De como Sócrates e Diógenes quase viraram a poderosa Esparta de cabeça para baixo

Por Sebastião Nunes

A melas zomós era simplesmente intragável. Diante da sopa negra espartana – carne de porco refogada, sangue de porco fervido e vinagre, aquela papa marrom, viscosa e agridoce –, o filósofo ateniense tinha mais era de torcer o nariz, enojado.

            – Mas, pelo amor de Zeus, Licurgo! – reclamou Sócrates depois de provar a sopa. – Como é que alguém consegue engolir isso? Nem Diógenes, com seu estômago de cão.

            Presente à mesa – era um dos dois convidados –, o filósofo cínico reagiu:

            – Não senhor, eu não – gritou Diógenes, irritadiço como sempre, quase esfregando o dedo no nariz de Sócrates. – Estou comendo três cebolas pequenas cruas e bebendo hidromel sem álcool. Apenas isso. Não me meta nessa história de sopa!

            Licurgo olhou espantado. Havia convidado os dois filósofos atenienses para discutir a nova legislação espartana e não a comida. E foi o que disse:

            – Vejam bem, meus amados. Vocês foram convidados para algo muito sério: ajudar na revisão das leis da cidade. E é isso que iremos fazer, depois da refeição.

COMEÇA UM DIÁLOGO SOCRÁTICO

            – Vamos supor, meu caro Licurgo, que uma mosca caia na sopa – começou Sócrates, como quem não quer nada. – Ela morreria afogada ou de desgosto?

            – Mas o que isso tem a ver com legislação? – inquietou-se Licurgo.

            – Precisamente – respondeu pacientemente Sócrates. – Não tem nada a ver. Mas você não me respondeu.

            – Bem, morrer afogada, seria difícil – ponderou Licurgo. – A sopa é muito espessa. Carne e sangue são cozidos separados em fogo brando durante horas, até que a consistência fique bastante pastosa para permitir ser levada com os dedos à boca. Quanto ao vinagre…

            – Meu bom Licurgo – cortou Sócrates. – Não pretendo discutir a receita de sua famosa melas zomós, que causa engulhos até em Diógenes, acostumado com sopa de pedra.

            – Já disse e repito, senhores – gritou novamente o filósofo cínico. – Não me metam nessa história de sopa!

            – Não fique irritado, meu amigo – ponderou Sócrates. – Tudo o que pretendo saber de Licurgo é se uma mosca, caindo na sopa negra, morre de fome ou de desgosto.

SEGUE O DIÁLOGO SOCRÁTICO

            Com os olhos arregalados de espanto, a boca aberta de estupefação, Licurgo viu-se perdido entre os dois filósofos, que o ladeavam. “Serão loucas essas criaturas? Terei convidado dois malucos para discutir leis? E se essa doidice for contagiosa?”. Mas logo se recuperou. “Não, não há de ser nada grave. É apenas a maneira socrática de iniciar qualquer conversa. Preciso ver até onde ele vai.”

            – Pois bem, Sócrates – suspirou Licurgo. – Vamos continuar.

            – Nesse caso, repito a pergunta – disse Sócrates. – Se uma mosca cair na sopa negra, ela morrerá afogada ou de desgosto?

            – Como não é possível que morra afogada – argumentou Licurgo –, devido à alta densidade da sopa, que fará flutuar o corpo da mosca, com certeza morrerá de desgosto, se não houver alternativa, embora eu não saiba o que você pretende demonstrar.

            – Chegaremos lá – continuou Sócrates. – Quer dizer que Licurgo, o grande legislador espartano, admite que a sua sopa negra é capaz de matar de desgosto até uma mosca.

            – Por Zeus! – esbravejou Licurgo. – Eu não disse isso. Apenas, de acordo com as duas opções que me deu, descartei uma dela. Mas jamais afirmei que a mosca morrerá de desgosto por engolir um pouco de sopa.

            – Qual é a sua opinião a respeito disto, Diógenes? – indagou Sócrates, atraindo o filósofo cínico para a discussão.

