Dominó de Botequim, por Rui Daher

– Osorinho, você já percebeu como tudo anda confuso?

– Você fala da situação do Brasil? A tal crise?

– Também. Mas digo com a gente. A minha vida, a das pessoas mais próximas, mesmo em nosso grupo do Dominó de Botequim.

– Que contamina, contamina, mas pode ser reflexo da morte da Celebração.

– Dá insegurança. A cada minuto parece que algo vai desabar.

– Estranho, você falando isso. Sempre tão otimista. Não foi a sua terapeuta que fez a imagem de Nova York sendo bombardeada, tudo ruindo, e você no teco-teco, repetindo a certeza de que iria aterrissar?

– Outros tempos. Agora parece que nada dá certo para ninguém.

– É o seu esquerdismo. Você só pensa e escreve defendendo os pobres. Isso dá zica. Pega!

– Rico não precisa defesa nem ler o que escrevo.

– Pra mim, tá bom. Aproveito e cago quando dizem que tudo está uma merda, questão de sintonia. Trabalho, volto para casa, janto, dependendo do grau de insanidade no olhar da Alzira, tomo uma cerveja, e assisto TV até pegar no sono. Dia seguinte, levanto, faço cocô, barba, tomo banho, e volto ao trabalho. Quando foi diferente? Algum dia eles deixaram de nos enrolar por lá?

– Nesse “por lá” estão os políticos, Brasília, seus conluios com empresários para roubalheiras, as represas que o governador tão bem explica com simples silabação?

– Isso mesmo. Diz aí um período que não foi assim, o Brasil perdendo oportunidades e nós continuando na vidinha de sempre, culpando os portugueses, coitados, descobrindo saídas, para logo em seguida entrar em frias.

É, fria-quente só me lembro quando você, nervoso, discutindo o sentido do desfile militar de Sete de Setembro com o Prudêncio, deu um tapa na chapa de fazer sanduíches do Serafim.

– Doeu, mas valeu. Deixei ele puto quando disse que o desfile só faria sentido se trouxessem faixas em branco dizendo o que fizeram naquele ano.

– Não sei o que te deixaria aflito, Osorinho. Talvez, um tsunami que chegasse a Piracicaba e deixasse a Botecaria debaixo d’água. Penso no Dr. Tetê, com aquele peso e longas barbas brancas, agachado em tendas de campanha salvando vidas.

– Um tsunami desses realmente me arrasaria, mas não por tais razões.

– Uai, então, por quê?

– Acabaria por encher os reservatórios de água de São Paulo e o “Chuchu” silabaria na TV: “Não ti-ve-mos outra saída. Depois de pro-fun-dos estudos, nossos técnicos im-por-ta-ram o fenômeno da Ma-lá-sia”.

A repórter bonitinha: “Mas governador, e os milhares de mortos”? Minha filha, morreram pelos muitos mais que po-de-ri-am ter morrido por esse cas-ti-go, que São Pedro e o PT mandaram para São Paulo. A eles, Nossa Senhora de Pinda saberá re-com-pen-sar”.

– Osório você precisa consultar um médico.

– Já sei, psiquiatra.

– Não. Estamos aqui nos jardins da Paróquia da Igreja São José de Belém, não tomamos mais do que três cervejas, e você já está bêbado. Sua resistência já foi maior.

– Nada. É que vou ficando nervoso com a proximidade do final da missa e o fenômeno da Aparição.

– É, talvez, caso de psiquiatra. Que aparição, Osório?

– Alzira, querendo sentir meu bafo.

– Calma, tenho daqueles Hall’s mais fortes aqui no bolso.

A missa terminou e todos começaram a sair. Lembrei-me que o termo “alva lavada” daria vez para boas gozações, mas desisti quando vi Alzira e o Padre Luís vindo em nossa direção.

No jardim, dois gatos solenemente caminhavam sob o sol. Quando um deles parou, deitou, se espreguiçou, o outro correu saltitando no sentido contrário, como a dizer, não concordo com uma palavra do que você disse.

– Boa tarde, Padre Luís. Olá Dona Alzira.

