosso inimigo.

     

    Bitcoin: a nova corrida do ouro

    numa reedição da corrida do ouro, é no processo de mineração que o Bitcoin se revela, deixando transparente a vinculação neoliberal de seu projeto, tanto na concepção quanto em sua implementação.

    apesar de ter sido inicialmente apresentado como um processo meritocrático, com oportunidades iguais sendo melhores aproveitadas pelo maior desempenho individual, a mineração de bicoins exige cada vez mais um caro e dedicado hardware, em virtude da alta competitividade entre os diversos mineradores.

    a própria base territorial de localização da mineração se torna uma vantagem comparativa. em climas frios por proporcionar menor gasto de energia empregado na refrigeração do hardware, cujo aquecimento ocorre por um contínuo e intenso processamento de cálculos complexos. em regiões de menor taxação de consumo de energia elétrica, por reduzir o custo de um insumo básico para a produção de bitcoins.

    progressivamente se inviabilizou a participação individual, alijando usuários comuns e domésticos da mineração, sendo atualmente uma atividade dominada por grandes empresas.

    as maiores empresas de mineração de bitcoins estão hoje baseadas na China, concentrando cerca de 81% da taxa global de processamento de hashs. apenas as 4 maiores empresas de mineração são responsáveis por cerca de 60% da produção de novos bitcoins.

    estas empresas podem ter equipamentos localizados em outros países além do qual estão baseadas. formam também vastas redes de mineração (mining pools), oferecendo algumas delas a possibilidade de associação, acompanhada de diversos tipos de remuneração para mineradores individuais. ainda assim, esta associação acaba resultando em ainda maior concentração de poder de processamento para seu proprietário.

     

    .

  3. Como voltaremos à Idade das Trevas em uma Geração

    -> Agora imagine que Maria queira enviar uma mensagem encriptada para Pedro. Eles concordam em usar o gerador 3 e o módulo 17. Maria usa sua chave privada m1=4 e calcula sua chave pública como m2 = 3^m1 mod 17=13 (em extenso: 3 elevados a m1, módulo 17). Ela envia o valor de m2 de forma pública para Pedro.

    este artigo tem as melhores e mais simples explicações e exemplos de criptografia, tornando completamente acessível um tema complexo e difícil, além de chato.

    sugestão: uma planilha Excel incorporada onde todos possam testar o exemplo e aprender com ele.

    .

  4. Salve-se do capitalismo enquanto é tempo
    As cripto-moedas estão na ordem do dia da imprensa. Na GGN, apenas nos últimos dez dias, o assunto foi pautado, que eu saiba, pelo menos 5 vezes. Hoje mesmo, já são quatro matérias nesse sentido. De acordo com o próprio Luz Nassif, referindo-se ao seu texto recente sobre as “moedas escondidas”, o tema provoca uma enorme discussão.

    As investigações históricas de Laum até Le Goff, citadas por Robert Kurz (“Dinheiro sem valor – Linhas gerais para a transformação da crítica da economia política, 20. O sacrifício e o regresso perverso do arcaico”), contextualizadas pelo autor, “ignoradas tanto pela chamada ciência económica como pelo marxismo, e que também nas ciências históricas se mantiveram marginais até à data ”, assim esclareceram sobre a genealogia da moeda (dinheiro):

