O Navio Negreiro, de Castro Alves

Enviado por Sérgio T.

Do Portal Raízes

O Navio Negreiro, Um Dos Poemas Mais Emocionantes De Castro Alves 

Um dos mais conhecidos poemas da literatura brasileira, O Navio Negreiro – Tragédia no Mar –  foi concluído por Castro Alves em São Paulo no ano de 1868. Quase vinte anos depois, portanto, da promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico de escravos, de 4 de setembro de 1850. A proibição, no entanto, não vingou de todo, o que levou o poeta a se empenhar na denúncia da miséria a que eram submetidos os africanos na cruel travessia oceânica. É preciso lembrar que, em média, menos da metade dos escravos embarcados nos navios negreiros completavam a viagem com vida.

O Navio Negreiro 

“’Stamos em pleno mar… Doudo no espaço
Brinca o luar – dourada borboleta;
E as vagas após ele correm… cansam
Como turba de infantes inquieta.

‘Stamos em pleno mar… Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro…
O mar em troca acende as ardentias,
– Constelações do líquido tesouro…

 

‘Stamos em pleno mar… Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes…
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?…

‘Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas…

Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros… estalar de açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:

Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais …
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!…
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…

Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!

Mas é infâmia demais! … Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Antônio Frederico de Castro Alves, poeta, nasceu em Muritiba, BA, em 14 de março de 1847, e faleceu em Salvador, BA, em 6 de julho de 1871. É o patrono da Cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras, por escolha do fundador Valentim Magalhães.

Escreveu: “Espumas Flutuantes”, escrita em 1870; “Gonzaga ou a Revolução em Minas”, (1875); “Cachoeira de Paulo Afonso”, (1876); “Vozes, D’África” e “Navio Negreiro”, (1880); “Os Escravos”, (1883), etc. Em 1960 publicou-se sua Obra Completa, enriquecida de peças que não figuram nas Obras Completas de Castro Alves, editadas em 1921.

Castro Alves foi um discípulo de Victor Hugo a quem chamava “mestre do mundo, sol da eternidade”. Poeta social, lírico, patriótico, foi um dos primeiros abolicionistas e, ao poetar sobre a escravidão, inflamava-se eloqüentemente, chegando a elevar-se pelo arrojo das metáforas, pelo atrevimento das apóstrofes, pelas idéias do infinito, amplidão, pelo vôo da imaginação, o que motivou o título dado por Capistrano de Abreu de “condoreiro”, que comparou sua poesia ao vôo de um condor.

O ideal para Castro Alves é o gênio (homem) símbolo das lutas pela justiça e pela libertação. Vive seu espírito em constantes conflitos à procura de soluções. Esse ideal faz com que o poeta busque na retórica a sua forma de expressão que muitas vezes se apresenta vazia e sem nexo, apoiada apenas em combinações sonoras. Esse abuso é uma influência da época que muito prestigiava a oratória. Um defeito a ser apontado no seu estilo é o abuso e a superposição de imagens e de aposições. Porém, alcança um belo sublime, bem distante das banalidades românticas.

A íntegra do poema pode ser lida aqui

Redação

Redação

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  • RESPEITO AO POETA

    A transcrição do poema está incompleta, e este fato sequer é mencionado no texto acima. Assim, fica a impressão de que o real objetivo é diminuir a dimensão grandiosa e insuperável do poema épico mais significativo da literatura brasileira. Além disso, a pretensão de apontar pretenso defeito no estilo grandiloquente do incomparável poeta baiano revela uma arrogância ignara e deplorável. A memória e o legado de Antônio Frederico de Castro Alves merece mais respeito. P.S.: A íntegra do poema está em http://www3.universia.com.br/conteudo/literatura/O_navio_negreiro_de_castro_alves.pdf

    • Em desagravo à memória do

      Em desagravo à memória do autor, ídolo de inúmeras gerações de poetas, segue o belíssimo poema, na íntegra:

       

      O NAVIO NEGREIRO *

      Castro Alves

       

              I

       

      'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço

      Brinca o luar — doirada borboleta;

      E as vagas após ele correm... cansam

      Como turba de infantes inquieta.

       

      'Stamos em pleno mar... Do firmamento

      Os astros saltam como espumas de ouro...

      O mar em troca acende as ardentias,

      — Constelações do líquido tesouro...

