As críticas de Gilmar Mendes e os desastres à vista das Forças Armadas, por Luis Nassif

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, acusou os militares de estarem promovendo um genocídio no país, pelo descontrole na área da saúde. Os militares reagiram, através de nota conjunta do Ministro da Defesa e do Comandante das Forças Armadas, mostrando o envolvimento das FFAAs em ações por todo o país, de combate ao coronavirus.

Ambos os lados têm razão. Mas a razão invocada pelas FFAAs não responde às críticas de Gilmar.

Uma coisa é seu envolvimento com questões de saúde, montando hospitais de campanha, chegando aos mais distantes rincões do país. 

Em várias pandemias passadas, montaram ações de inegável importância regionais e social, articuladas com o Ministério da Saúde. Mas obedeciam a uma estratégia sanitária, desenvolvida por especialistas em saúde, com grande conhecimento de causa. Essa estratégia foi responsável por projetar o Brasil como referência no combate às grandes pandemias.

O que está ocorrendo agora é diferente. Trata-se da apropriação do Ministério da Saúde por um oficial da ativa –  general Eduardo Pazuello – que está promovendo o desmanche da equipe técnica e a ocupação de cargos por outros militares. Está militarizando a saúde, sem ter conhecimento sobre o tema, em um campo que mexe com o destino de milhões de brasileiros.

É esse o tema, e as FFAAs não podem fugir desse assunto.

Poderiam poderiam alegar que não têm nada com isso, que é decisão pessoal do Presidente da República. É argumento falacioso. Se o Presidente convoca militares, que empregam militares, que ocupam cargos para os quais não têm nenhuma experiência, e essa ocupação resulta em desarticulação das ações de saúde e aumento da morte de brasileiros, é uma questão militar, sim. Envolve diretamente a imagem das FFAAs, e os interesses da corporação, mesmo que esses militares obedeçam a um comandante desnaturado – o Presidente da República.

A melhor resposta do Alto Comando seria soltar um comunicado regulando de forma clara a ida de militares ao governo. E deixando de forma clara os limites de sua responsabilidade no combate ao Covid-19.

O general Pazuello foi indicado como interventor do Ministério da Saúde por ser militar, não por seus atributos de especialista em saúde – que, decididamente, não é. Seu currículo foi dourado com a informação de que é especialista em logística. Tal especialidade o torna apto para trabalhos de logística, não para planejamento da saúde. E poderia ser de grande utilidade se fizesse o meio campo com as FFAAs para maior sinergia com as ações de saúde. Em outras pandemias, havia essa colaboração, mas sob o planejamento de técnicos especializados em saúde.

Até o governo Temer, a Saúde nunca foi território político ou de partidos. Todos os Ministros pós-Constituinte eram especialistas ligados à bancada da saúde, mesmo alguns tendo feito carreira política. E a política de saúde foi sendo implementada no país através do mais bem sucedido pacto federativo contemporâneo, articulada com o Conselho de Secretários Estaduais de Saúde, definindo papéis claros para estados e municípios, organizando programas de apoio à saúde da família.

O início da destruição desse arcabouço começou no governo Temer, com a entrega do Ministério ao deplorável deputado Ricardo Barros, e foi ampliada no governo Bolsonaro, com o fim injustificável do Mais Médicos. 

Responsável por esse transtorno, no entanto, a partir de determinado momento o Ministro Luiz Eduardo Mandetta se cercou de quadros técnicos da Saúde. E montou um eficientíssimo sistema de comunicação com o público, que poderia ter transformado o Ministério em um agente de coordenação das ações de estados e municípios contra o coronavirus.

Foi defenestrado por Bolsonaro e a estratégia ruiu. 

Com Pazuello, o quadro deteriorou de vez, fruto de características militares típica, essenciais para a guerra, inadequadas para a governança civil, ainda mais em um país federativo.