    “O que era o dinheiro pré-moderno? começou por ser o gelt, o sacrifício aos deuses, que originalmente foi um sacrifício humano. Com este gesto pagava-se uma “culpa” ou, melhor dizendo, cumpria-se um “dever” para que o Sol voltasse a nascer todos os dias, para ser possível a alimentação no “processo de metabolismo com a natureza” (Marx), talvez para afastar ou atenuar as desgraças e os golpes do destino, etc. Esta “objetualidade do sacrifício” simbólica, mas necessariamente material, percorreu, em primeiro lugar, um espectro histórico de metamorfoses, de substituições. Mas não substituições de Deus, como Bolz opina e Benjamin poderia dar a entender, mas substituições da própria vítima: desde os seres humanos jovens de uma rara excelência ou especial beleza, passando pelo gado bovino ou cavalar e outros animais sacrificiais, substituídos posteriormente pelas representações simbólico-materiais desses animais na forma de bolos ou hóstias, até ao metal precioso e à moeda cunhada. A estrutura deste “dever sacrificial” foi, em seguida, transferida sob múltiplas formas para as inter-relações sociais das pessoas, mas com isso não foi de modo algum “secularizada”; pelo contrário, a relação social (imanente) foi derivada da relação (transcendente) com Deus e constituída como estrutura complexa de “deveres” tanto pessoais como institucionais, de acordo com o exemplo da objetualidade do sacrifício. Isto não tinha nada a ver com uma economia ou um modo de produção no sentido do “trabalho abstracto” e das relações de valor.

    Ora, em que consiste o salto qualitativo no estatuto do dinheiro que, sob a forma de um processo, se desenvolveu desde a chamada protomodernidade com base nas condições da crise religiosa e da revolução militar? O aspecto fulcral profundamente irracional ou até “insano” consiste no facto de a velha objectualidade do sacrifício, por esse reacoplamento a si própria se ter transformado num movimento de fim-em-si abstracto e, justamente, se ter substituído assim ao poder transcendente. O sacrificado ao mundo dos deuses transformou-se ele próprio em quase-deus. Do ponto de vista de qualquer religião, só podemos estar aqui perante uma enorme blasfémia. Mas a religião não era nenhum mero sistema de crenças, mas uma relação de reprodução transcendentemente ancorada no “processo de metabolismo com a natureza” e nas relações sociais. Na medida em que se convertia num fim-em-si terreno em processo, a objectualidade do sacrifício era desvinculada da referência à transcendência divina e gradualmente, com ela, também a totalidade da reprodução. O que restou foi a expressão material da objectualidade do sacrifício que, afinal, já alcançara a forma de moeda ainda no seu antigo sistema de referência.”

    Os artigos recentes e seus comentários, todos ricos em informações e algumas especulações divergentes sobre as moedas-escondidas, permitem confirmar que o assunto está longe de se constituir em um consenso.

    Ou muito me engano em meu empirismo ou a unanimidade desses artigos comungaram pelo menos no ponto comum, mais ou menos “escondido”, de que o capitalismo é o destino natural do homem e assim seguirá, “ad eternum”.

    Ao que tudo indica, portanto, as moedas-escondidas teriam chegado para executar o moto-contínuo de sua reinação sobe a terra, quer se goste ou não delas.

    Desses artigos, o que mais chamou minha atenção, particularmente, foi o do Nader Amadeu, “Como chegaremos à idade das trevas em uma geração”. Especificamente, a passagem em que o autor antevê as consequências distópicas do “anarcocapitalismo”, termo, aliás, não utilizado na matéria em apreço.

    Anarcocapitalismo, ou capitalismo sem Estado, é a consequência óbvia do capitalismo que, valendo-se em larga escala da capacidade tecnológica – cripotgrafia, a exemplo do “Blockchain” – de esconder “não só todo nosso dinheiro mas também uma inúmera gama de ativos (ações, bens, imóveis, títulos de propriedade, registros, documentos e dados pessoais)” (Nader Amadeu), leva o Estado da asfixia ao encolhimento e, “in extremis”, à extinção. Isso porque tais ativos escondidos têm a capacidade de serem transacionados pelos proprietários, produtores, prestadores e consumidores sem intermediações. A rigor, necessitariam apenas de uma rede mundial de computadores, seja ela qual for no futuro. Assim o Estado, por meio das instituições que regula – bancos, notadamente – se vê tolhido da possibilidade de aferimento das trocas de titularidade de ativos e consequente da cobrança dos impostos que incidem sobre essas trocas.