       

      'Stamos em pleno mar... Dois infinitos

      Ali se estreitam num abraço insano,

      Azuis, dourados, plácidos, sublimes...

      Qual dos dois é o céu? qual o oceano?...

       

      'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas

      Ao quente arfar das virações marinhas,

      Veleiro brigue corre à flor dos mares,

      Como roçam na vaga as andorinhas...

       

      Donde vem? Onde vai? Das naus errantes

      Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?

      Neste Saara os corcéis o pó levantam,

      Galopam, voam, mas não deixam traço.

       

      Bem feliz quem ali pode nest'hora

      Sentir deste painel a majestade!

      Embaixo — o mar... em cima — o firmamento...

      E no mar e no céu — a imensidade!

       

      Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!

      Que música suave ao longe soa!

      Meu Deus! Como é sublime um canto ardente

      Pelas vagas sem fim boiando à toa!

       

      Homens do mar! Ó rudes marinheiros,

      Tostados pelo sol dos quatro mundos!

      Crianças que a procela acalentara

      No berço destes pélagos profundos!

       

      Esperai! Esperai! Deixai que eu beba

      Esta selvagem, livre poesia ...

      Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,

      E o vento, que nas cordas assobia...

       

      ..........................................................

       

      Por que foges assim, barco ligeiro?

      Por que foges do pávido poeta?

      Oh! Quem me dera acompanhar-te a esteira

      Que semelha no mar — doudo cometa!

       

      Albatroz! Albatroz! Águia do oceano,

      Tu que dormes das nuvens entre as gazas,

      Sacode as penas, Leviathan do espaço,

      Albatroz! Albatroz! Dá-me estas asas.

       

                               II

       

      Que importa do nauta o berço,

      Donde é filho, qual seu lar?

      Ama a cadência do verso

      Que lhe ensina o velho mar!

      Cantai! Que a noite é divina!

      Resvala o brigue à bolina

      Como golfinho veloz.

      Presa ao mastro da mezena

      Saudosa bandeira acena

      As vagas que deixa após.

       

      Do Espanhol as cantilenas

      Requebradas de langor,

      Lembram as moças morenas,

      As andaluzas em flor!

      Da Itália o filho indolente

      Canta Veneza dormente,

      — Terra de amor e traição —

      Ou do golfo no regaço

      Relembra os versos de Tasso,

      Junto às lavas do vulcão!

       

      O Inglês — marinheiro frio,

      Que ao nascer no mar se achou,

      (Porque a Inglaterra é um navio,

      Que Deus na Mancha ancorou),

      Rijo entoa pátrias glórias,

      Lembrando, orgulhoso, histórias

      De Nelson e de Aboukir.. .

      O Francês — predestinado —

      Canta os louros do passado

      E os loureiros do porvir!

       

      Os marinheiros Helenos,

      Que a vaga iônia criou,

      Belos piratas morenos

      Do mar que Ulisses cortou,

      Homens que Fídias talhara,

      Vão cantando em noite clara

      Versos que Homero gemeu ...

      Nautas de todas as plagas,

      Vós sabeis achar nas vagas

      As melodias do céu! ...

       

                                III

       

      Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

      Desce mais ... inda mais...

      Não pode olhar humano

      Como o teu mergulhar no brigue voador!

      Mas que vejo eu aí... Que quadro de amarguras!

      Que cena funeral! ... Que tétricas figuras! ...

      Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

       

                                IV

      Era um sonho dantesco... o tombadilho

      Que das luzernas avermelha o brilho.

      Em sangue a se banhar.

      Tinir de ferros... estalar de açoite...

      Legiões de homens negros como a noite,

      Horrendos a dançar...

       

      Negras mulheres, suspendendo às tetas

      Magras crianças, cujas bocas pretas

      Rega o sangue das mães:

      Outras moças, mas nuas e espantadas,

      No turbilhão de espectros arrastadas,

      Em ânsia e mágoa vãs!

       

      E ri-se a orquestra irônica, estridente...

      E da ronda fantástica a serpente

      Faz doudas espirais ...

      Se o velho arqueja, se no chão resvala,

      Ouvem-se gritos... o chicote estala.

      E voam mais e mais...

       

      Presa nos elos de uma só cadeia,

      A multidão faminta cambaleia,

      E chora e dança ali!

       

      ....................................................

       

      Um de raiva delira, outro enlouquece,

      Outro, que martírios embrutece,

      Cantando, geme e ri!

