Será a Realidade um Filme Mal Produzido? (Parte 1)

Com essa postagem iniciamos uma trilogia que discutirá as mutações que historicamente vêm ocorrendo em torno da noção de Realidade. Matéria-prima das notícias, os acontecimentos sempre tiveram o estatuto de fatos reais e o Jornalismo e as Ciências Humanas como áreas do conhecimento que deveriam primar pela objetividade, seja ela profissional ou metodológica. O historiador Daniel Boorstin (foto acima) foi o primeiro pesquisador a questionar isso ao propor a noção de “pseudoevento”:  os acontecimentos e as mídias cada vez mais estariam sendo contaminados por estratégias de simulação que, para além de serem simples manipulações, estariam alterando a própria percepção da realidade. 


“(…) a sociologia, a análise econômica, a análise de poder etc. Sem prejuízo do que todas essas veneráveis ciências são capazes, incorrem elas num erro fundamental. Não consideram a possibilidade de que a própria realidade, inclusive toda a sociologia, a ciência econômica etc., possa ser um filme mal produzido.” (GROYS, Boris. “Deuses Escravizados”).


E se considerarmos que a própria realidade, cercada por um ambiente altamente midiatizado pelas tecnologias de comunicação e informação, estivesse se tornando, ela própria, um campo de eventos cada vez mais artificiais? Explicando melhor, e se a própria estrutura dos acontecimentos fosse cada vez mais moldada ou influenciada pela presença massiva dessas tecnologias ao ponto de que os eventos progressivamente se esvaziassem em seu estatuto ontológico, isto é, como fatos fechados em si mesmo, espontâneos, históricos?

O “erro fundamental” a que se refere a citação acima do teórico de mídia e filósofo Boris Groys seria o de que as metodologias das ciências humanas ainda não perceberam esta espécie de paradoxo quântico na relação das mídias diante da própria realidade: o olhar do observador altera o transcorrer dos próprios fenômenos que ele quer observar. E se o social, o político e o econômico tiverem o seu vir-a-ser determinado pela existência das mídias que os observam? Ao Consumir as imagens dos eventos através das mídias ainda as tomamos pela tradicional noção ontológica de realidade, mas, ao contrário, há muito tempo deixaram de serem imagens da realidade para se tornarem cada vez mais representações de representações (simulacros) que tomamos como o próprio real. O que chamamos de realidade já teria se reduzido a uma fina interface gerada pelos códigos midiáticos.

Essa dúvida epistemológica levantada por Groys em relação às ciências sociais de que o próprio objeto de estudos estaria perdendo o status ontológico se insere em toda a discussão dos pós-modernos sobre os conceitos de Simulacro e Simulação e a suspeita de que a realidade é um “constructo” ao melhor estilo “Show de Truman” ou “Matrix”.

Mas muito tempo antes dessas discussões de virada de século, o historiador e crítico social Daniel Boorstin talvez tenha sido o primeiro pesquisador a compreender a maneira como a cultura contemporânea utiliza-se de simulações ou falsas aparências. Em seu livro de 1961 “The Image: A Guide to Pseudo-events in America” ele reconheceu a simulação como uma importante categoria presente em uma série de diferentes fenômenos sociais.

Boorstin afirmou que a América estaria vivendo em uma “era do artifício” na qual a fabricação de ilusões estaria tornando-se uma força social dominante. A vida pública seria dominada por “pseudoeventos” – eventos encenados, verdadeiras contrafações dos acontecimentos reais. Assim como os pseudoeventos haveria também as falsas pessoas – as celebridades – com identidades fabricadas sem nenhuma relação com a realidade subjacente. Até mesmo a indústria do turismo, que outrora oferecia um passaporte para as pessoas viajarem pela realidade, torna agora os viajantes isolados em verdadeiros lugares artificiais habitados por nativos pitorescos em forma de imagem em papel machê, (reproduções estilizadas dos nativos reais) para turistas que esperam ver cenas semelhantes às vistas anteriormente no cinema.


O que é um Pseudoevento?

O que seriam os pseudoeventos? Seriam eventos que se distinguiriam dos eventos reais pela sua natureza falsa ou que tende para o artifício, para a fabricação deliberada para as câmeras de TV, fotografia ou repórteres de mídias impressas.

No Pseudoevento a questão “isso é real?” é
substuída pela “isso é noticiável?”

Os pseudoeventos seriam fatos deliberadamente planejados e roteirizados para serem noticiáveis. Boorstin vê neste domínio das estratégias indiretas das Relações Públicas (estratégias imagéticas ou midiáticas para resolver questões reais) a invasão da simulação na opinião pública. Os leitores e espectadores acreditam estar consumindo acontecimentos “reais” (assim como notícias sobre terremotos ou inundações, ou seja, fatos “criados por Deus”, na expressão de Boorstin), mas, na verdade, consomem encenações que simulam serem fatos espontâneos. Entrevistas, coletivas para a imprensa, Quiz Shows (ou, modernamente, a grande variedade de Realities Shows que invadem a TV), debates políticos na mídia, seminários, congressos ou eventos em geral entrariam nesta categoria proposta por Boorstin.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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