A visão militar é do comando unificado. Tem que haver uma hierarquia e um comando cego às ordens que vêm de cima. Só se confia em agentes da própria força. E há uma solidariedade total com os companheiros alvos de ataques. Aliás, não há outra maneira de conduzir uma guerra.  Informações são armas estratégicas, que devem ser tratadas como tal. É o oposto de políticas de saúde, nas quais a boa informação é o melhor agente coordenador de ações.

Quando se traz essa visão para o terreno da gestão pública, é um desastre. Especialmente na gestão da Saúde, há a necessidade imperiosa de se articular com a ponta – estados e municípios – e se embasar em argumentos técnicos, fundados em informações confiáveis.

O próximo desastre

Não apenas na saúde. O próximo capítulo de desmoralização das FFAAs ocorrerá na ação comandada pelo general Hamilton Mourão, de defesa do meio ambiente.

Mourão montou um conselho da Amazônia composto apenas por militares. Não há governadores, prefeitos, ONGs ambientais, especialistas da Universidade. Isso porque quer controle absoluto sobre a estratégia.

Pior, Mourão compactua com a  mesma visão do Ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, de exploração da Amazônia, de abertura para o garimpo e para a pecuária. E enxerga  na defesa do meio ambiente uma estratégia de apropriação da Amazônia por interesses externos.

É significativo o apoio dado por Mourão ao Ministro Ricardo Salles.

No ano passado, Salles indicou para superintendente regional do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) no Pará, o coronel da Polícia Militar Evandro Cunha dos Santos. Ele foi exonerado tempos depois por ter cometido uma inconfidência: recebera ordens de Brasília para não mais destruir equipamentos de garimpeiros retidos pelo órgão. Sua informações jamais foi desmentida.

Meses atrás, Salles demitiu Renê Luiz de Oliveira, coordenador-geral de fiscalização ambiental, e Hugo Ferreira Neto Loss, coordenador de operações de fiscalização, logo após uma operação de combate ao garimpo ilegal na Amazônia. Para o lugar de Oliveira, Salles indicou Walter Mendes Magalhães Júnior, coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo, e ex-comandante da ROTA.

É esse o Ministro abertamente defendido por Mourão.

Como dois e dois são quatro, Mourão montará algumas políticas para evitar queimadas. Mas fechará os olhos para o desmonte da fiscalização, para o afrouxamento das regras ambientais, para a invasão do garimpo. Mais à frente, quando se tornarem mais nítidos os sinais dessa política, o país será jogado definitivamente no limbo das nações civilizadas.

Resumindo, duas áreas centrais para a segurança nacional – saúde e Meio Ambiente – estão sob responsabilidade de militares sem nenhuma experiência no setor (caso da saúde) ou com uma visão oposta à missão que lhe foi conferida (o meio ambiente).

O passivo cairá na conta das FFAAs. E não adiantará mostrar cenas de militares na Amazônia, em operações contra queimadas, ou em rincões, em operações de apoio à saúde. 

Luis Nassif

Luis Nassif

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  • a se parafrasear gilmar mendes: bem que as forças armadas (poder?) poderiam articular a saída ministro do stf, via house of lords. o ministro havia achado engraçado uma anedota de guedes: a de que boçalnaro havia tirado moro de Curitiba e, portanto, do judiciário.

  • Que gente cega toma conta do país. Na questão do meio ambiente, esse governo está atacando o setor que na prática é que vem pagando as contas do país, já que indústria está em fase terminal: o agronegócio. A tendência é o mundo ocidental parar de comprar produtos agrícolas brasileiras pelo desrespeito ambiental - e também para orgasmos dos agricultores de outros países, que não terão que ter mais concorrência com o agronegócio brasileiro. E nesse caminho, o único jeito do agronegócio não colapsar e ir pra cima de Bolsonaro é o Brasil se tornar mais dependente do país que dia sim dia não Ernesto Araújo ataca: a China, já que o establishment chinês tem como prioridade 1, 2, e 3 alimentar uma população de quase 1,5 bilhão de pessoas - sem preocupando muito pouco se o alimenta que o governo compra foi obtido a custas de um desmatamento monstro.

