Por mais odioso que Delcídio seja, pior é começar a destruir o que já temos, por Roberto Tardelli

Do Justificando

Por mais odioso que Delcídio seja, pior é começar a destruir o que já temos de tão pouco

Roberto Tardelli

Quem não o conhecia, conheceu-o e o detestou. Sua conversa, seu tom de voz e sua arrogância foram tão transcendentalmente humanas que poucos roteiristas teriam tamanha criatividade. Em uma tacada, em uma conversa, ele revelou uma sordidez nunca antes vista na história deste país. O cara é senador, cheio de poderes e pompa, líder de um governo cada vez mais alquebrado e que demonstra que nem só de voto vive a legitimidade. Senador da República, oito intermináveis anos de mandato. Antes de ser senador pelo PT, passeou por outros partidos, foi do inimigo, foi ministro, foi chapa quente, foi tudo, bom de conversa, um grande articulador, como gostam de dizer os analistas políticos, escolhido dentre todos pela Presidenta da República, que o viu como aquele que reunia os méritos e a arte de liderar a infantaria governista no Senado. Em poucos minutos, porém, revelou ser um farsante, mais um farsante, só que um farsante falastrão, canastrão, e, nesse festival do ão, um bocão. Prometeu ao filho de um réu, O Réu, imortal Cerveró, desses que saíram da ficção para a realidade, mundos e fugas, granas, aviões, vida na Europa, cinquenta mil por mês. Disse conhecer os Ministros, ser amigo, disse – sem dizer textualmente – que poderia ajeitar as coisas lá, no Olimpo, onde residem os deuses irrecorríveis. Estava à vontade, desinibido, seguro de si e de sua onipotência senatorial. Um cara horrendo.

Como não festejar que um ser humano de tão baixa qualidade seja preso, levado ao xilindró, com seus ternos de linho, sua arrogância, sua empáfia, seu cabelo armado, que viesse, cedinho, em cana? Junto com ele um banqueiro, único semovente mais odiado que o político, e um advogado (esse, preso, nos Estados Unidos da América, para dar o glamour folhetinesco que faltava). O trio medonho preso por ordem do Olimpo. Gritamos gol e nem era da Alemanha, era gol nosso, tupiniquim. Horas depois, um Senado inteiro, envergonhado e constrangido, de rabo entre as pernas e assustado, votava por ampla margem à manutenção da prisão do companheiro, do chapa e do ex-amigo, com direito a mais um momento de humilhação, o PT, quem te viu quem te vê, tentou desesperadamente passar o voto secreto, uma imoralidade em si mesma, quando se trata do voto parlamentar. Não precisávamos disso. O senador dormiu a primeira noite na cadeia, homologadamente preso, por vontade do Legislativo e do Judiciário, através de suas Casas Superiores.

Nas horas que corriam, um sentido ambivalente nos tomava, um misto de alívio e de terror. Alívio porque nossa fúria foi rapidamente satisfeita, e terror porque a prisão foi assustadoramente ilegal.

O parlamentar no Brasil é protegido pelo art. 53, da Constituição, que traça um sistema de garantias, fundamental para funcionamento do regime democrático, ainda que se corram riscos calculados. Um deles está em que desde a expedição do Diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável (§ 2º). Isso é tão sagrado que essas garantias, assim como outras, subsistirão durante o estado de sítio só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços da Casa respectiva (§ 8º). Por mais que o Ministro Relator tenha insistido que houve flagrante, disse-o valendo-se do argumento de autoridade, o mesmo capaz de impor pela força afirmar-se que o quadrado é redondo. Porém, ainda que tomássemos o exercício da autoridade, faltaria o segundo quesito, o da inafiançabilidade do crime. A prisão, tal como foi decretada, desrespeitou a Constituição.

Porém, mais grave ainda, é que os juízes, Ministros da Suprema Corte, que decretaram a prisão, estavam impedidos de fazê-lo pela singela razão de que foram vítimas das difamações provavelmente proferidas pelo Senador. Nessa situação bizarra, a vítima julgou e mandou prender seu agressor, o que representa ofensa ao mais palmar dos princípios de direito, a imparcialidade do juiz. Imagine o amigo se o dono do carro que você amassou na rua fosse a mesma pessoa que julgasse a indenização que ele mesmo propôs; imagine se o juiz que julgasse a guarda dos filhos fosse também o pai em litígio… foi o que ocorreu: os Ministros, que se sentiram gravemente ofendidos julgaram o ofensor; resultado: cana; recuamos séculos e, obliquamente, tornamos privada a Justiça Pública.

Resumindo: não houve flagrante, o crime não era inafiançável e os juízes estavam impedidos. O mais preocupante é que não há juízes acima daqueles que o fizeram para corrigir o abuso. O Supremo, Guardião da Constituição, teve seu dia de desrespeitá-la explicitamente. Quem nos protege do vacilo do Guardião? Ninguém.

Quando um sistema de garantias se transforma em um sistema de conveniências, a democracia acaba indo para o ralo e todos os agentes públicos ficam com suas autonomias barateadas na ponta de iceberg que pretende afundar o Titanic da impunidade, mas que pode afundar toda a frota democrática, construída tão sofridamente.

Meu medo é que a euforia de hoje seja a ressaca de amanhã, quando pouco restará a ser feito. Por pior que seja o Senador, que ele seja julgado e eventualmente punido, com seus direitos assegurados, por mais odioso que ele seja, pior e mais odioso é jogar tudo para cima, relativizando garantias constitucionalmente asseguradas, é começar a destruir o que já temos de tão pouco: o Estado Democrático de Direito.

