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Quem precisa de uma indústria musical?

Do Sul 21

Quem precisa de uma indústria musical?

Por Augusto Maurer

Há muito mais música de qualidade ainda por ser descoberta pela maioria dos ouvintes em contextos locais não mapeados do que na totalidade do que vem sendo produzido pela indústria fonográfica desde seu surgimento em meados do século passado. A qualidade musical que jaz latente sob o manto de desconhecimento da diversidade não é, no entanto, um fato recente – só que os meios para sua detecção e difusão eram indisponíveis antes do advento da rede mundial de computadores. Simples assim.

Toda música produzida pela indústria resulta de processos rigorosamente controlados, da concepção à comercialização, conduzidos por um elenco de agentes bastante especializados, tais como compositores, arranjadores, músicos, técnicos e, last but not least, produtores. Muito embora ostentando frequentemente o rótulo de popular, tal música tem pouco ou nada a ver com processos criativos espontâneos e/ou coletivos originários do tecido social. Até por que a diversidade cultural é, por definição, totalmente incompatível com a exacerbada padronização dos processos industriais.

Dentre os traços mais marcantes da música fabricada destaca-se a necessidade de atender demandas de mercados específicos sendo, ao mesmo tempo, absolutamente descartável – seu período de validade correspondendo, na maioria das vezes, ao intervalo entre os lançamentos de álbuns consecutivos de um mesmo “artista” (que é como cantores são vulgarmente conhecidos na indústria), em perfeita consonância com o princípio da obsolescência programada. Além disso, a necessidade de que consumidores reconheçam, a cada novo lançamento, alguma identidade de seus artistas favoritos determina por si só a monótona mesmice de tantas carreiras artísticas, se pensarmos na imensa variedade interna na obra de cada grande compositor anterior ao fonógrafo.

Ciclos de produtos fonográficos são perfeitamente análogos aos da indústria da moda, cuja sazonalidade obedece ao ritmo inexorável da alternância das estações. Imaginem se fosse socialmente aceitável que pessoas usassem, ao longo de todas as nossas vidas, uma pequena coleção de peças de vestuário. Com toda a tecnologia têxtil de que já dispomos, certamente as peças de indumentária aguentariam o tirão. A indústria da moda, no entanto, entraria em franco colapso – e em sua esteira a da publicidade – de tal modo que vozes não tardariam em se erguer clamando por medidas protecionistas em defesa de postos de trabalho ameaçados. Claro está, pois, que o problema não reside no trabalho em si mas na própria ideia de riqueza, já que é consideravelmente mais trabalhoso produzir bens obsoletos do que duráveis, como bem demonstra a história do cartel das lâmpadas incandescentes.

Na indústria da música não é diferente. De modo que não é qualquer exagero se afirmar que o pop foi inventado (quem duvide que estude a biografia de George Martin antes dos Beatles) por fabricantes de mídias fonográficas – naquele caso o disco de vinil – ante a incômoda constatação de que ouvintes interessados poderiam se dar por felizes dispondo, por exemplo, ao longo de suas vidas, de um punhado de cantatas de Bach, canções de Schubert ou sinfonias de Beethoven, Brahms ou Mahler. E trios de Bill Evans, é claro. Aqui, cada um completa a lista com seus favoritos. O mais importante é ressaltar que a música que levaríamos para uma ilha deserta, a qual convém designar também por personal music , cabe, na maioria das vezes, numa valise de LPs.

A música clássica também não ficou imune ao ideal de fartura promovido pela indústria. Perturbados pela durabilidade atemporal dos conjuntos fechados das obras de compositores imortais, produtores não tardaram a inventar, apoiados no mito do maestro, o culto a diferentes versões de uma mesma obra. Ainda que tal margem interpretativa seja suficiente para manter um discreto mercado clássico aquecido e prensas e críticos ocupados, é altamente questionável a alegação de que ouvintes experientes sejam efetivamente capazes de identificar uma música mais por suas nuances interpretativas do que por seu DNA composicional. Noutras palavras, até podemos gostar mais de uma ou outra gravação (geralmente mais por suas características técnicas do que por traços interpretativos reconhecíveis); ao ouvirmos, todavia, nossos clássicos favoritos, o que ouvimos é a própria composição muito antes do que sua versão por fulano ou beltrano. Admito, a bem dizer, que tal raciocínio se aplique bem melhor à música instrumental e, principalmente, orquestral do que à vocal.

