Nassif: A morte de Paulo Nogueira, jornalista

Quando iniciei a série sobre a Veja, quase dez anos atrás, me surpreendeu a anomia total da categoria jornalística. Veja enveredara pelo antijornalismo mais pernicioso, atropelando os princípios mínimos de técnica, ética e seriedade. Afetava a maneira como cada um de nós, jornalistas, exercíamos a profissão. Desmoralizava o trabalho duro dos que tentaram praticar jornalismo no período.

Da Abril, de vez em quando, recebia informações vagas de que havia pelo menos um diretor inconformado com aquele jornalismo. Era Paulo Nogueira, que ocupava um cargo relevante na editora, próximo ao cappo Roberto Civita.

Quando Veja  cometeu o absurdo de um secretário de redação, Mário Sabino, publicar uma resenha consagradora sobre seu próprio livro, foi Paulo quem me passou a informação de como as publicações de respeito, como o Financial Times, colocavam em seus manuais de redação a maneira dos jornalistas tratarem seus próprios livros.

Até então, de Paulo sabia ser filho de Emir Nogueira. E do pai lembrava a cena inesquecível da assembleia do Sindicato dos Jornalistas, na Casa de Portugal, em que Emir, por sua postura ponderada, foi alvo de uma sessão de linchamento. Reagiu pouco falando, mas com tal dignidade que, nas eleições seguintes, seria eleito presidente do sindicato enquanto o agressor falante desapareceria de vez da atividade sindical.

Paulo Nogueira tinha feito um trabalho relevante na Veja São Paulo e na Exame. Na queda do diretor Mário Sérgio Conti, foi um dos nomes cogitados para substituí-lo. Também fui e só descobri após um almoço com Civita e outro diretor, supostamente para analisar um projeto de Internet que tinha encaminhado para Otávio Frias – e ele recomendou que apresentasse para a Abril, na época sócia da UOL. Só após o almoço, o Paulo Moreira Leite me telefonou me informando dos boatos e entendi melhor as perguntas estranhas que me fizeram.

Só conheci de fato a competência de Paulo quando assumiu a direção da revista Época. Foi a única vez, desde que foi instaurado o estilo jornalismo de esgoto na imprensa brasileira, que vi um laivo de bom jornalismo. Aliás, de muito bom jornalismo.

Carta Capital, de Mino, era, de longe, a publicação que praticava o melhor jornalismo, mas sem o fôlego financeiro das demais. Por isso, o crescimento da Época era a última tentativa do bom jornalismo, de encontrar espaço nos grupos tradicionais.

Em uma viagem ao nordeste, encontrei um correspondente da revista, que me contou um dos segredos de Paulo. Depois que enviava sua reportagem, antes da publicação recebia a reportagem editada e não publicada ainda, para conferir se não havia nenhum erro de interpretação ou de edição.

Aí consegui entender a razão de Roberto Civita ter escolhido Tales Alvarenga para a sucessão  na Veja e, depois, Eurípides Alcântara, ambos de uma mediocridade nítida, em detrimento de Paulo. Acontece que Roberto tinha decidido se tornar não apenas o publisher, mas o diretor de fato da revista. E ter um jornalista de fôlego à frente da publicação significaria desgaste para ele, na hora de exercitar o esgoto amplo. Como foi no período Mino, de Guzzo-Gaspari e de Conti-Moreira Leite

Comecei a elogiar a Época no blog. Para minha surpresa, passei a receber a revista todo sábado de manhã, providenciada por Paulo e entregue por um motoqueiro. Ali, tive a intuição da sua solidão na Editora Globo. Dentro das Organizações Globo não havia quem se dispusesse a valorizar o bom jornalismo, a perceber as diferenças entre o jornalismo competente e o jornalismo fake que avançava avassaladoramente. Percebi que era questão de tempo para Paulo ser trocado.

E os grupos de mídia usavam sempre a mesma fórmula no caso Franklin Martins e no meu próprio: ataques de um colunista de Veja, que servia especificamente para essas jogadas combinadas.

De fato, pouco tempo depois Paulo saiu e a Época deixou de lado os compromissos com a notícia para se alinhar totalmente aos interesses políticos e empresariais da casa.

Tempos depois, no DCM, Paulo descreveria um pouco o ambiente de lisonja, de submissão à empresa que encontrou na Globo, que de certo modo se tornou a marca registrada dos grupos de mídia quando, em 2005, liderados por Roberto Civita, decidiram romper com o jornalismo.

Paulo recomeçou na Internet, como Paulo Moreira Leite, Tereza Cruvinel, Helena Chagas, Paulo Henrique Amorim, Marcelo Auler, o próprio irmão Kiko, e outros órfãos do breve período de ouro do jornalismo, os 15 anos pós-ditadura, no qual a mídia, na defensiva pelo apoio à ditadura, apostou um pouco mais na pluralidade e na capacidade de inovação..

Morre tendo sido, simbolicamente, o último oficial maior a resistir nas trincheiras do jornalismo contra o avanço do jornalismo fake.

Luis Nassif

Luis Nassif

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  • "Morre tendo sido,

    "Morre tendo sido, simbolicamente, o último oficial maior a resistir nas trincheiras do jornalismo contra o avanço do jornalismo fake."