       

      No entanto o capitão manda a manobra,

      E após, fitando o céu que se desdobra,

      Tão puro sobre o mar,

      Diz do fumo entre os densos nevoeiros:

      "Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

      Fazei-os mais dançar!..."

       

      E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .

      E da ronda fantástica a serpente

      Faz doudas espirais...

      Qual um sonho dantesco as sombras voam!...

      Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

      E ri-se Satanás!...

       

                           V

      Senhor Deus dos desgraçados!

      Dizei-me vós, Senhor Deus!

      Se é loucura... se é verdade

      Tanto horror perante os céus?!

      Ó mar, por que não apagas

      Co'a esponja de tuas vagas

      De teu manto este borrão?...

      Astros! Noites! Tempestades!

      Rolai das imensidades!

      Varrei os mares, tufão!

       

      Quem são estes desgraçados

      Que não encontram em vós

      Mais que o rir calmo da turba

      Que excita a fúria do algoz?

      Quem são? Se a estrela se cala,

      Se a vaga à pressa resvala

      Como um cúmplice fugaz,

      Perante a noite confusa...

      Dize-o tu, severa Musa,

      Musa libérrima, audaz!...

       

       

      São os filhos do deserto,

      Onde a terra esposa a luz.

      Onde voa em campo aberto

      A tribo dos homens nus...

      São os guerreiros ousados

      Que com os tigres mosqueados

      Combatem na solidão.

      Homes simples, fortes, bravos...

      Hoje míseros escravos,

      Sem ar, sem luz, sem razão. . .

       

       

      São mulheres desgraçadas,

      Como Agar o foi também.

      Que sedentas, alquebradas,

      De longe... bem longe vêm...

      Trazendo com tíbios passos,

      Filhos e algemas nos braços,

      N'alma — lágrimas e fel...

      Como Agar sofrendo tanto,

      Que nem o leite de pranto

      Têm que dar para Ismael.

       

       

      Lá nas areias infindas,

      Das palmeiras no país,

      Nasceram crianças lindas,

      Viveram moças gentis...

      Passa um dia a caravana,

      Quando a virgem na cabana

      Cisma da noite nos véus ...

      ... Adeus, ó choça do monte,

      ... Adeus, palmeiras da fonte!...

      ... Adeus, amores... adeus!...

       

       

       

      Depois, o areal extenso...

      Depois, o oceano de pó.

      Depois no horizonte imenso

      Desertos... desertos só...

      E a fome, o cansaço, a sede...

      Ai! Quanto infeliz que cede,

      E cai p'ra não mais s'erguer!...

      Vaga um lugar na cadeia,

      Mas o chacal sobre a areia

      Acha um corpo que roer...

       

       

      Ontem a Serra Leoa,

      A guerra, a caça ao leão,

      O sono dormido à toa

      Sob as tendas d'amplidão...

      Hoje... o porão negro, fundo,

      Infecto, apertado, imundo,

      Tendo a peste por jaguar...

      E o sono sempre cortado

      Pelo arranco de um finado,

      E o baque de um corpo ao mar...

       

       

      Ontem plena liberdade,

      A vontade por poder...

      Hoje... cúm'lo de maldade,

      Nem são livres p'ra... morrer...

      Prende-os a mesma corrente

      — Férrea, lúgubre serpente —

      Nas roscas da escravidão.

      E assim roubados à morte,

      Dança a lúgubre coorte

      Ao som do açoite... Irrisão!...

       

       

      Senhor Deus dos desgraçados!

      Dizei-me vós, Senhor Deus,

      Se eu deliro... ou se é verdade

      Tanto horror perante os céus...

      Ó mar, por que não apagas

      Co'a esponja de tuas vagas

      Do teu manto este borrão?...

      Astros! Noites! Tempestades!

      Rolai das imensidades!

      Varrei os mares, tufão! ...

       

       

       

       

                                 VI

       

      E existe um povo que a bandeira empresta

      P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...

      E deixa-a transformar-se nessa festa

      Em manto impuro de bacante fria!...

      Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,

      Que impudente na gávea tripudia?

      Silêncio!... Musa! Chora, chora tanto

      Que o pavilhão se lave no teu pranto...

       

       

      Auriverde pendão de minha terra,

      Que a brisa do Brasil beija e balança,

      Estandarte que a luz do sol encerra,

      E as promessas divinas da esperança...