    • Será que precisamos mesmo de Forças Armadas ?
      Informa-se que são 3.000 (três mil) militares ocupando cargos no governo federal. São mais visíveis os do Ministério da Saúde. Observem: são 3.000 oficiais que deixaram seus postos no Exército e ninguém sentiu falta deles.

      • Do jeito que está, Marcos, não. Em um país normal, Forças Armadas servem pra duas coisas = em casos excepcionais, defender o país ( e tenho certeza que o Brasil não venceria um conflito contra Venezuela e Colombia, os dois maiores exércitos do cone sul. A comprovação foi a entrada quase imediata no Mourão na crise com a Venezuela, pois ele sabia que se o país iniciasse um conflito contra os venezuelanos como pau-mandado dos EUA, Bolsonaro tinha grande chance de acabar como Galtieri ) e no dia a dia ajudar no desenvolvimento tecnológico do país - e nem pra isso ultimamente serve: ao contrário, está ajudando a desmantelar o que foi conquistado a duras penas na parte de tecnologia, como concordar com a venda da Embraer por troco de pinga. E como cereja de bolo, o governo começa a usar para combater crime - e o resultado é o que vemos hoje no México, que há 10 anos fez esse idiotice de colocar exército pra combater tráfico de drogas e o resultado é que criou o cartel mais poderoso do mundo. No caso brasileiro,além de traficante, se mistura com miliciano. Nossa elite tá fazendo tudo pro país ser um Haiti da dinastia Duvalier.

  • O Brasil, daqui algum tempo, vai precisar de um pensador - um mix de Darwin e Lévi-Strauss - para explicar esse espécimen de saúvas verde-olivas que assola a coisa pública faz pelo menos 120 anos.

    Não adianta a generalada bater o pé e tentar entortar a realidade: contra fatos, não há argumentos. E a autoimagem ediapiana absolutamente descolada do mundo real atrapalha mais ainda.

    Salvadores da pátria? Guardiões dos valores fundamentais da sociedade? Longe, muito longe disso.

    Sem falar na formação dessa gente... Outro mito que se esvai pelo esgoto.

    No mais, #ficaadica para o próximo livro do Nassif, continuação do já clássico 'Os cabeça de Planilha': Os Cabeça de Apostila.

  • De Bolsonaro, a Mourão indo até o último bolsonarista raiz se vê o seguinte projeto pro Brasil = transformá-lo numa imensa Serra Pelada, cada uma tendo seu Curió no comando e impondo leis que tornam, por comparação, o velho oeste americano um civilizado Canadá. Bons tempos em que Chico cantava que o ideal de nosso país era virar um imenso canavial.

  • Fico impressionado com o silêncio dos dirigentes dos órgãos representativos da classe médica com a militarização do Ministério da Saúde. Na época do PT, especialmente do Mais Médicos, tudo era motivo para se manifestarem

  • Não sei de onde tiraram o mito de que militar tem mais competência que civil. Tire por Bolsonaro, um mau militar, segundo Geisel, deputador medíocre e péssimo presidente...

  • O problema, a grande questão, é o apoio irrestrito das Forças Armadas (às ações tresloucadas, de desgoverno, de desnacionalização, de risco direto aos cidadãos, à pátria brasileira) ao Bolsonaro que foi, aliás um mal militar. Nunca as Forças Armadas foram tão tisnadas como agora...