     

    Quando a Folha do Seu Frias resolveu "vejar" de vez em 2005, a minha segunda preocupação - depois da relativa à morte do jornalismo - foi a sobrevivência do jornalista. Jornalista precisa ter comida na mesa, e o que passei a ver desde ali foi o vale-tudo imposto justo a uma área preciosíssima à democracia; e que, obviamente, levaria muitos ao desemprego e à depressão, mesmo que conservassem o dito emprego. E não somente no que toca à sobrevivência material, mas também no que toca ao convívio social. Se eu, um simples leitor estava sendo isolado pela horda de malfazejos e seus papagaios de repetição, o que não estaria se passando na cabeça de quem fazia a notícia?

    Subscrevo-lhe, Nassif: o Brasil perde um grande jornalista.

  • Meus sentimentos à família e

    Meus sentimentos à família e aos amigos de Paulo Nogueira, um profissional inesquecível.

  • Nota do CDC - Coletivo Democracia Corinthiana

    VAI À ARQUIBANCADA DE CIMA UM DOS GIGANTES DO JORNALISMO BRASILEIRO

    * Reprodução de nota oficial do CDC

    É com extremo pesar que o Coletivo Democracia Corinthiana (CDC) comunica o falecimento do companheiro Paulo Nogueira, irmão corinthianista, jornalista de extraordinária competência, fundador do excelente Diário do Centro do Mundo (DCM) e um incansável guerreiro na luta por democracia e justiça social.

    Por tantos anos, em Veja, Exame e outras publicações, alçava corajosamente a voz combativa da razão, da verdade, da generosidade e da fraternidade.

    Fundou o Diário do Centro do Mundo, um dos mais qualificados portais de notícia descontaminada da imprensa brasileira. Nele, mostrou sempre a realidade, sem render-se à exigência do "Deus" mercado, sem paparicar poderosos, sem a complacência seletiva que marca a mídia monopolista.

    O DCM foi das primeiras publicações a compreender e narrar a saga de nosso coletivo, acompanhando nossa galera nas manifestações e atividades em favor da democracia.

    Sempre exigente, rigoroso e minucioso, Paulo foi repórter, editor, diretor de redação, um monte de coisas. Teve cargos e inúmeras responsabilidades. Mas, no fundo, era sempre um corinthiano capaz de honrar nossa tradição solidária e inclusiva.

    O DCM tinha sua cara. Começou pequeno, com 20 mil visualizações diárias. Hoje, alcança meio milhão. Narra as histórias que a mídia grande oculta ou distorce. Fala do "centro do mundo" que nós representamos.

    Paulo lutou durante dez meses contra o câncer. Neste 29 de Junho frio, pouco antes de mais uma manifestação do povo brasileiro por justiça e direitos, migrou à arquibancada de cima, onde certamente terá ótimos debates com o Doutor Sócrates, Elis Regina e Dom Paulo Evaristo, entre outros dos nossos.

    Com humildade, Paulo morreu no mesmo quarto em que nasceu, na casa da família, no Jardim Previdência.

    Deixa amores, filhos e muitos amigos companheiros!

    Muito obrigado, camarada!

    PAULO NOGUEIRA, PRESENTE!

     

  • Pluralidade - eis algo que

    Pluralidade - eis algo que sumiu da imprensa oficial. E é engraçado que esses grupos tentam passar essa pluralidade pela quantidade. Na globo, todos os analistas econômicos falam a mesmíssica coisa - Miriam, Paulo Borges, Sadenberg. Ou seja, é até uma burrice = pra que ter três que falam a mesma coisa? não é melhor só ter um (rs). 

    Triste demais a partida do Paulo Nogueira. Mas, como a última foto dele era uma frase do Oscar Wilde, vou usar uma que considero das melhores =

    Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe - Oscar Wilde.

     

    Paulo viveu - então Viva Paulo! 

     

     

     

  • Uma perda enorme para o
    Uma perda enorme para o jornalismo e para a esquerda tão carente de jornalismo investifstico e sem partidarismo.
    PAULO NOGUEIRA PRESENTE!

  • RIP

    Sempre li o blog  do PN com muito gosto e muito aprendi com ele.

    RIP

    ( ou, como diria minha mãe, vão-se os bons, ficam os mediocres)

  • Paulo Nogueira, jornalista

    Triste notícia. Nossos pêsames aos familiares e amigos do grande Paulo Nogueira.

  • Tristeza

    Estou passada com a notícia da morte do Paulo Nogueira! Ele ainda tinha tanto a contribuir, numa época em que estamos dominados pelos sereas trevosos!! Você fará muita falta!!!  Vida longa a todos os outros homens do bem, como é o caso do Luiz Nassif e outros! Desejo o conforto de toda a sua família,, e que o seu trabalho tenha continuidade no DCM - por meio do Kiko e outros que lá permanecem!

  • Infinita tristeza...

    Junto com Nassif, os dois maiores baluartes da resistência ao jornalismo patronal que arrasou com o próprio jornalismo brasileiro. Dia muto triste... Sem Paulo Nogueira, e seu texto fabuloso, ficará ainda mais difícil a nossa luta por um Brasil mais digno e um jornalismo que tenha um mínimo de dignidade. 

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