João, o garoto perfeito ou João, o garoto imperfeito ou João, o garoto ambíguo ou…

João, o garoto perfeito ou João, o garoto imperfeito ou João, o garoto ambíguo ou…

por Sebastião Nunes

O livro JOÃO foi escrito em 1997 e publicado em 2007.

        Levei um dia para escrever o texto e 10 anos para decidir publicá-lo. É um texto de que gosto bastante, embora nunca tenha percebido muito bem seu significado, o que não chega a ser novidade entre poetas e escritores de ficção.

        De meus livros para crianças e jovens – em torno de uma dúzia – é talvez o mais bem estruturado, junto com “O inventor do xadrez” e “O rei dos pássaros”.

        Os dois primeiros leitores, logo que acabei de escrever, foram minhas filhas Flávia e Juliana, então com 12 e 10 anos respectivamente – que ficaram horrorizadas. Talvez por isso eu tenha demorado tanto para editá-lo.

        Logo após a publicação, imaginei duas hipóteses: a) é um livro tão estranho que ninguém se dará ao trabalho de ler; b) é um livro tão diferente que se tornará best-seller. Deu a primeira hipótese: da tiragem inicial de 2.000 exemplares ainda restam 886 no depósito, mesmo depois de algumas vendas e centenas de doações.

        Abaixo vai o texto, respeitando a formatação original. A ilustração mostra a capa espelhada, como em todos os livros da Editora Dubolsinho.

 

JOÃO

        João tinha seis anos quando morreu.

 

        Era um menino muito educado.

        Tão educado que morreu de repente, sem doença e sem dores.

        Só para não incomodar os pais e os vizinhos.

 

        Aliás, todos gostavam de João.

        Os vizinhos, os parentes, os passarinhos.

 

        Era um menino tão educado que só comia o que lhe davam para comer.

        E só bebia o que lhe davam para beber.

        (Bem ao contrário de tantos meninos, que bebem o que lhes dão para comer e comem o que lhes dão para beber.)

 

        Logo que nasceu, a mãe lhe ofereceu o peito.

        João aceitou a oferta, com um sorriso tímido.

        Depois que mamou bastante, a mãe lhe ofereceu o outro peito.

        Com um delicado arroto, João agradeceu.

        (Bem ao contrário de tantos meninos, que depois de mamar nos dois peitos ainda fazem cocô e xixi nas fraldas.)

 

        Claro que João também fazia cocô e xixi nas fraldas, mas cocôs e xixis muito educados.

        Os cocôs eram tão cremosos e cheirosos que pareciam iogurte de frutas.

        Os xixis eram tão morninhos que dava vontade de tomar banho neles.

 

        Quando aprendeu a falar, a primeira palavra que disse foi “Obrigado”.

        A segunda foi “Desculpe”.

        A terceira não foi uma palavra, mas uma frase: “Muito prazer em conhecer você”.

        (Bem ao contrário de tantos outros meninos que vão logo puxando o saco dos pais e das mães, repetindo mamá e papá o tempo todo.)

 

        João gostava muito de brincar sozinho.

        Como os pais trabalhavam fora, podiam sair despreocupados.

        Ele comia, bebia, e jogava as sobras no lixo.

        Depois continuava a brincar tranquilamente.

        Quando os pais chegavam em casa, João estava brincando sossegado, e recebia os dois com meigo sorriso.

 

        Se os pais decidiam ir ao teatro ou ao cinema, iam sem problema algum: quando voltavam, João estava dormindo.

        Com um doce sorriso nos lábios.

 

        Quando completou dois anos, João ganhou de presente uma vassoura, um aspirador de pó e uma enceradeira. Foi assim que os pais puderam dispensar a faxineira e economizar bastante.

        No fim do ano foram passear na Europa.

        João ficou numa creche, feliz da vida.

 

        Aos três anos, João aprendeu sozinho a ler e a escrever em várias línguas, inclusive chinês, árabe e grego moderno.

        Diante disse, os pais concluíram que seria bobagem mandá-lo para uma escola.

 

        Aos quatro anos, João sabia cozinhar tão bem que os pais puderam economizar nos jantares e nos fins de semana.

        Quando chegavam, a mesa estava posta, com os pratos mais deliciosos.

        Depois do jantar, iam descansar em paz, pois João cuidava da louça e jamais quebrou um copo ou um prato.

 

        Quando comemorou cinco anos, João falava umas oito ou dez línguas, cozinhava como um maître francês, cuidava da casa como uma governanta alemã e era elegante como um príncipe inglês.

        Em resumo, estava destinado à mais brilhante das carreiras, ao sucesso mais retumbante.

 

        Mas aos seis anos, numa noite de festa na mansão dos pais, felicíssimo com a alegria de todos os ilustres convidados (empresários, artistas, políticos, militares), João compreendeu que sua missão de filho perfeito estava encerrada e decidiu ir dormir antes do fim da festa.

 

        E antes do sol nascer estava morto.

        Mortinho da silva.

Sebastiao Nunes

Sebastiao Nunes

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  • Eu fazia parte da turma de

    Eu fazia parte da turma de sua hipótese a), grande Sebastião, não por considerar estranho, sim por não ter lido.  Agora que você me deu a oportunidade com essa publicação só falta ele se tornar um best-seller, que é meu desejo, para eu me sentir totalmente na hipótese b). A informação mais importante, espero que lhe dê muitas alegrias, talvez também tristeza: Tá morto, mortinho da silva, tá não !  Talvez tenha pulado a janela do quarto e os pais que já não percebiam, não perceberam. E a dificuldade de reconhecê-lo agora já adulto está expressa na capa maravilhosa, ás vezes é JOÃO, outras OÃOJ. E nessa transmutação, creio até, razão da tristeza, que possa ter assumido, em suas variações, a função de mordomo. Verdade que o mordomo não sabe diversas línguas, está longe de ser bem educado, não faz cocô cheiroso, mas que serve bem convidados ilustres é inquestionável. E, espero que seja possível, um feliz 2017 ?

  • Flávia e Juliana, como toda

    Flávia e Juliana, como toda criança, são muito sensíveis. Se a história conta que João era tudo isso, as meninas deduziram, por certo, que os pais de João eram egoístas, exploradores do filho, que desde cedo servia apenas para mantê-los livres de responsabilidades, estas todas trasnferidas ao pobre menino. Flávia e Júlia, se pensaram o que penso, viram em João um pobre coitado, sem lazer, obrigado a trabalhar desde criancinha, enquanto os pais viviam suas vidas na convicção de terem posto no mundo um pequeno escravo deles. 

    Tô com pena de João. Que Deus o tenha.

  • João, o garoto...

    Prezados (as):

    O João não morreu. Os pais é que esqueceram de plugar a sua bateria de recarga e ocorreu da memória desprogramar-se. Como ele estava fora da garantia, deu pau.

    Se eu fosse os pais dele, entraria no PROCOM.

    Att.,

    ZTC

  • Pois é pai, longos anos se
    Pois é pai, longos anos se passaram e continuo com dó do João. Gostaria tb que ele, ao invés de ter ido dormir, tivesse pulado a janela e fugido de casa!!!!

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