            – Não, não e não, meu caro – contestou Diógenes. – Não meto a mão nessa cumbuca. Estou comendo cebola crua e bebendo hidromel. Nem olhei para essa horripilante sopa.

 

MAIS UM POUCO DE DIÁLOGO

            Licurgo estava perplexo com seus convidados. Conhecia a teimosia de Diógenes e o prazer de Sócrates em contradizer seus interlocutores. Mas jamais imaginaria que, em vez de discutir leis, preferissem – quer dizer, Sócrates preferisse – discutir moscas e sopa.

            – Meus amigos – recomeçou ele, tentando voltar ao princípio. – Vocês são convidados de Esparta e devem ser respeitados, mas estou confuso. Vamos ou não vamos discutir leis?

            – Sem dúvida, Licurgo – disse Sócrates, espantando uma mosca que teimava em lhe pousar no nariz. – Sem dúvida, e até digo mais: já estamos discutindo leis.

            – Como, discutindo leis? – espantou-se mais uma vez Licurgo. – Estamos discutindo o destino de uma mosca. O que isso tem a ver com leis?

            – Mudarei então o foco – disse Sócrates. – Todos os cidadãos espartanos, Licurgo inclusive, são obrigados a comer, como única refeição diária, e a comer em conjunto, como se numa grande festa, a melas zomós, não é mesmo?

            – Sim – concordou Licurgo. – É a alimentação diária de todos os cidadãos, que a comem uma única vez ao dia, estejam em Esparta ou em combate.

            – E quando morrem em combate, como se sentem? – indagou Sócrates.

            – Sentem-se felizes e orgulhosos de morrer combatendo pela pátria.

            – Não é esse o ponto, meu amigo – discordou Sócrates. – Pergunto como se sentem na relação entre sopa e morte. Será que se sentem felizes em morrer combatendo pela pátria ou por não ter de comer, nunca mais, a sopa negra?

            – Mas isso é uma blasfêmia! – gritou Licurgo. – Evidentemente morrem felizes por morrerem pela pátria, e nada mais. Não me parece que pensem em sopa nessa hora.

            – Será que não? – duvidou Sócrates. – Nos campos de batalha que visitei, vi muitos cadáveres de espartanos com o que eu chamaria de um sorriso nos lábios.

            – Mas se eu já disse! – desesperou-se Licurgo. – Sorriem de felicidade, por alcançarem a Excelência dos Heróis, dos Semideuses e dos Deuses. Sorriem de felicidade porque morreram combatendo pela pátria, e nada mais.

 

CHEGA AO FIM O DIÁLOGO

            Sócrates olhou em volta. Dezenas ali perto, centenas um pouco mais longe, milhares ao longo da enorme praça, os cidadãos espartanos engoliam a sopa e não pareciam felizes.

            – Os vivos não me parecem felizes – disse Sócrates. – O que acha você, Diógenes?

            – Realmente – disse lentamente o filósofo cínico, ainda mastigando cebola crua. – Os vivos não parecem felizes.

            – Muito bem – continuou Sócrates. – Como dirá no futuro certo filósofo pessimista, generalizando para toda a humanidade, “os homens morrem e não são felizes”. Será um tal de Albert Camus, norte-africano exilado na Gália, quem dirá isso. Parece que aqui também é assim. Os espartanos morrem em casa, na rua, nas enfermarias ou na guerra, e não são felizes. A vida inteira comendo a terrível melas zomós, essa horrível sopa negra. Por Zeus!

            Não mais podendo se conter, Licurgo expulsou da mesa e de Esparta os dois filósofos, que foram obrigados a partir imediatamente, antes de desestabilizarem a Cidade-Estado, levarem à revolta os cidadãos e os transformar em abjetos adoradores de bolos de carne fritos na chapa, que futuramente se chamariam hambúrgueres.

            “Atenas para os atenienses, Esparta para os espartanos: o futuro decidirá”, foi o que pensou Sócrates, resignado, ao embarcar numa trirreme. E acrescentou, ainda em pensamento: “Se eu fosse obrigado a comer essa porcaria todo dia, preferiria beber cicuta”.