    • MILITARES-VESTEM-A-CARAPUCA-DO-GENOCIDIO-DE-QUE-GILMAR-FALOU

      Tijolaço - Fernando Brito - 13/07/2020

      É um autêntico “vestir a carapuça” a iniciativa do Ministério da Defesa de pedir que a Procuradoria Geral da República se pronuncie sobre uma ação judicial contra o Ministro Gilmar Mendes por ele ter dito que a imagem das Forças Armadas estão sendo prejudicadas pela usurpação da área da Saúde, colocando um general à frente do Ministério da Saúde e que isso faz com que o Exército seja associado a um genocídio.
      É que a nota da Defesa, além do esperado protesto contra as expressões fortes do ministro do Supremo – o que seria natural – levanta uma questão que demonstra a preocupação da cúpula militar com o fato de que genocídio é “um crime gravíssimo, tanto no âmbito nacional, como na justiça internacional, o que, naturalmente, é de pleno conhecimento de um jurista”.
      Sinal de que há temor de que os governantes brasileiros – e muitos militares estão associados a ele – podem vir a ser responsabilizados em tribunais internacionais, sobretudo se Donald Trump perder as eleições norte-americanas.
      Há previsão no Estatuto de Roma, que tem força de lei brasileira desde o governo Fernando Henrique Cardoso de que são crimes contra a humanidade atos que “afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental” (artigo 7°, 1, e) e que podem ser responsabilizados perante o Tribunal Penal Internacional as pessoas que, “no caso de crime de genocídio, incitar, direta e publicamente, à sua prática”.
      Convém lembrar que, com a designação do general Hamilton Mourão e a criação de uma “Operação de Garantia da Lei e da Ordem” para uma suposta preservação da Amazônia, o mau-humor mundial para o com o Brasil e seus militares está nas alturas.
      Com medidas “geniais” como a de demitir a responsável pela análise de dados de satélite sobre as queimadas amazônicas, repetindo a dose do ano passado, quando o diretor do Instituto de Pesquisas espaciais, Ricardo Galvão, não há dúvida de que estamos na fogueira perante a opinião pública mundial faz tempo e, quem sabe, nossos militares, pela ambição de uma cúpula que viu em Bolsonaro seu passaporte para o poder, acabem saindo mais que chamuscados.

      https://www.tijolaco.net/blog/militares-vestem-a-carapuca-do-genocidio-de-que-gilmar-falou/

  • Tudo bastante estranho. Ministro do stf dando pitaco em um governo que enfia os pés pelas mãos que, como não entende de nada, enfia milico em tudo quanto é lugar. Não é papel de ministro do stf.
    Quanto aos milicos, sinceramente, vamos ter que reduzir o tamanho disto para poder caber no orçamento. Nos eua são usados para manter uma caríssima industria de ponta hiper subsidiada, mas a perda de supremacia em setores de ponta e de informação tem demonstrado que há limites. Isto nunca aconteceu no Brasil, neste aspecto, também totalmente inúteis. STF e forças armadas, um tem que acabar o outro tem que ser reduzido a sua real importância e papel.

    • Qualquer pessoa sabe que o atual ocupante do cargo de ministro da saúde não sabe nada de saúde. Critique o artigo se tiver argumentos não quem simplesmente quem disse o óbvio.

      • Caro Maestri,
        Ministro da saúde é cargo político, não tem que saber nada de saúde, tem é que ter um ótimo quadro de apoio, e não é só de técnicos na área da saúde, mas voltados para.
        O problema é um ministro do stf, que também não entende nada de saúde, ficar ficar fazendo declarações como se fosse seu dever, dever dele é ficar calado. Para mim suas ações foram de passar por cima da lei em claras ações políticas, o caso da indicação de Lula p ministro, reuniões com golpistas na calada da noite etc.
        O problema é que esta porcaria de governo não tem nem quem o critique, fica todo mundo olhando assustado com o chipanzé abobalhado obrando em cima da mesa. Tá faltando oposição, o stf, não é oposição, não é presidente da câmara, não é lider da oposição. Juiz tem que se manifestar nos autos, já chega de moros, dallagnhois e gilmares, e o estrago atual tem dedo deles sim.

  • Para os olhos suinos de Mourão nada mais adequado do que o chafurdar na lama dos garimpeiros. Só que Mourão chafurda também sobre os corpos de milhares de indigenas que sua adesão ao garimpo tem por objetivo exterminar. E o consideram melhor do que Bolsonaro!
    GENOCIDA.

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