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O humano, demasiado humano no filme “Relatos Selvagens”

O homem atual seria um Sísifo moderno? Assim como o personagem da mitologia grega, condenado a carregar eternamente uma enorme pedra ao topo da montanha, o homem estaria condenado a não encontrar Deus, sentido ou propósito na existência, a não ser encontrar a si próprio – o humano, demasiado humano. Esse é a desconcertante co-produção Argentina/Espanha “Relatos Selvagens”, seis curtos relatos de pessoas comuns diante de circunstância incomuns: situações extremas com muito humor negro (e bota negro nisso) onde acabam sendo despertados em cada um os instintos mais básicos de vingança e violência. Em falso tom de comédia, o diretor Damián Szifrón parece querer brincar com o espectador: afinal, estamos rindo do quê?

O cinema contemporâneo pode ser basicamente dividido em dois grandes núcleos temáticos: de um lado, o gnóstico: filmes onde a jornada de sofrimentos e provações do protagonista não decorre de uma falha de caráter, pecados ou de deformações inerentes à natureza humana – ao contrário, decorre de um universo corrompido ou ilusório que o aprisiona da qual tenta escapar através de uma iluminação interior; e do outro o que poderíamos chamar de “humano, demasiado humano”: filmes que são o inverso do pathos gnóstico – o homem sofre em decorrência da sua própria natureza, fraquezas, paixões ou obsessões.

A co-produção Argentina/Espanha Relatos Selvagens do diretor Damián Szifrón claramente se insere nesse segundo núcleo temático. O filme é composto por seis curtas independentes, unidos apenas pelo tema comum da violência e vingança. Com muito humor negro (e bota negro nisso), são apresentados relatos de personagens colocados em situações extremas onde o instinto selvagem de sobrevivência e autopreservação vem à tona das formas mais variadas.

 

Já no primeiro relato chamado “Pasternak” percebemos a “pegada” do filme: dois passageiros em um avião descobrem que conhecem um homem chamado Pasternak – ela é sua ex-namorada, e ele um crítico musical que destruiu selvagemente a reputação do trabalho artístico dele. Acabam descobrindo também que todos naquele voo tiveram algum tipo de relacionamento problemático com Pasternak. O que fazem todos ali reunidos? É o que descobrirão da pior maneira possível. E o final violento do primeiro relato emenda com os créditos iniciais, onde vemos o desfile de uma série de fotos de animais predadores: répteis, felinos e aves de rapina.

O homem é o predador do próprio homem, parece ser o que Szifrón quer nos dizer. Todos os personagens dos relatos são seres comuns expostos a situações desconcertantes. Ricos, pobres, classe média, homens e mulheres reagem a circunstâncias que certamente são mais fortes do que poderiam suportar. E reagem, muitas vezes sem medir as consequências.

Se nos filmes gnósticos há um mergulho no interior do protagonista para encontrar a luz (a gnose) que o faça mudar intimamente e escapar de um cosmos que o aprisiona, aqui em Relatos Selvagens o “demasiado humano” é mais forte: os personagens põem em prática seus impulsos mais violentos, criando situações de incrível humor negro… tão negro que muitas vezes o espectador se pegará dando sorrisos amarelos e pensará: afinal, de quê estou rindo?

É exatamente esse o ponto mais forte do filme Relatos Selvagens, como veremos adiante.

O Filme

No segundo relato (“Las Ratas”) vemos um corretor imobiliário que para em um restaurante de beira de estrada. A garçonete o reconhece como o homem que arruinou sua família, mas ela se recusa a aceitar o plano da cozinheira de colocar veneno de rato no prato pedido por ele. Mas a cozinheira, uma ex-presidiária, tentará seguir em frente no plano.

Em “El Más Fuerte” vemos um homem bem sucedido guiando seu carro de luxo em uma estrada. Uma camioneta velha propositalmente impede sua ultrapassagem, até que o homem o ultrapassa, gritando uma série de insultos racistas e preconceituosos. Mais à frente, um dos pneus da sua BMW fura, forçando-o a parar. Mal sabe ele que aquele homem insultado vem logo atrás, e com sede de vingança.

No relato chamado “Bombita”, vemos Ricardo Darin fazendo um técnico em explosivos em um dia que tudo dá errado: seu carro é guinchado pela prefeitura, chega atrasado na festa de aniversário da sua filha, no que resulta numa crise conjugal e o início do divórcio, além de mais tarde perder o emprego. Mas “bombita” terá seu dia de fúria, e enfrentará tudo com explosivos.

Já em “La Propuesta”, um pai rico tenta encobrir uma trágico acidente envolvendo seu filho: voltando de uma balada na madrugada, ele atropelou uma mulher grávida, matando-a. Diante do clamor popular e midiático por justiça, o pai faz uma proposta para o seu jardineiro: levar a culpa no lugar do filho em troca de muito dinheiro. Mas ele terá que também subornar a polícia e pagar muito dinheiro ao seu advogado para fazê-lo participar do esquema corrupto. Porém, corruptos e corruptores não se entenderão, criando uma espiral de ganância e ameaças.

O relato final (“Hasta que la Muerte nos separe”) se passa em uma festa de casamento. A noiva descobre que seu marido a trai com uma das convidadas, produzindo uma cadeia de eventos naquela noite que resultará em novas traições, brigas, vingança, sangue e ameaças da noiva em humilhar o marido por toda a vida conjugal e arrancar dele até o último tostão.

Um olhar impiedoso

 

Os seis curtas que estruturam o filme, principalmente o episódio “Bombita”, lembram o esquema de filmes como Depois de Horas (1985) de Martin Scorsese misturado com Um Dia de Fúria (1993) com Michael Douglas: pessoas comuns colocadas em situações incomuns, enfrentando desventuras em série, efeitos dominó, coincidências perversas, o que faria lembrar uma insólita conspiração da realidade contra os protagonistas.

Nesse aspecto, Relatos Selvagens parece se aproximar do núcleo temático gnóstico. Mas para Szifrón, tudo isso é decorrência da natureza humana impulsiva e violenta. Por isso, o diretor lança um olhar impiedoso a seus atribulados personagens, pessoas ordinárias que progressivamente vão se transformando em monstros.

Dessa maneira, o ponto alto do filme é como Szifrón parece ao mesmo tempo brincar e provocar o espectador. O primeiro relato seguido dos créditos iniciais dão um falso tom de comédia para a produção. As fotos dos animais predadores ao som de uma trilha musical que lembra o tom fake e pastiche dos filmes de Tarantino parecem tranquilizar o espectador para a previsibilidade do que verá nas próximas uma hora e meia.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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