O Estado de S.Paulo – 19/02/2011
Em tempos de ufanismo revisitado, que a propaganda estatal reduz ao “orgulho de ser brasileiro” em relação ao resto do mundo, o livro recém-lançado O Dia em Que Adiaram o Carnaval (Unesp), do diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, revela-se um ensaio precioso, ao reconstituir a invenção da nacionalidade brasileira.
O título da obra diz respeito à curiosa ordem do governo republicano de adiar o carnaval em respeito à morte de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, em 10 de fevereiro de 1912. Rio Branco tinha status de astro, porque lhe era atribuído o feito de ter desenhado as fronteiras do País – isto é, de ter dado um “corpo” à pátria que estava sendo criada.
Villafañe faz uma reflexão sobre o mito do Barão como construtor da nacionalidade e sua identificação com uma “certa ideia de Brasil” quase um século depois da independência. Trata-se de uma “paralisadora herança”, como comentou o embaixador Rubens Ricupero a propósito da persistente imagem de um país que atua no exterior tendo como lastro o genoma da “tolerância natural do brasileiro”, descrito por Stefan Zweig em Brasil, País do Futuro (1941).
O modo como o Brasil se enxerga no mundo, traduzido em sua política externa, é portanto o eixo em torno do qual Villafañe trabalha. A construção política dessa entidade, mostra o autor, começa como afirmação antilusitana e, ao mesmo tempo, como contraponto monárquico “ordeiro” ao “caos” republicano dos vizinhos latino-americanos. A “nação brasileira” que surge daí é formada por brancos europeus ricos. A escravidão criará o desconforto de uma imensa massa de pessoas que estão em toda parte, mas não integram a nação.
O sentido nacional só se completará no período republicano, mas a desigualdade social dificultou drasticamente a legitimidade do Estado. A “invenção” do Brasil, naquela oportunidade, dividia-se entre o passado português e a afirmação do mundo americano, sem lugar, contudo, para os brasileiros comuns.
Mesmo a república, porém, não ofereceu à massa, de imediato, um lugar na construção da identidade nacional brasileira. Foi preciso que houvesse a difusão das culturas ditas “subalternas”, contaminando a atmosfera da elite com o carnaval e o futebol como elos da nacionalidade. Foi necessário ainda criar “heróis” para representar o evangelho republicano – e Tiradentes foi o primeiro deles, embora tenha sido representante de um movimento que nem de longe era nacionalista; mas o alferes (ou a imagem que foi criada para ele) era alguém construído para simbolizar a união dos cidadãos, a participação popular e a luta autêntica pela independência.
A identidade internacional do Brasil, diz o autor, tem como referência fundamental, desde seu início como país independente, a América – entendida primeiramente como os EUA e depois como as repúblicas latino-americanas. O Brasil foi o único país americano que, em sua independência, não desenvolveu proximidade com a ideia de ruptura com o modo de vida europeu. Com a república, o antiamericanismo monárquico foi substituído pela defesa do “espírito americano”. É justamente com Rio Branco que a aliança com os EUA se consolida, sob a perspectiva de domínio geral estadunidense nas Américas e na hegemonia brasileira no nível sul-americano.
A partir de Getúlio Vargas, e desde então com esporádicos intervalos, a política externa brasileira se fundaria na dimensão do desenvolvimento econômico nacional em contraponto ao Hemisfério Norte, num apenas aparente afastamento do evangelho de Rio Branco. No início da Guerra Fria, o Brasil viu-se em condições de invocar o americanismo do Barão para cobrar tratamento preferencial dos EUA. A frustração com a resposta vaga de Washington a esse pleito – e também à promessa de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, feita pelo presidente Franklin Roosevelt a Vargas – empurrou o Brasil para uma aproximação maior com os demais países latino-americanos e para a ideia de que havia um bloco regional de subdesenvolvidos, entre os quais os brasileiros passaram a se incluir, que precisavam ser ouvidos.
Esse bloco se considerava moralmente superior às potências globais, porque seria vítima da corrida armamentista e das guerras imperialistas. Tal movimento rompeu a bipolaridade Leste-Oeste da Guerra Fria e estabeleceu a complexidade do debate Norte-Sul, com a defesa de um modelo de desenvolvimento fortemente estatal, em contraponto à doutrina democrático-liberal que se consideraria vitoriosa na queda do Muro de Berlim e que se fazia representar pelos EUA, justamente o “outro” na relação com a América Latina ao longo do século 20.
A identificação latino-americana, de tão importante para a nova etapa da ideia de nação brasileira, foi inscrita na Constituição de 1988. O discurso do Brasil hoje, sobre seu lugar no mundo, é fincado essencialmente na afirmação da liderança continental, ainda tendo como referência os EUA, numa inequívoca demonstração da resistência, mesmo controversa, da herança do Barão do Rio Branco – o nosso “Founding Father”.
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O DIA EM QUE ADIARAM O CARNAVAL: POLÍTICA EXTERNA E A CONSTRUÇÃO DO BRASIL
LUÍS CLÁUDIO VILLAFAÑE G. SANTOS
(São Paulo: Editora Unesp, 2010, 278 p., R$ 40)
Sumário:
Apresentação – Maria Lígia Coelho Prado
O Barão, santo no altar da nacionalidade
Brasil ou Brasis?
Um Império tropical
Somos da América e queremos ser americanos
O Barão e outros santos
A consciência do atraso
Rompendo com o Barão?
Conclusão
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Fontes:
1) O Estado de S.Paulo – Caderno Sabático
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