Somente o padre respondeu:

– Mais um dia lindo.

– Pois é, comentávamos aqui sobre a falta de chuva e a necessidade de nos hidratarmos. Aceita um copo de cerveja, padre? E você Alzira?

– Por que a pergunta? Sabe que eu odeio álcool. Quando falam em hidratar-se é com água, ó grande escritor.

Ainda que o Padre Luís recebesse ordem específica do Vaticano, assinada Francisco, depois dessa não aceitaria nossa loura gelada. Argumentaria o celibato ser obrigatório.   

– Padre, confessava aqui ao Osorinho algo inquietante. As coisas estão confusas, parece que nada dá certo para ninguém. Será que esse sentimento é só meu? Garanto-lhe que não tem nada a ver com a crise.

– Acho que tem a ver com a falta de chuva, disse Osório.

Imaginei se com tal frase ele não estaria entregando seu estado etílico a Alzira.

– Mesmo sendo padre e tendo que cuidar do lado espiritual das pessoas, sinto algo parecido, meu querido Rui.

Saí um pouco da conversa, há tempos ninguém me tratava por “querido”. Luís continuou (a intimidade me fez suprimir o “padre”):

– Pode até ser a seca. Vejam como se sofre no Nordeste. Mas nas zonas urbanas as chuvas trazem mais confusão. Trânsito, guarda-chuvas furando olhos, poças d’água, lama, inundações. Ela corta a monotonia.

– Verdade, padre. Sol e céus azuis são unanimidades entediantes. Com chuva, não. As opiniões se dividem. Uns querem, outros não, muitos não dão a mínima. Diria que ela veio para confundir não para explicar, conforme o pançudo Velho Guerreiro.

– E como vai o projeto do Serafim?

– Muito confuso, padre.

– Osório, vamos embora. Não quero ouvir sobre um assunto que quase me fez perder o piano de cauda.

– Alzira, é cauda ou calda?

– Já pra casa, Osório. Me siga!  

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

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  • Forma e conteúdo

    Rui Daher, parabéns pelo texto dialogado, "dando jogo, dando liga", hoje.

    De caldas e caudas quem é que sabe, não é mesmo?

    Acho que nem a Alzira !

    E viva o povo brasileiro !

  • Rui, mais um presente ...

    Rui, mais uma domingueira fantástica !!

    Escrever é para os bons realmente.  Quando eu crescer ...   Rs.  Tua crônica não é somente verossímel. Quando leio tuas narrativas, fico sempre com uma sensação de familiaridade que extrapola a verossimilhança. Não, por favor, não tem a ver com ineditismo; é claro que o teu encontro com Osorinho acabou de acontecer!

    Mas é interessante que em algumas das passagens eu forme imagens mentais que parecem remeter a alguma coisa que já aconteceu..  Ah, releve. Tenho dormido pouco e me preocupado muito;  este clima que você descreve, essa sensação de ameaça, tem sido real. A situação do País é mesmo muito incerta, não só politicamente.  Há uma enorme incerteza quanto a trabalho, sustentabilidade, essas coisas básicas com que os "ricos" - esses mesmos da tua crônica - não precisam se preocupar.

    Deixando o sério de lado, afinal hoje é domingo, destaco a "trilha" da tua crônica. Tenho um relação afetiva forte com "Sinal Fechado" e "What a difference", bom, fez toda a diferença!!  Inclui a 2a. na minha playlist. 

    Obrigada !  Depois dessa beleza, vou pegar meu solzinho que os ossos - e a cuca - pedem e eu adoro!

    Até domingo que vem!

    Abraço.

    • Poderia está pior.

      Cara Anna Dutra, permite-me contraria-la com a premissa que se ainda podemos ter a liberdade de pegar um solzinho, tomar umas e escrever o que vem na têia" a vida não tá tão sem perspectiva assim.

      Difícil, era fazer isso, nos cinzentos tempos da ditadura, depois quase impossível, quando do desgovêrno neo-liberal, do FHC, para ficar só por aqui.