      Tu, que da liberdade após a guerra,

      Foste hasteado dos heróis na lança

      Antes te houvessem roto na batalha,

      Que servires a um povo de mortalha!...

       

       

      Fatalidade atroz que a mente esmaga!

      Extingue nesta hora o brigue imundo

      O trilho que Colombo abriu nas vagas,

      Como um íris no pélago profundo!...

      ... Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga

      Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!

      Andrada! Arranca esse pendão dos ares!

      Colombo! Fecha a porta dos teus mares!

       

       

                                                     São Paulo, 11 de abril de 1868.

       

       

      * Revisado com base na publicação da Editora Nova Aguilar S.A., Terceira Edição,

         impressa em 1976 pela Editora Vozes Ltda., Petrópolis, Rio de Janeiro.

    • Gostei

      Acho legal você ter feito o reparo. Sempre estou apto para aprender a respeito da realidade incostentável. Apenas solicito o desagravo, pois coloquei o poema com a justificação justa do anti escravagismo, então do jeito que pus já estava bonito, mas me submeto a qualquer reparo que nos traga o contexto real.

      Um abraço.

  • Navio Negreiro, na íntegra, ao vivo

    A Cooperifa realiza, há mais de 10 anos, um sarau toda quarta-feira, na Bar do Zé Batidão, distante duas horas de ônibus do centro de São Paulo. tem uma senhora lá, cega, que se orgulha de frequnetr o Sarau toda semana, e de ter faltado apenas duas vezes nos últimos 10 anos. Assisti ela declamar Navio Negreiro, na íntegra. Emocionante. Ela tem uma sobrinha ou neta que vai lendo estrofe por estrofe, até que ela memoriza. E assim faz com todos os poemas. Originária do interior de Minas, ficou cega pouco depois dos 30 anos, atualmente conta com pouco mais de 50 anos. A plateia do Bar do Zé Batidão fica aguardando a participação dessa senhora. 

    Cooperiva (Poeta Sérgio Vaz) - 

  • infamia e covardia;
    que

    infamia e covardia;

    que bandeira (poder) é essa que nos tripudia?

    mas é infamia demais...

    tudo a ver como tempo atual...

     

     

     

     

  • Navio Negreiro começa, mesmo...

    ...na quarta parte; o que vem antes é poeticamente inferior, desnecessário e prejudica umidade do poema. 

    • Pelé foi Pelé sempre?

      Simto quando a idolatria se sobrepõe à análise a e à reflexão, e que bulir com o mundo dos valores, os santos e as cavernas dos outros, é como cutucar a menina dos olhos do capeta....  "Passe amanhã", disse um  poeta,  ao lhe oferecem blocos para ereção de igrejas...

  • Antes de Castro Alves, o

    Antes de Castro Alves, o poeta alemão Heinrich Heine também escrevera um poema homônimo (1853-54).

    Eu particularmente gosto do trecho em que Heine ironiza a fé do traficante de escravos que pede clemência a Deus por si próprio e por sua valiosa mercadoria (deixei em negrito). 

    O navio negreiro de Heinrich Heine

    O sobrecarga Mynheer van Koek

    Calcula no seu camarote

    As rendas prováveis da carga,

    Lucro e perda em cada lote.

     

    "Borracha, pimenta, marfim

    E ouro em pó... Resumindo, eu digo:

    Mercadoria não me falta,

    Mas negro é o melhor artigo.

     

    Seiscentas peças barganhei

    -- Que pechincha! -- no Senegal;

    A carne é rija, os músculos de aço,

    Boa liga do melhor metal.

     

    Em troca dei só aguardente,

    Contas, latão -- um peso morto!

    Eu ganho oitocentos por cento

    Se a metade chegar ao porto.

     

    Se chegarem trezentos negros

    Ao porto do Rio Janeiro,

    Pagará cem ducados por peça

    A casa Gonzales Perreiro."

     

    De súbito, Mynheer van Koek

    Voltou-se, ao ouvir um rumor;

    É o cirurgião de bordo que entra,

    É van der Smissen, o doutor.

     

    Que focinheira verrugenta!

    Que magreza desengonçada!

    "E então, seo doutor, diz van Koek,

    Como vai a minha negrada?'

     

    Depois dos rapapés, o médico,

    Sem mais prolilóquios, relatando"

    "A contar desta noite, observa,

    Os óbitos vêm aumentando.