    Os elementos fortes que creio haverem sido desconsiderados nas previsões apocalípticas do Nader Amadeu, assim como também desconsiderei de forma muito mais tosca em comentário igualmente apocalíptico anteriormente postado sobre o assunto, foram dois.

    O primeiro diz respeito ao fato de que, na sociedade de mercado, o único e último LASTRO de qualquer moeda, o único meio de geração de valor real é o trabalho humano. Isso é elementar, apesar de constatar cada vez mais esquecido. Esse LASTRO se dá pela apropriação, por parte do capitalista, da mais valia que expropria do trabalhador.

    Antes comentar mais sobre este “primeiro ponto”, contudo, peço licença ao leitor paciente para a reprodução ilustrativa, a seguir, da única passagem (fragmento) de Karl Marx, na qual ele fala sobre o fato de o uso das máquinas representarem uma contradição insanável do capitalismo, condutora, portanto de seu fim e propiciadora de sua superação. Tal fragmento sobre as máquinas o que pode ser estendido, sem maiores reparos, ao atual estágio de desenvolvimento tecnológico da informática e sua congênere, a robótica, aplicados ao trabalho, realidade histórica contemporânea evidentemente inexistente ao tempo de Marx:

    “A troca do trabalho vivo pelo trabalho objectivado, quer dizer, a manifestação do trabalho social sob a forma antagónica do capital e do trabalho, é o último desenvolvimento da relação do valor e da produção baseada no valor. O pressuposto desta relação é – e continua sendo – que a massa de tempo de trabalho imediato, a quantidade de trabalho utilizada, representa o fator decisivo da produção de riquezas. Ora, à medida que se desenvolve a grande indústria, a criação de riquezas depende cada vez menos do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho utilizada, e cada vez mais do poder dos agentes mecânicos postos em movimento durante a duração do trabalho. A enorme eficiência destes agentes, por sua vez, não tem qualquer relação com o tempo de trabalho imediato que custa a sua produção. Depende, antes, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção. (O desenvolvimento das ciências – entre as quais as da natureza, bem como todas as outras – é, certamente, função do desenvolvimento da produção material). A agricultura, por exemplo, torna-se uma simples aplicação da ciência do metabolismo material e o modo mais vantajoso da sua regulação para o conjunto do corpo social. A riqueza social manifesta-se mais – e isto revela-o a grande indústria – na enorme desproporção entre o tempo de trabalho utilizado e o seu produto, assim como na desproporção qualitativa entre o trabalho, reduzido a uma pura abstração, e o poder do processo de produção que ele controla. O trabalho já não surge tanto como uma parte constitutiva do processo de produção; ao invés, o homem comporta-se mais como um vigilante e um regulador face ao processo de produção. (Isto é válido não só para a maquinaria, como também para a combinação das atividades humanas e o desenvolvimento do intercâmbio humano). O trabalhador não mais introduz a matéria natural modificada (em ferramenta) como intermediário entre si e a matéria; antes introduz o processo natural – transformado num processo industrial – como intermediário entre si e toda a natureza inorgânica, dominando-a. Ele próprio coloca-se ao lado do processo de produção, em vez de ser o seu agente principal. Com esta transformação, não é o tempo de trabalho realizado, nem o trabalho imediato efetuado pelo homem, que surgem como o fundamento principal da produção de riqueza; é, sim, a apropriação do seu poder produtivo geral, do seu entendimento da natureza e da sua faculdade de a dominar, graças à sua existência como corpo social; numa palavra, é o desenvolvimento do indivíduo social que aparece como a pedra angular da produção e da riqueza. O roubo do tempo de trabalho de outrem sobre o qual assenta a riqueza atual surge como uma base miserável relativamente à base nova, criada e desenvolvida pela própria grande indústria. Logo que o trabalho, na sua forma imediata, deixe de ser a fonte principal da riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser a sua medida, e o valor de troca deixa portanto de ser a medida do valor de uso. O trabalho excedente das grandes massas deixa de ser a condição do desenvolvimento da riqueza geral, tal como o não-trabalho de alguns poucos, deixa de ser a condição do desenvolvimento dos poderes gerais do cérebro humano. Por essa razão, desmorona-se a produção baseada no valor de troca, e o processo de produção material imediato acha-se despojado da sua forma mesquinha, miserável e antagônica, ocorrendo então o livre desenvolvimento das individualidades. E assim, não mais a redução do tempo de trabalho necessário para produzir trabalho excedente, mas antes a redução geral do trabalho necessário da sociedade a um mínimo, correspondendo isso a um desenvolvimento artístico, científico, etc. dos indivíduos no tempo finalmente tornado livre, e graças aos meios criados, para todos. O capital é em si mesmo uma contradição em processo, [pelo fato de] que tende a reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, enquanto, por outro lado, coloca o tempo de trabalho como a única medida e fonte de riqueza. Assim que, diminui o tempo de trabalho na forma necessária para aumentá-lo na sua forma excedente; coloca portanto, o trabalho excedente, em medida crescente, como uma condição – questão de vida ou de morte – para o necessário. Por um lado, o capital convoca todos os poderes da ciência e da natureza, assim como da cooperação social e intercâmbio social, com o fim de tornar a criação de riqueza independente (em termos relativos) do tempo de trabalho empregado nela. Por outro lado, o capital necessita de utilizar o tempo de trabalho como unidade de medida das gigantescas forças sociais entretanto criadas desta maneira, e para as confinar dentro dos limites requeridos para manter o valor já criado como valor. As forças de produção e as relações sociais – dois aspectos diferentes do desenvolvimento do indivíduo social – aparecem ao capital como meros meios, e não são para ele mais que meios para produzir apoiando-se na sua base limitada. Na verdade, contudo, elas são as condições materiais para rebentar com essas mesmas bases. “Uma nação é verdadeiramente rica quando em vez de 12 horas se trabalha apenas 6. Riqueza não é dispor de tempo de trabalho excedente” (riqueza efetiva), “mas de tempo disponível, para além do usado na produção imediata, para cada indivíduo e para toda a sociedade”. [The Source and Remedy, etc., 1821, p.6.]