Roberto Tardelli é Procurador de Justiça aposentado (1984/2014), onde atuou em casos como de Suzane Von Richthofen. Atualmente é advogado da banca Tardelli, Giacon e Conway Advogados, Conselheiro Editorial do Portal Justificando.com e Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

 

Redação

Redação

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  • Foi o que eu disse aqui desde

    Foi o que eu disse aqui desde o início: prenderam porque ele citou os nomes dos Ministros. Esse foi o motivo.

    Infelizmente, o Ministro Teori Zavascki que parecia sério, manchou a sua biografia indelevelmente. Por que ele não se declarou impedido e passou o caso a outro ? Qual o medo ?

    Nem havia me tocado da questão do impedimento dos ministros citados.

    Caberia à defesa de Delcídio solicitar esse impedimento, não ? E que o processo passasse às maões de outro ministro, e os 4 ou talvez toda a turma ficasse de fora.

    O problema é o espírito de corpo do STF. Ainda que isso seja feito será que um Lewandowisk ou um Barroso iriam, como fez Zavascki, sujar a sua biografia ou prefeririam enfrentar os demais ministros e defender a constituição ?

     

  • Neste verdadeira "zona de

    Neste verdadeira "zona de meritrício" a que transformaram nossos juízes, políticos e mídias, está cada vez mais difícil saber quem na verdade fixa os preços, se a dona do meritrício ou as do ofício. A única certeza que temos e a que todos nós é dado hoje assistir, é saber, cada vez mais, que todas estas instituições vivem e se enlameiam do trabalho desonesto.

  • Outra ótima análise!

    Como o post "Para (não) entender a prisão de um Senador pelo STF", segue esse post a linha da democracia e do direito.

    O STF passou a ser o interprete da Cosntituição e não mais seu Guardião.

    Comparando, é como muitos pastores e padres, nos seus discursos para os fiéis, interpretam as passagens da Bíblia, cada um da sua maneira e com a sua régua moral e intelectual.

    É preocupante, demasiadamente preocupante, que a mais alta corte de justiça do país faça interpretações convenientes da Cosntituição e procure arranjos legais para justificar o seu ultraje.

    Imparcialidade, bom senso, ação técnica e precisa é isso que esperam os cidadãos do STF, porque hoje o que para alguns é motivo de riso e satisfação pode amanhã, da mesma forma, ser motivo de lágrimas e desespero.

    E que fique claro que em momento algum estou, com a minha opinião, defendendo as ações do senador ou mesmo do PT.

  • Texto integralmente

    Texto integralmente brilhante. Nessa babel em que se transformou, por questões políticas, o nosso sistema estatal de persecução penal (Judiciário, Ministério Público e Polícia), o STF era a última trincheira de imparcialidade, ainda que tenha entre seus quadros figuras como Gilmar Mendes. Será que depois dessa fissura ainda há saída institucional?

  • O que fazer então???

    E agora!!!

    Agradeço a todo momento o governo da Presidenta Dilma.

    Vai todo mundo chafurdar na lama...

    O PT vai podando os galhos podres... tem muito ainda...

  • O Estado desmoralizado

    A quem serve a desmoralização total dos poderes do Estado? Se o Judiciário caminha agora incólume e altaneiro podemos afirmar que se avizinha também a sua degola. A democracia corre um risco imenso nesse momento, pois o vazio de poder já está ai notabilizado e evidente, pronto para ser apropriado por oportunistas e farsantes.

  • Pelo amor de Deus.
    Virem o

    Pelo amor de Deus.

    Virem o disco.

    STF e o SENADO FEDERAL aprovaram a prisão.

    De que aduianta ficar fazendo masturbação mental sobre esse tema.

    Tem coisa mais interessante: delação de Cerveró.

     

     

  • Então,  é por isso que existe

    Então,  é por isso que existe o impedimento, para que não se decida com emoção ou se o sujeito está de alguma maneira envolvido no caso. Isso vai servir para professores de direito colocarem como exemplo para seus alunos, ilustrando o capitulo do impedimento de juízes, só sinto que o exemplo foi a Suprema Corte quem deu.

    • Que ele seja um canalha

      mas esse fato não pode ser usado para se rasgar a constituição; se o STF age assim com um senador em exercício de mandato, só fico imaginando o que pode autorizar a PF fazer em nome da tal luta contra o "escárnio que venceu o cinismo" contra um cidadão comum.

      Canalha também é o Cunha, um pulha achacador, chantagista e que gosta de ameaçar quem lhe denuncia; será que o STF vai ter "brios purificadores" pra enquadrar também esse cidadão? Eu, minha cara, tenho certeza que não; Cunha e outros patifes da Terra de Vera Cruz continuarão livres, leves e fagueiros... e com a conivência sim do STF.

    • Delcidio agiu como um

      Delcidio agiu como um canalha. Pode até merecer ser codnenado após garantido a eles todos so direitos e garantias fundamantais incluindo o transito em julgado quando será formalmente considerado culpado.

      Na minha humilde opinião ele merece, até para deixar de ser burro e arrogante brasileiros.

      Nós é que não merecemos a ameaça ao Estado Democratico de Direito, as garantias constitucionais que nos torna u país civilizado. E  amaeça vinda dos proprios guardiões da CF.  O Brasil  e seu povo não merecem isso.

    • Me desculpe,

      mas não é por aí. Que Delcídio é um canalha parece que quase ninguém mais duvida, mas não é verdade que "merece estar preso", ao menos neste momento, já que sua prisão, da forma como ocorreu, foi ilegal e, principalmente, inconstitucional, conforme muito bem demonstrado pelo corrajoso professor. A bem da verdade, ao julgar "com o fígado",  em causa própria e ao arrepio da Constituição, aqueles membros da nossa "Suprema Corte" cometeram crime bem mais grave que as bravatas e picaretagens do Delcídio. 

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