Categories: NotíciaPolítica

O que Montaigne, Goethe e Antonio José podem nos ensinar acerca do neo-obscurantismo judicial?

Cada vez que reflito sobre o livro Estado Pós-Democrático fico tentado a desdobrá-lo um pouco mais.

“Com a ascensão da razão neoliberal e o estabelecimento do Estado Pós-Democrático, o mercado foi elevado à posição de principal regulador do mundo-da-vida. O mercado tornou-se o eixo orientador de todas as ações, uma vez que foi elevado a núcleo fundamental responsável por preservar a liberdade econômica e política. Os bens, as pessoas, os princípios e regras passaram a ser valorizados apenas na condição de mercadorias, isto é, passaram a receber o tratamento conferido ás mercadorias a partir de seu valor de uso e de troca. Deu-se a máxima desumanização inerente a lógica do capital, que se fundamenta na competição, no individualismo e na busca do lucro sem limites.” (Estado Pós-Democrático, Rubens R.R. Casara, Civilização Brasileira, São Paulo, 2017, p. 39/40)

A mercantilização da justiça, ou melhor, a suposta oferta de proteção político-judiciária em troca de salários e mordomias foi estudada de maneira detalhada por Luciana Zaffalon https://www.cartacapital.com.br/politica/ha-uma-dinamica-que-financia-a-atuacao-elitista-da-justica-paulista. O resultado da pesquisa que ela fez em São Paulo não foi objeto de análise no livro Estado Pós-Democrático. Isto se deve ao fato de que as duas obras (a pesquisa e o livro) foram divulgadas mais ou menos na mesma época. Numa próxima edição do livro, o juiz  Rubens R.R. Casara poderá comentar aquele estudo.

A justiça e o valor das coisas foram objeto de preocupação de dois grandes autores europeus. Refiro-me ao filósofo Michel de Montaigne (1533/1592) e ao poeta Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).

“A opinião que temos das coisas é que as valoriza. Isso se vê pelo grande número daquelas que não examinamos a não ser para as avaliar, antes que a nos mesmos. Não lhes ponderamos nem a qualidade nem a utilidade, mas apenas o que nos custam para as obtermos, como se o que pagamos fosse parte integrante delas; e o valor que lhes atribuímos mede-se não pelos serviços que nos prestam, mas pelo que demos para consegui-las. Isso me induz a achar que as usamos de maneira estranha, pois valem segundo o que pesam e na medida do peso. E nunca as deixamos desvalorizarem-se. O preço dá valor ao diamante; a dificuldade à virtude; a dor à devoção; o amargor ao remédio. Há quem para chegar à pobreza jogue ao mar seus escudos, esse mesmo mar que outros esquadrinham e batem para encontrar a riqueza. Epicuro disse: ser rico não significa despir-se de preocupações, mas tão somente troca-las por outras, e em verdade não é a carência e sim a abundância que acarreta a avareza.”

(Ensaios, Michel de Montaigne, editora Abril Cultural, coleção Os Pensadores, 1a. edição, São Paulo, 1972, Livro Primeiro, capitulo XIV, p. 39)

“BRUXA MERCA-TUDO

Oh senhores, que ides assim despreocupados!

Não deixeis escapar tão bela ocasião!

Olhai mercadorias, que tenho em profusão.

Artigos para vender, bonitos, variados,

Nesta loja encontrais as coisas mais formosas,

Já não existem iguais na terra em qualidade.

Que tanto mal fizeram ao mundo, tenebrosas,

E toda a Humanidade.

Aqui todo punhal é manchado de sangue.

Há taças que serviram bebidas venenosas,

E que os lábios sorveram,

Ardentes consumindo um corpo são, exangue,

E jóias que mulheres belas perverteram.

Aqui exponho espadas, que sempre hão falseando

Compromisso sagrado

E só à traição os corpos abateram.”

(Fausto, J. W. Goethe, Abril Cultural, São Paulo, 1976, p. 212/213)

Montaigne afirma que as coisas não têm valor em si e que nós as valorizamos em virtude da opinião que é formada em relação ao seu valor de troca. A personagem de Goethe parece discordar dele, pois ao formar uma opinião sobre algo podemos ser enganados pela aparência. Essência e aparência se confundem na formação do valor de troca. Mas o valor de uso depende sempre da essência da coisa.

Transformada em mercadoria a justiça se transforma em valor de troca nas mãos dos juízes (como sugere Luciana Zaffalon). Neste caso, os cidadãos que aguardarem decisões que concretizem o valor de uso da Justiça rapidamente descobrem que ela perdeu sua essência. Quando, por qualquer razão extraprocessual, o juiz distribui a justiça como se ela fosse um valor de troca, sob a aparência da sentença imparcial aparece o punhal da Bruxa Merca-Tudo que fere mortal e traiçoeiramente o Direito, o Estado e o cidadão.