    A natureza não produz máquinas, locomotivas, caminhos-de-ferro, telégrafos, etc. Estes são produtos da indústria humana; materiais naturais transformados em órgãos da vontade humana sobre a natureza, ou da participação humana na natureza. Eles são órgãos do cérebro humano, criados pela mão humana; o poder do conhecimento objetivado. O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o conhecimento social geral se tornou uma força produtiva imediata, e, portanto, até que ponto, as condições do processo da própria vida social está sob o controlo do intelecto geral e foi transformado de acordo com ele. Até que ponto as forças produtivas sociais foram produzidas, não só sob a forma de conhecimento, mas também como órgãos imediatos da prática social, do processo vital real.”

    A atual inflação das moedas fiduciárias ou “fiat”, reflete o adiantamento, por parte da economia de mercado, de valores reais a serem supostamente apropriados sob a forma de mais valia do trabalho humano futuro a prazos estratosféricos, cada vez mais próximos do infinito sob a forma de crédito.

    Ao mesmo tempo, isso embute e reflete a incapacidade crescente do mercado poupador de mão de obra de gerar valores reais. Mesmo em um país atrasado como o Brasil, vivemos em um mundo no qual o trabalhador, gerador de mais valia e consumidor, substituído pelas máquinas (informática, robótica), vai se tornando, de maneira crescente, cada vez mais obsoleto, sendo por isso inevitavelmente descartado pela própria economia de mercado que engendra a inutilidade do trabalho.

    Portanto e retomando o fio da meada, o primeiro ponto que creio haver sido desconsiderado por Nader Amadeu é o fato de que a ampliação do uso da estratégia dos ativos-escondidos pela economia de mercado é incapaz de deter o avanço das contradições que conduzem ao fim do capitalismo.