     

    Em média eram só dois por dia,

    Mas hoje faleceram sete:

    Quatro machos, três fêmeas, perda

    Que arrolei no meu balancete.

     

    Examinei logo os cadáveres,

    Pois o negro desatinado

    Se finge de morto, esperando,

    Lançado ao mar, fugir a nado!

     

    Seguindo à risca as instruções,

    Ao primeiro clarear da aurora,

    Mandei retirar os grilhões

    E -- carga ao mar! -- sem mais demora.

     

    Os tubarões, meus pensionistas,

    Acudiram todos, em bando.

    Carne de negro é manjar fino

    Que aparece de vez em quando.

     

    Mal nos afastamos da costa,

    Rastreiam o barco, na esteira,

    Farejando de muito longe

    Os eflúvios da pestiqueira.

     

    Edificante é o espetáculo,

    Pois o tubarão narigudo

    Não escolhe cabeça ou perna

    E abocanha, devora tudo!

     

    Como se opíparo banquete

    Fosse um simples aperitivo,

    Põe-se a rondar, pedindo mais,

    Sempre à espreita e de olho vivo!"

     

    Mas o inquieto van Koek lhe corta

    O relato em meio... Como há de

    Remediar-se a perda, pergunta,

    Combatendo a letalidade?

     

    Responde o doutor: "Natural

    É a causa; os negros encerrados,

    A catinga, a inhaca, o bodum

    Deixam os ares empestados.

     

    Muitos, além disso, definham

    De banzo ou de melancolia;

    São males que talvez se curem

    Com dança, música e folia."

     

    "O conselho é de mestre!", exclama

    Van Koek. O preclaro doutor

    É perspicaz como Aristóteles,

    Que de Alexandre era mentor!

     

    Eu, presidente dos Amigos

    Da Tulipa em Delft, declaro

    Que, embora sabido, ao seu lado,

    Não passo de aprendiz, meu caro.

     

    Música! Música! A negrada

    Suba logo para o convés!

    Por gosto ou ao som da chibata

    Batucará no bate-pés!"

     

    O céu estrelado é mais nítido

    Lá na translucidez da altura.

    Há um espreitar de olhos curiosos

    Em cada estrela que fulgura.

     

    Eles vieram ver de mais perto

    No mar alto, de quando em quando,

    O fosforear das ardentias,

    Quebra a onda, em marulho brando.

     

    Atrita a rabeca o piloto,

    Sopra na flauta o cozinheiro,

    Zabumba o grumete no bombo

    E o cirugião é o corneteiro.

     

    A negrada, machos e fêmeas,

    Aos pulos, aos gritos, aos trancos,

    Gira e regira: a cada passo,

    Os grilhões ritmam os arrancos

     

    E saltam, volteiam com fúria incontida,

    Mais de uma linda cativa

    Lúbrica, enlaça o par desnudo --

    Há gemidos, na roda vida.

     

    O beleguim é o maitres des plaisirs,

    É ele quem manda e desmanda;

    Instiga o remisso a vergalho

    E rege a grito a sarabanda.

     

    E taratatá e denrendendém!

    O saracoteio insano

    Desperta os monstros que dormem nas ondas

    Ao profundo embalo do oceano.

     

    Tubarões, ainda tontos de sono,

    Vêm vindo, de todos os lados;

    Querem ver, querem ver para crer,

    Estão de olhos arregalados.

     

    Mas percebem que o desjejum

    Longe está e logo, impacientes,

    Num bocejo de tédio e fome

    Arreganham a serra dos dentes.

     

    E taratatá e denrendendém!

    Não tem fim a coréia estranha.

    Mais de um tubarão esfaimado

    Sua própria cauda abocanha.

     

    Eles não querem saber de música

    Como outros do mesmo jaez.

    "Desconfia de quem não gosta

    De música", disse o poeta inglês.

     

    E denrendenrém e taratá --

    A estranha festança não tem fim.

    No mastro do traquete, van Koek,

    De mãos postas, rezava assim:

     

    "Meu Deus, conserva os meus negros,

    Poupa-lhes a vida, sem mais!

    Pecaram, Senhor, mas considera

    Que afinal não passam de animais.

     

    Poupa-lhes a vida, pensa no teu Filho,

    Que ele por todos nós sacrificou-se!

    Pois, se não me sobrarem trezentas peças,

    Meu rico negocinho acabou-se!"

     

    Tradução: Augusto Meyer

     

     

     

     

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