Sebastiao Nunes

Sebastiao Nunes

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  • A arte de sofismar

    Meu caro Sebastião Nenes, entre gregos e troianos ou espartanos e atenienses, jamais houve consenso muito menos verdadeiras concessões ;)

    Os gregos geograficamente estão distante da América do Sul, mas tão perto de nossas mentes e corações...

  • A Geografia não é Geometria

    Caros, a proximidade geográfica se dá pelas relações que se estabelecem entre povos e não pela distância geométrica. O Espaço geogrpáfico não é um espaço geometrizado. Infelizmente, o Brasil se aproxima mais dos EUA do que dos seus hermanos latinos, apesar de fronteitas próximas. 

  • A Geografia não é Geometria

    Caros, a proximidade geográfica se dá pelas relações que se estabelecem entre povos e não pela distância geométrica. O Espaço geogrpáfico não é um espaço geometrizado. Infelizmente, o Brasil se aproxima mais dos EUA do que dos seus hermanos latinos, apesar de fronteitas próximas. 

  • se eu fosse obrigado a

    se eu fosse obrigado a engolir essas mentiras e

    invenções e infamias da grande mídia golpista brasileira, eu preferirira

    beber cicuta - teria pensado sócrates além-paraíso, com

    um brilhante sorriso no rosto.....

    • Mídia golpista brasileira, virou sopa negra.

      Realmente, a intragável melas zomós, da mídia corrupta brasileira:

      Ingredientes:

      Mentiras (SANGUE) 

      Invenções (CARNE DE PORCO) 

      Infamias (VINAGRE).

      Cozinhar em fogo brando e quando ficar uma  papa marrom, viscosa e agridoce, está pronta.

      Não sei quando, mas os GOLPISTAS ainda serão obrigados a tomar o próprio VENENO.

  • Lições da História

    Nassif: essa do Sebastião foi, inteligentemente, no gogó. E no meu modesto entender, alcança a todos nós, ativos e passivos nesta “sopa negra” da política atual.

    A aparente “apatia” do governo, a começar pelo Lord Chancellor, permite tal estado de coisas, onde agentes de interesses local e além de nossas fronteiras, municiados de dólares e euros para comprar a conivente e obscura grande mídia, bem como corromper agentes públicos, em todos os graus e esfera funcional, para seus negócios malignos, dentro e fora do Brasil e encenar a farsa e a tragédia que vivenciamos hoje (ou sempre?).

    Sabemos da preocupação e atuação do governo em defesa dos nossos interesses. Nós, do Povo, a elegemos para governar para gregos, espartanos e troianos, e mesmo minorias além do Peloponeso, desde que fiquem todos ele nos seus respectivos lugares, respeitando para serem respeitados. Não para ver a Presidenta achincalhada, humilhada e ver seus amigos e correligionários (só estes “vêm ao caso”) levados à sarjeta por boa parte do Ministério Público, que, como comprova a grande mídia, vaza informações sigilosas para enlamear reputações, a partir de reles indícios, muitos deles plantados por seus asseclas. O Judiciário, apesar da mensagem recente do Supremo Tribunal Federal, é cumplice, em sua maioria. E da Polícia Federal, esta dispensa comentários.

    Presidenta Dilma esqueça os Partidos, inclusive o seu, que é um Partido como outro qualquer, inserido no contexto das negociatas. Ponha, imediatamente, o bloco do seu governo na Sapucaí, aquela passarela que o pessoal do Jardim Botânico, no tempo do Brizola e Darci, dizia que era uma inutilidade, um gasto público desnecessário. Ponha todo peso do seu governo na promoção da reforma fiscal, da reforma política, da reforma agrária. Taxe as grandes fortunas. Corte subsídios a essa imprensa marrom, que já deu mostras de não ter o mínimo de moral, princípios ou decência. Vai custar caro? É possível, Mas, nem tanto. Caro está, para toda nossa Nação, a tentativa de desestabilizá-la. Caro está atravessar esse rio com crocodilos, piranhas e outros predadores, tentando afunda seu barco. E ele naufragando, todos nós do Povo pagaremos caro, na carne, o apoio que lhe demos no pleito de 2014.

    Avente, Dilma! 

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