    Isso merece ser aprofundado, admito. Contudo, creio que tudo leva a crer que o fenômemo em si dos ativos-escondidos aponta em direção oposta aos meros “novos caminhos” para a “eterna” sociedade de mercado. Ao contrario, é mesmo um sintoma de seu fim.

    Isso porque, ao supostamente substituir a força de trabalho humano pelo “quantum” da energia despendida para o acoplamento de valor às moedas escondidas, de acordo com os pressupostos da economia de mercado, que a criptografia aplicada não pretende substituir mas sim potencializar, anula assim qualquer possibilidade de LASTRO para tais moedas.

    Em última instancia, inflacionado ou não, fiduciária ou não, talvez seja preciso repetir até a exaustão para que os “esquerdistas” seduzidos pelo sujeito automático do capitalismo compreendam, o verdadeiro LASTRO do dinheiro é o trabalho morto – mais valia do trabalho apropriado no passado – que ele escamoteia. Portanto, jamais a “energia” será capaz de substituir tal premissa básica do capitalismo, o fundamento em si do tal “mercado”, e jamais as moedas assim geradas terão qualquer valor real em sua composição.

    O segundo ponto entendo como sendo o mais importante, porque condicionado e não determinado em termos de desenvolvimentos históricos lógicos, como o débâcle inevitável do capitalismo devido as suas contradições intrínsecas, como bem previu Marx. Alguém ainda duvida que estamos assistindo ao asselvajamento da sociedade de mercado a olhos vistos?

    Este segundo ponto é o porvir possível.

    Ora, Nader Amadeu não considerou seriamente que, quando o mercado deixar cada vez mais de cumprir suas promessas, no “espaço de uma geração” como diz o titulo de seu artigo, seguirá aumentando a massa de descontentes e não apenas o número de fascistas dispostos a se tornarem milicianos apoiadores de micro-estados, a surgirem feito pipocas feudais como meio de assegurar a opressão dos despojados e a manutenção deles ao largo da catástrofe prenunciada.

    Eis o campo de atuação que cada vez mais se abrirá para movimentos organizados coletivistas, para a atuação política de pensamentos solidários contrapostos à barbárie que se avizinha. É possível imaginar, ainda, o papel relevante que provavelmente passarão a desempenhar os movimentos identitários com bases nacionais residuais, herdeiros dos antigos estados, não mais com escopo competitivo e, portanto reacionário, pois isso, a competição, é inerente à sociedade de mercado com prazo de validade vencido.

    É razoável imaginar que a disputa deixará de ser a de todos contra todos, passando a ser entre fascistas de um lado e massas desvalidas de outro. Não haverá mais a possibilidade factível e objetiva de cooptação de tais contingentes populacionais, cuja superioridade numérica aos fascistas arregimentados pelos “senhores” será avassaladora, pois não haverá o que ser prometido em troca.

    O mais provável, portanto, é que os que ainda se dedicarem à concentração de riquezas e recursos naturais em detrimento da esmagadora maioria sejam expropriados e combatidos. Eles provavelmente fenecerão aniquilados, pois será impossível o monopólio das armas em uma tal perspectiva, no qual os recursos naturais e os meios de produção se encontram espalhados em escala mundial. O conhecimento para a exploração de tais instrumentos e recursos também é um patrimônio humano cada vez mais socializado.

    Face ao longamente exposto, creio ser preciso que as forças progressistas, sobre as quais fatalmente recairão as responsabilidades de uma tal superação, comecem a abrir os olhos e reassumam suas antigas bandeiras históricas.

    O tempo de uma geração passa ligeiro. O comunismo capitalista de estado é história; a social democracia se mostra incapaz de deter a perda crescente de direitos das massas, antes sendo facilmente cooptada pelo mercado. Em um mundo onde o capitalismo chega ao fim, a saída emancipadora talvez seja ANARCOCOMUNISMO.

    Salve-se do capitalismo enquanto é tempo.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador