Modesta proposta para melhor aproveitamento dos filhos das pessoas pobres, por Sebastião Nunes

Devo dizer que este texto foi originalmente publicado aqui mesmo no GGN em 2016, mas, devido ao atual estágio do bolsonarismo, vale o repeteco

Modesta proposta para melhor aproveitamento dos filhos das pessoas pobres

por Sebastião Nunes

Jonathan Swift, deão da catedral anglicana de Saint Patrick, em Dublin, nasceu em 1667, morrendo surdo e louco em 1745. Sua obra mais conhecida é “Viagens de Gulliver”. Uma dessas viagens foi para Lilliput, termo que significa “pequena puta”. Outra, para Laputa, que dispensa tradução.

Dele, o texto curto mais importante é “Uma modesta proposta”, sendo o título completo “Uma modesta proposta para impedir que os filhos das pessoas pobres da Irlanda sejam um fardo para os seus progenitores ou para o País, e para torná-los proveitosos aos interesses públicos”.

Como o Brasil se transformou numa antidemocracia de extrema direita, me apresso a reproduzir alguns trechos dessa notável e valiosíssima “proposta”, contribuindo assim para que o antipresidente, seus antiministros e nossa elite dirigente possam aplicar tais ideias a seus experimentos antidemocráticos.

Finalmente, devo dizer que este texto foi originalmente publicado aqui mesmo no GGN em 2016, mas, devido ao atual estágio do bolsonarismo, vale o repeteco.

 

TEM POBRE DEMAIS NO PAÍS

“É motivo de tristeza, para aqueles que andam pelas cidades ou viajam, verem as ruas, as estradas ou as portas dos barracos apinhadas de mendigos do sexo feminino, seguidos por três, quatro ou seis crianças, todas esfarrapadas, a importunar os passantes com solicitações de donativos. Essas mães, em vez de poderem trabalhar pelo seu honesto sustento, são forçadas a perambular o tempo todo atrás de esmolas, a fim de sustentar seus pequenos desvalidos, os quais, à medida que crescem, se tornam ladrões, por falta de trabalho.”

“Uma criança que tenha saltado recentemente do ventre de sua mãe pode muito bem ser mantida com o leite dela durante um ano inteiro, e com pouca nutrição adicional: quando muito, não mais que o valor de dois xelins, ou mesmo com as sobras, que a mãe poderá certamente conseguir por meio de uma honesta mendicância. E é exatamente na idade de um ano que proponho aplicar-lhes minha solução, de modo que, em lugar de se tornarem um fardo para os pais, ou de carecerem de alimento e vestuário pelo resto de suas vidas, virão, pelo contrário, contribuir para alimentar e, em parte, para vestir muitos milhares de outros.”

 

EQUACIONANDO O PROBLEMA

“Agora, proporei humildemente minhas próprias ideias, que acredito não serão suscetíveis da menor objeção.”

  “Um americano, muito experiente, me disse em Londres que uma criança nova, saudável e bem nutrida é, com a idade de um ano, um petisco bastante delicioso e salutar, seja servida ensopada, assada, grelhada ou cozida; e não tenho dúvida de que poderá ser preparada como um fricassê ou um ragu.”

“Assim, ofereço humildemente à consideração do público o seguinte: que de cada 120 mil crianças nascidas, 20 mil possam ser apartadas para a reprodução, das quais apenas uma quarta parte serão machos, o que é mais do que costumamos fazer com as ovelhas, as vacas ou os porcos. Que as 100 mil remanescentes possam ser, com um ano de idade, oferecidas a pessoas de qualidade e posses em todo o país, sempre advertindo as mães para que as amamentem bem no último mês, de modo que fiquem bem cheinhas e fornidas para uma boa mesa. Uma criança dará dois pratos numa recepção de amigos e, quando a família jantar sozinha, os quartos anteriores ou posteriores fornecerão um prato razoável; e, com uma pitada de pimenta e de sal, aguentará bem até o quarto dia, especialmente no inverno.”

“Admito que esse alimento seja caro, portanto adequado aos proprietários, os quais, já tendo devorado os pais, têm todo o direito de fazer o mesmo com os filhos.”

 

  ESCLARECENDO MELHOR

“Já computei os custos de nutrição de uma cria de mendigo, como orçando em torno de dois xelins por ano, farrapos incluídos; e acredito que nenhum cavalheiro se queixaria de dar dez xelins pela carcaça de uma boa criança gorda, a qual, como já disse, fornecerá quatro pratos de carne excelente e nutritiva, quando ele tiver apenas algum amigo ou sua própria família para jantar. Então o proprietário aprenderá a ser um bom patrão e ganhará popularidade entre seus peões, a mãe açambarcará oito xelins de lucro líquido e estará em condições de trabalhar até produzir outro filho.”

“Aqueles que são mais econômicos (como, devo confessar, estes tempos andam a pedir) poderão esfolar a carcaça, cuja pele, adequadamente curtida, proporcionará luvas admiráveis para as senhoras e botas de verão para os cavalheiros.”

 

MAGNÍFICOS RESULTADOS

“Suponho que as vantagens da proposta que faço são óbvias, bem como da mais alta importância.”

“Os arrendatários mais pobres, que nunca souberam o que é ter dinheiro, possuirão alguma coisa de valor, a qual por lei poderá estar sujeita a confisco, a fim de ajudar a pagar o aluguel aos proprietários, já tendo sido o seu gado e o seu milho devidamente pilhados.”

“As parideiras constantes, além do ganho de oito xelins por ano com a venda de seus filhos, estarão livres do fardo de sustentá-los após o primeiro ano de vida.”

“Finalmente, haveria um grande incentivo ao casamento. Aumentaria o cuidado e a ternura das mães pelos filhos, pois estariam certas de uma colocação para seus pobres bebês no futuro, obtendo ganhos anuais em vez de despesas. Observaríamos em breve um honesto sentimento de emulação entre as mães, a fim de verem quem traria o filho mais gordo para o mercado. Os homens teriam tanto interesse por suas esposas, durante o tempo da gravidez, quanto têm por suas éguas, suas vacas ou suas porcas em vias de parir; e não mais se prontificariam a bater nelas (como é a prática frequente), receando com isso um aborto.”

Fica, portanto, encaminhada a “Modesta Proposta” do deão Jonathan Swift, transcrita com leves alterações, que decerto não desagradará ao antipresidente, a seus antiministros nem à nossa elite financeira, todos, sem dúvida, apreciadores de pratos delicados e caros.

Sebastiao Nunes

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