Sobre o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e os vetos presidenciais à sua liberação, aprovada por ampla maioria no Congresso
Por vezes temos manifestações corporativistas, buscando aumentar os próprios salários, furar a fila da vacina, reduzir impostos, ficar fora da reforma da previdência, etc.
Recentemente, porém, tivemos a mobilização de diversas entidades como Andifes, SBPC, Confies, Confap, Conif, Academia Brasileira de Ciências, entre outras, formando uma ampla frente cívica a favor da Educação, da Ciência e da Tecnologia. A Iniciativa para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ictp.br) foi criada para “atuar como um instrumento de pesquisa/ação da comunidade de C&T, em interação constante com os parlamentares, com o objetivo de produzir, disseminar e discutir informações fundamentadas e relevantes que possam influenciar nas tomadas de decisão legislativas” (quem somos, site da ictp.br).
Após ampla campanha da comunidade científica, ao final de 2020, a Câmara aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 135/20, do Senado, que proíbe o bloqueio de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal instrumento de financiamento à ciência, tecnologia e inovação (CT&I).
O FNDCT tem mais de R$ 6 bilhões autorizados pelo Orçamento de 2020, mas cerca de R$ 5 bilhões bloqueados pelo governo, para atingir a meta de déficit primário, sem que possam ser aplicados na pesquisa científica.
A pesquisa científica tem dificuldade de encontrar financiamento, principalmente diante do imediatismo do mercado, sem paciência ou visão de futuro, ou melhor, preocupação com o futuro, para apoiar pesquisas cujo retorno se dará adiante ou, ainda mais, quando este retorno é em segurança, conforto, saúde, dignidade, conservação do planeta e outros valores difíceis de mensurar financeiramente.
Adentramos recentemente em um período em que as descobertas científicas pelas quais alguns morreram ou foram perseguidos são desacreditadas. Mas não se trata de questionamentos que apresentem outro embasamento e tragam nova visão e aplicação para os fenômenos, o que não seria problema, ao contrário, contribuiria para o conhecimento, seja considerando Popper e o progresso da Ciência por “refutações”, seja pela criação e abandono de “paradigmas”, como propôs Thomas Kuhn.
O descrédito aqui é de outra ordem, está no nível da propaganda, da manipulação emocional e da desinformação. Passamos por um período em que integrantes do próprio governo abertamente defendem que a Terra é plana, fato que, apesar de gerar brincadeiras como retorno à idade média, nem mesmo o medievo acreditava, conforme constatado por historiadores. Já com Pitágoras, no século VI antes de Cristo temos o conceito da Terra Esférica, Aristóteles o aceitou com bases empíricas em 330 antes de Cristo e há 500 anos a expedição de Fernão de Magalhães trouxe a prova com uma volta ao mundo.
É um tipo de negacionismo que desacredita a descoberta científica, sem necessidade de outra prova. Que a despeito das vacinas terem evitado a perda de milhões de vidas e erradicado doenças, se contrapõe a ela levantando possibilidades como implante de chip para controle ou mutação em jacaré.
É um ataque à Ciência que passa pelo descrédito do Cientista, como quando Ricardo Galvão, então diretor do Inpe, cientista escolhido pela revista Nature entre os 10 de destaque em 2019, ouve do ministro do Meio-ambiente que os alarmantes dados do desmatamento na Amazônia são “ideologia disfarçada de ciência”.
Ora, dou estes pequenos exemplos, apenas para ilustrar o momento em que vivemos. E destacar que, curiosamente, justamente num momento assim, em que a Ciência e o cientista foram tão atacados – claro que não apenas com palavras, mas se o discurso chega a esse nível, o que esperar do financiamento? –, é num momento desses em que as esperanças se voltam, novamente, para a Ciência e a Tecnologia.
A pandemia de Covid-19, que acometeu milhões de pessoas no mundo, causa da maior crise humanitária de nossa época, chamou a atenção da sociedade, novamente, para o trabalho do cientista, para a importância da pesquisa e do conhecimento.
Evidentemente, dada a emergência mundial e o efeito para a economia, a pesquisa de vacinas ou medicamentos teve grande interesse de financiamento por governos ou empresas.
Infelizmente, este não é o caso do Brasil, que apesar dos esforços de seus cientistas e instituições públicas, apesar do grande trunfo que tem em seu Sistema Único de Saúde (SUS), não teve apoio do governo para o desenvolvimento e fabricação de vacinas, ao contrário, teve de se esforçar apesar dele.