      E domingo passado, ví jovens desconhecedores da história política brasileira, pedindo a volta dos militares, e querendo "impinchar" a Pres. da República, que democraticamente eleita, resiste, e tenta devolver o crescimento do país, apesar de ter contra sí, e contra seu governo, muitos dos quais, são muito diferentes dos nossos amigos, fictícios ou não, vero-semelhantes ou não, do nosso Botequim, tão bem administrado, pelo Rui.

      • Sintonia. Sincronia. Similaridades ...

        Caro Raí,

        pode me contrariar, sem problema. Talvez eu tenha sido infeliz na escolha das palavras. Não é um problema de perspectiva; a questão é: gosto de sossego. Não tenho problema de ficar sem trabalho - já passei por isso antes - ou da grana encurtar; também já passei e não ficaram sequelas, sobrevivi. Há sempre trabalho se você corre atrás. O ponto é: tudo ao mesmo tempo!?  E a vida não é só trabalho...

        O solzinho é de graça, a cerveja é acessível, ainda há algum espaço para escrever...  Na verdade, evito me queixar. Sintonia. Rs, o Rui falou dela no post .. Falou também de um grupo de amigos, todos com problemas; esse amigos que você citou... Sincronicidades. E similaridades.

        Rui comanda bem o botequim. E tem muitos amigos por aqui. Eu mesma fui chegando, nem sei como descobri a crônica domingueira. Não lembro. Lembro de ter lido sobre o Rui deixando de publicar numa revista, mas foi bem no começo.  Talvez vocês até se conheçam de lá...

        Bom, vou te deixar com teu final de domingo. Ainda dá para relaxar um pouco.

        Até outra hora.

        • Queridos, embora em tempos,

          espaços e personagens diferentes, acabamos por nos sintonizar, e tal sintonia vai afinando na medida em que usamos as palavras certas, cordiais, reveladoras. Aos poucos, acabamos nos gostando através delas, e quando nos conhecemos pessoalmente, momentos fugazes, elas se confirmam. É como se estivéssemos nos confessando com o Padre Luís, mais pela pessoa do que pelos ritos religiosos, políticos, de dinheiro. Sintonia, sincronia, similaridades.

          • Viu só?

            Eu disse que você comanda bem teu Botequim!  Atrair as pessoas é uma arte. 

            Querido Rui, para celebrar e firmar nossa crescente amizade, tomo a liberdade de encaminhar esta canção a todos que sintonizados com estas paragens, sincronizem-se conosco. Espero que você não se importe.

            Abraço da Anna.

            [video:https://youtu.be/PeS-PBkxVhY%5D

             

          • Viva você, Rui !

            Certa vez você me confundiu, pela singularidade do meu nome, que eu fosse homem. Depois ao constatar que eu era uma mulher, escreveu que deveria ter desconfiado pela sensibilidade que eu demonstrava.

            Deve se lembrar disso.

            Vou no mesmo diapasão- homens sensíveis são também especiais. Aqui nesses seus textos dominicais estão as provas disso.

            Viva Rui !

  • Entre caldas e caudas...

    Rui, você, eu, os seus amigos(invisíveis ?)Ozorinho, Dr. Tetê, Celebração,Alzira, Prudêncio e outros menos famosos deste Botequim, não discutimos coisas e nomes confusos(depois de algumas cervejas) como caudas e caldas.

    De caudas, eu não saberia dizer, mas de Caldas, aquela cidade do sul de Minas, cujo prenome tem uns Poços(daqueles que vertem água e das boas, pois serranas, quem pode dar uma aula, é o dono deste blog, o Luis Nassif.

    Bom domingo, prá vocês todos, pois o meu, o SPFC, acaba de estragar !

    Só tomando(mais)uma !

    • Caro Raí,

      acho que nossa longevidade por aqui e a amizade com nosso "hospedeiro" me permite uma inconfidência.

      Estando eu em Poços a trabalho, coincidentemente, o Nassif também estava por lá. Combinamos um almoço. Ele indicou nome e endereço, e lá cheguei pelo Waze. Uma moça limpava o local. Ninguém presente. Perguntado, respondi que esperava um "nativo" para almoçar. Resposta: há meses o restaurante só funciona no jantar. Não sei até que ponto nosso "professor" tem-se atualizado.

      O que sei é que, no final, o almoço foi ótimo, pois juntamo-nos às suas irmãs e a um cunhado, em outro restaurante de bom repasto.

      Abraço 

  • Inveja

    Legal o papo.

    Só lamento e confesso a minha inveja por não ter um bar assim.

    Não tenho com quem tomar essa cerveja.

    • Seja Benvindo, amigão !

      Ronaldo, peço permissão, e antecipadamente já abuso dela, para convida-lo, a fazer parte desta galera, que aos domingos, têm o saborozíssimo papo, do Dominó do Boteco, do Rui.

      Entre e fique à vontade, aqui "pelas bandas do Belem" a cerveja é gelada, e nem é tão cara, quanto a do outro lado da Radial, no Jd. Anália Franco, onde moro  !

      • Raí e Ronaldo !

        Raí, convide sim !  (Rui, sem querer te bypassar, ok?)

        Ronaldo, aceite o convite!

        Depois da sua manifestação em favor de "Carolina, moça da janela", agredida por quem discorda dela, é certo que Rui e Raí hão de querer tomar muitas cervejas com você aos domingos.

        Belíssima defesa você fez da moça, que no direito inalienável de todos nós só queria se manifestar.

        A dor faz os fortes mais fortes.
        Mas o Sol já vem.
        É pelas Carolinas que ele brilha
        E aí a verdadeira festa será sua.

        Carolina, moça da janela, o Sol já vem

        http:/jornalggn.com.br/comment/719745#comment-719745

    • Ronaldo, sem ofensa,

      VENHA! Na abertura não teremos apenas as louras geladas, mas também as Boazinhas e outras de Salinas (MG), mantidas intactas no freezer. Ah, ovos cozidos rosados nunca faltam. Abraço.

  • Língua é questão geográfica

    Domingueira naquela cidade bela, e meu “menino” de dez pergunta:

    “  - Pai, vamos ficar hoje aqui em Poços e ir prá “Cardência”, vamos para Santa Rita de “Cardas” ou vamos para “Caudas”? (caprichando no alongado UUUUUU)

    Pai que é pai tem a resposta na ponta da língua:

    “Vamos passar o domingo em Pocinhos do Rio Verde.”

  • Chico...

    Anna, obrigado por remeter-me aos saudosos(embora cinzentos)anos 70, com esta pérola do Chico, que deveria chamar-se Francisco Buarque Paulistano , pois o Holanda, não tem nada a ver com ele, exceto sobrenominalmente, e deixe que eu diga-lhe e ao Rui, que tambem é daquela época, em que quase tudo que o Chico compunha, era proibido pelos "cinzentos" Generais, que tive o prazer, de estar com o Chico, e a estudantada seus colegas, da PUC, no Bar  Jogral, na Rua Avanhandava, quando ele começou a compor as primeiras linhas e tons musicais, na mesa do citado bar, para assombro de muitos frequentadores, que não o conheciam ainda, pois ele era do meio universitário, e avêsso a entrevistas e encontros com os sambistas paulistas.

    Grande Chico !

    • Chico !

      Eu era uma menina de 07 anos quando essa beleza foi lançada.  E só conheci o Chico já com 12, 15, entrando na década de 80.  Os anos de chumbo passaram raspando por mim. Os generais fui encontrando pelo caminho.

      Mas o Chico - ah, o Chico! -  canta na minh’alma porque eu canto tudo através dele.

      ...
      Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar
      Tou me guardando pra quando o carnaval chegar
      ...

  • Viva as louras de Rui

    Anna Dutra, ainda vou procurar conhecer pessoalmente Carolina, a moça da janela.

    Nessa luta louca, quanto mais próximos estivermos, melhor.

    A você, Rui e Raí, meu abraço daqui de Salvador.

    Enquanto não nos encontramos, vou tomar umas louras na sexta- feira com um acarajé e fazer um brinde a vocês.

    Faço-o agora com vinho, que estou tomando como faço todas as noites.

    Pensando nas coronárias.

     

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