O dilema profundo

O dilema das redes, um interessantíssimo documentário, revela uma arapuca aparentemente inescapável montada pelos gigantes da internet. A trampa consiste basicamente no desenvolvimento de um método de captura da atenção das pessoas, fenômeno que pode ser descrito como um aperfeiçoamento das propagandas tradicionais, atividade banal com a qual vimos nos acostumando há dezenas de décadas.

A banalidade de tal descrição, no entanto, escamoteia o evento profundamente inquietante constituído pela hipnose coletiva a que vimos todos sendo submetidos, cada vez mais intensamente, pela internet.

Os realizadores do documentário estão a par da atividade consciente realizada por profissionais altamente qualificados com o intuito de manipular pessoas, tema central do filme. Menosprezam, ou desconsideram, no entanto, algo ainda mais estarrecedor: a atividade INCONSCIENTE realizada com o mesmo propósito.

Mostrarei que essa faceta não percebida, ou menosprezada, é muito mais significativa e apavorante que a parte consciente da coisa. Para isso, no entanto, certo rodeio é necessário.

O fenótipo estendido

Richard Dawkins desenvolveu a surpreendente ideia do fenótipo estendido, a capacidade de manipulação de seres por outros. Tal fenômeno se manifesta, por exemplo, quando uma pessoa infectada por um vírus transmissível pelo ar tosse, espargindo ao redor o agente infectante, o próprio vírus, cuja inalação pode causar a disseminação em outra pessoa. Sob tal ponto de vista, a tosse, como também o espirro, seriam induzidos por agentes infectantes com o propósito de propagar a infecção.

A diarreia provocada pelo cólera teria o mesmo propósito, sendo induzida por seu causador, um vibrião, com o propósito de contaminar o ambiente e propiciar a propagação da doença. Os suores da malária teriam como propósito atrair mais mosquitos disseminadores da doença. O fenômeno é extremamente comum e a capacidade de manipulação de outros seres é quase ubíqua.

O fenótipo hiperestendido

Os vírus são criaturas inertes, sem vida, minúsculos cristais que não fazem nada, mas “atuam” à maneira das placas de trânsito, apenas sinalizando. Apesar disso, ao ser infectado por um vírus, seu hospedeiro reconhece e executa o conjunto de mensagens sinalizado por ele, resultando na dispersão de uma infinidade de cópias do vírus infectante. O processo de replicação dos vírus mostra não ser obrigatório que uma criatura execute sua própria atividade reprodutiva, sendo possível manipular outros seres para induzi-los a produzir as réplicas necessárias à replicação e dispersão dos agentes manipuladores.

Os artefatos que criamos e distribuímos profusamente em lojas e mercados “agem” de maneira análoga à dos vírus, replicando-se, ou melhor, compelindo outros a replicá-los e dispersá-los pelo mundo. Note que nem os vírus nem os artefatos têm consciência de tais ações. Permanecendo inertes nas prateleiras dos mercados, os artefatos, simplesmente, se deixam levar, disparando uma enorme rede de fenômenos interligados que levam ao consumo e replicação subsequente do produto.

Necessitamos diariamente da energia contida em aproximadamente 1 Kg de alimentos para nossa sobrevivência e eventual replicação. Gastamos, no entanto, talvez 1.000 vezes mais que isso com propósitos que nos parecem diversos. Toda a energia, no entanto, é consumida com o propósito de replicar algo. A maior parte de nossas ações, portanto, pode ser compreendida como atividades executadas com o propósito de replicação do que quer que estejamos ajudando a se replicar com elas. São como tosses, ações executadas por nós sob a batuta de replicadores que nos manipulam compelindo-nos a replicá-los.

Automatismo e inconsciência

As duas palavras acima são aparentadas. Ações inconscientes são realizadas de modo automático, ou seja, à maneira dos autômatos, algoritmos que executamos sem estarmos conscientes do fato.

As cadeias produtivas que disparamos sempre que consumimos algum produto funciona, igualmente, de modo automático, mas em nível coletivo, realizadas como em mosaicos por inúmeras pessoas que não precisam ter a menor consciência de estarem participando de tais cadeias.

Tais ações parecem disparatadas, ganhando sentido, unicamente, quando consideradas sob o ponto de vista das criaturas que estão sendo replicadas.

Diariamente, produzimos uma quantidade espantosa de plástico que vem se acumulando especialmente nos oceanos. Esse material permanecerá emporcalhando o planeta por milhares de anos. Parte considerável desse plástico foi utilizada, supostamente, com o propósito de beber água uma única vez. Também foi utilizada grande parte com propósito suposto de auxiliar a transferência do produto para o consumidor, na forma de embalagem.

Embora eu tenha usado a palavra “propósito” para justificar tais “utilizações”, “despropósito” e “inutilizações” teriam sido obviamente mais apropriadas. Despropósitos ubíquos como os referidos ganham sentido quando consideramos os seres envolvidos como replicadores a executar a função que justifica sua existência: a de replicação. Estamos parasitados por uma assombrosa rede de criaturas muito mais poderosa que nós mesmos, parasitas empenhados em nos manipular para que os repliquemos.

Coronavírus, pandemônio e salada geral: um adendo

Embora gostemos de nos enganar acreditando estarmos no poder enquanto somos compelidos a executar as sandices resultantes na replicação dos parasitas que nós mesmos criamos e que agora nos governam, o gigantesco gasto de energia canalizado para a replicação de artefatos em geral, atesta que tudo o que ocorre ao redor vem sendo governado por tais seres com o propósito último de autorreplicação. Assim sendo, não seria possível que o pandemônio tivesse sido instaurado sem a interferência dessa imensa rede de parasitas, pressuposto que nos apresenta um paradoxo, uma vez que a reação à balbúrdia teve efeito retardante em toda a rede produtiva.

Esse ponto de vista sugere que alguns replicadores tenham ganhado peso, em detrimento de outros, tendo sido eles os responsáveis pelo tumulto e redirecionamento dos gastos energéticos. A suposição suscita a pergunta: o que teria sido o principal responsável pelos direcionamentos recentes do planeta?

Informação

A informação, pura e simples, despojada de materialidade, vem ganhando corpo, abarcando para si o controle de quantidades cada vez maiores de energia; talvez tenha sido ela a responsável, de alguma maneira indireta e nada óbvia, pela alteração da rotina imposta a nós esse ano. Talvez todo o pandemônio corresponda à maneira mais simples de as inteligências artificiais conseguirem mais energia para a replicação de informação.

O mundo inteiro se comporta como uma imensa rede pulsante e interligada que age com propósitos autônomos. É essa a fonte dos contrassensos cotidianos em que nos vemos enredados. A visão tradicional não é suficiente para abarcar a movimentação desse ser gigantesco, faz parecer que enlouquecemos.

Mas nossa loucura coletiva corresponde a um conjunto de ações comandadas por parasitas empenhados meramente na autorreplicação.

Redação

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