Na contramão do conhecimento científico, recursos foram mobilizados, por exemplo, para a compra de medicamentos sem eficácia comprovada, recusado até mesmo pelas Emas do Palácio da Alvorada, dispondo agora, só de Cloroquina, de um estoque para 100 anos.
A pandemia de Covid-19 lembra a sociedade da importância da pesquisa científica e parece ter despertado parte da população para os ataques que a Ciência vem sofrendo – pois o desmonte vai além de descaso.
É notório que o PLP 135/2020, com a proibição do bloqueio de verbas do FNDCT, tenha recebido aprovação no Senado por 71 votos a 1, e na Câmara dos Deputados por 385 a 18.
Isso demonstra a sensibilidade que os congressistas, representantes do povo, tiveram sobre o tema, também pelo trabalho da ictp.br.
Porém, o Presidente da República, ao sancionar o projeto, agora Lei Complementar nº 177/2021, apesar de publicamente manifestar que acataria, colocou vetos que desconfiguram totalmente o projeto. Um veto retira a proibição dos recursos do FNDCT serem colocados em reserva de contingência, o que era o ponto essencial da lei, ou seja, eliminar o contingenciamento que sequestra 90% dos recursos para investimento do FNDCT; outro impede a liberação dos recursos autorizados para 2020.
Ora, os dois vetos presidenciais tentam se justificar pela manutenção do teto de gatos e, justamente, “pelo interesse público”.
Mas o que pode ser mais do interesse público do que o desenvolvimento da Ciência e Tecnologia, a possibilidade de dispor de recursos materiais e humanos que permitam, por exemplo, desenvolver meios de superar a pandemia?
Além disso, por que o investimento em Ciência Tecnologia e Inovação seria prejudicial à manutenção do teto de gastos, quando o governo federal gasta mais de R$ 1,8 bilhão em compras de supermercado?
Independentemente da justificativa que se possa apresentar para os R$ 2.203.681,89 em goma de mascar ou R$ 2.512.073,59 em vinhos (este item quase todo adquirido pelo Ministério da Defesa), fato é que o valor total da despesa com supermercado aumentou 20% de 2019 para 2020, ano de pandemia, em que o brasileiro depende de um auxílio emergencial e a taxa de desemprego ultrapassa 14%, sendo a maior desde 2012.
Chamou a atenção o gasto de mais de R$ 15 milhões em leite condensado, apreciado pelo presidente para comer com pão.
Aliás, vale lembrar que mesmo esta popular iguaria demandou pesquisa científica, testes e desenvolvimento de tecnologia. A partir das pesquisas para esterilização e conservação de alimentos realizadas pelo francês Nicolas Appert no início do século XIX, Malbec, outro inventor, desenvolve o leite condensado em 1820, sendo que Gail Borden deposita patente em 1856 e J.B Meyenberg aprimora o método em 1880 com a esterilização em autoclave.
Mas se o desenvolvimento do leite condensado não for capaz de convencer o autor do veto, talvez seja possível usar outro recurso.
Certa vez me disseram que Georg Lukács, amplamente descrito como um dos mais proeminentes intelectuais marxistas da era stalinista, ao ser perguntado como podia criticar o stalinismo com tamanha perseguição – foi preso pela polícia stalinista em 1941 –, respondeu que ao criticar o stalinismo, citava Stalin.
Então, arrisco lembrar que o próprio Presidente da República, em live no dia 24 de Dezembro, entre comentários não tão interessantes ou próprios, informou ter liberado um fundo que esquecera o nome, mas era “de tecnologia”, e sentenciou que “um país que não pesquisa, que não tem tecnologia, é escravo de quem tem”.
Infelizmente não tenho grande esperança que o autor do veto ou sua equipe se sensibilizem com os argumentos apresentados, seja pelo histórico do leite condensado ou pelas palavras do próprio presidente.
Assim, resta-nos apelar aos parlamentares que já captaram, neste caso, o interesse público ao votar a favor da liberação do FNDCT, e interpretaram corretamente a Constituição Federal que no Artigo 218, § 1º determina que “a pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação.”
É o Congresso Nacional que pode, agora, derrubar os vetos e manter a Lei Complementar nº 177/2021 em sua integralidade, respeitando o que foi aprovado pela esmagadora maioria da Câmara e do Senado.
Para que possamos ajudar, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC criou este abaixo-assinado: Pela Derrubada dos Vetos ao FNDCT.
Rafael Alves – Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – IFSP
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