Já aquela música largamente ignorada que brota e circula à margem e apesar da indústria do disco e do espetáculo, é imensamente mais variada do que a última e intrinsecamente inalienável de seu contexto de origem e circulação. Um de seus atributos mais curiosos é uma certa propensão a se qualificar por meio de trocas entre diversos – quase como se quanto maior o abismo cultural entre as partes em interação, melhor a música dela resultante. A música diversa é, pois, a música dos grandes encontros. A indústria bem que tenta emular este modo de criação – tais esforços, no entanto, quase sempre malogrando em razão da nefasta intervenção de produtores que buscam imprimir a cada nova mercadoria a marca de neutralidade de um estilo compatível a mercados mais amplos, transnacionais. De tal modo que se antes ouvíamos binômios como Sinatra & Pavarotti ou Mercury & Caballe, o padrão que hoje temos estabelecido une rappers a divas do pop. Mudam os nomes, permanece o princípio.

A música diversa é indiferente às grandes audiências, presenciais ou eletrônicas, de tal modo que é muito mais provável compartilharmos a audição ao vivo de grande música ao lado de outros poucos ouvintes, por exemplo, numa roda de samba ou num clube de jazz, do que na plateia de um grande teatro ou, pior, numa arena de eventos. As razões para isto são de ordem técnica e social. Primeiro, toda música, enquanto fato acústico, tem sua qualidade deteriorada quanto mais for amplificada – o que automaticamente exclui qualquer possibilidade de uma audição musical qualificada em espaços compartilhados por mais do que poucas centenas de ouvintes, independentemente da parafernália tecnológica posta em ação para compensar tal desvantagem acústica – como bem aponta David Byrne em How architecture shapes music. Depois, é difícil maginar qualquer impacto dramático em tempo real de uma grande plateia sobre uma execução musical. Não, ao menos, do tipo de interação que costuma ocorrer entre os músicos e audiências que compartilham pequenos espaços.

O problema da música diversa antes da disseminação do acesso aos meios de troca horizontais inerentes à internet era que, sem os mesmos, todo fato musical qualificado local tendia a ser percebido pelos poucos que o testemunhassem não como manifestação específica de um estado de coisas universal mas, antes, como instância virtuosa isolada e acidental. Com a web, vieram a cultura de compartilhamento com suas tantas plataformas e os sistemas de recomendação espontaneamente formados nas redes sociais – fatos culturais que se impuseram às tecnologias indiferentemente ou apesar de quaisquer vontades das mesmas ou de seus criadores, facultando a todo músico criativo infinitas possibilidades de interação com ouvintes e colaboradores em qualquer lugar e mesmo obliterando a clássica distinção entre músicos e não músicos. Tal quadro é magistralmente descrito por Dave Haynes, criador e proprietário da Soundcloud, em Everyone is a music maker (I love TED talks: anything plainly explained in 18 minutes).

Então, se hoje roteiros de escuta musical são pautados não mais pelo (pouco) que é oferecido pelos broadcasting media mas, antes, por recomendações filtradas por meio de personal learning networks que idealmente habitam as redes sociais, já é possível a músicos e ouvintes exigentes antever, num futuro não muito distante, um cenário musical mais qualificado e plural com bem menos espaço para rádio e TV hegemônicos, grandes espetáculos e produtores formatadores. Ou, se preferirem, uma música mais humana.

Há muito sobre a nova economia da música em sites como Hypebot e Pitchfork ou nos escritos de Suzanne Lainson. Boas rotas de leitura: a cena indie (Arcade Fire, Converse (1ª tourné indie na China e aquisição de clube de jazz para transformá-lo em estúdio para gravar crowdsourced bands)). No Brasil, talvez o maior conhecedor e evidenciador da qualidade diversa e dispersa em música seja Pena Schmidt, descobridor do rock urbano nacional nos anos 80 e atual curador do Auditório Ibirapuera. Quem quiser constituir uma boa discoteca deve acompanhar quem toca por lá.

Augusto Maurer é clarinetista da OSPA (Orquestra Sinfônica de Porto Alegre) e professor do Instituto de Artes da UFRGS 

Luis Nassif

Luis Nassif

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