Justa não é a sentença que a opinião pública ou publicada exige. Justa é a sentença que possibilita à justiça realizar seu valor de uso. O valor de uso da justiça me parece bastante óbvio: através de sua distribuição é possível pacificar a sociedade mediante a atribuição da pena e/ou da reparação do dano, sempre mediante a fiel aplicação da Lei conhecida por todos e a individualização da responsabilidade de acordo com a prova, etc…

Citei estes dois autores, por uma razão muito evidente. A submissão do Sistema de Justiça à razão neoliberal equivale de certa maneira à submissão dos julgamentos à irracionalidade teológica durante a Idade Média. Tanto Michel de Montaigne quanto Johann Wolfgang von Goethe viveram num mundo que transitava entre o feudalismo e aquilo que alguns séculos depois seria de Estado Democrático de Direito. Nós também estamos vivendo num mundo em transição, mas ao contrário de Montaigne e Goethe nós não transitamos para do passado para o futuro e sim do presente para o passado.

E já que estamos retornando ao passado, nunca é demais lembrar o caso do dramaturgo carioca Antonio José, que viveu no período compreendido entre a morte do filosófo francês e o nascimento do poeta alemão. Nascido em 08/05/1705, Antonio José foi queimado na fogueira em 19/10/1739. Francisco Adolfo de Varnhagen narra o episódio:

“Perseguido era também já por esse tempo o jocoso dramaturgo Antonio José, nascido no rio de janeiro em 08 de maio de 1705 e que depois veio a ser queimado na fogueira inquisitorial. O seu processo, cujo original tivemos em mãos e  folheamos muito de espaço, apesar de sua extensão, pode por si só qualificar a horribilidade do tribunal, que naturalmente queimando-o, se vingou da frase de uma de suas comédias: “Toda justiça acaba em tragédia.” – ou de alguma outra alusão ao santo tribunal, que o condenou por convicto, negativo e relapso, que tal era a linguagem obscura e cavilosa com que este tribunal fazia tremer indivíduos, que viviam a milhares de léguas.

Os processos da justiça eram no estilo das sentenças; tudo mistério: chamava-se o réu, e em vez de se lhe revelarem as culpas de que era acusado, intimava-se-lhe que se confessasse, que expusesse tudo quanto em desabono da religião tinha dito ou ouvido, ou praticado, v. gr., comendo carne em dia de jejum, ou tomando certa comida ao sábado, o que em fase inquisitorial se chama jejuar judaicamente, isto sem se lhe indicar lugar, nem prazo, nem sócios. A primeira resistência seguiam-se as algemas apertadas ao torniquete, depois os tratos de polé, de água fervente, etc… – Por fim o infeliz começava a delatar. Tudo quanto revelava era logo escrito; todos os cúmplices de que fazia menção eram imediatamente mandados buscar, e recolher aos cárceres. Mas o acusado, tendo comprometido muita gente, ainda não havia acertado com a falta com a falta porque fora preso. Voltava, pois, a ser perguntado: sua memória não o ajudava ou sua língua titubeava receosa de comprometer mais amigos… Era outra vez posto a tratos:… declarava que tinha mais revelações a fazer… Novos desenganos!… e novos comprometidos!…”

Assim às vezes, de uma povoação, mais de metade tinha de ser ao menos chamada a delatar. E ai do que entrava por aquelas horrendas portas! Todos daí em diante o evitavam, temerosos de adquirir nome suspeitoso!…” (História Geral do Brasil, Tomo Quarto, Francisco Adolfo de Varnhagen, Edições Melhoramentos, 1952, p. 22/23)

A semelhança entre as ações penais sacadas contra Lula e o processo descrito por Varnhagen são evidentes. Lula é obrigado a fornecer documentos que estão em poder do locador, mas o MPF se recusa a deixar a defesa ver documentos originais que fundamentam a acusação. Sempre que Lula contorna um aspecto da acusação a denúncia se transforma em algo diferente.

Ao proferir a sentença do Triplex o juiz da Lava Jato condenou Lula desprezando documentos públicos (certidões imobiliárias) e dando valor probatório a matérias de jornal. Acusado de um crime, o ex-presidente foi condenado por outro que nem mesmo se encontra descrito na legislação penal (quem quiser conhecer todos os detalhes da  horribilidade do tribunal da Lava Jato consulte o livro Comentários a uma sentença anunciada, Projeto Editorial Práxis, Bauru, São Paulo, 2017.

Num contexto em que a justiça é distribuída de acordo com a vontade política do juiz e não dentro dos limites racionais fixados para sua atuação pela legislação “Toda justiça acaba em tragédia.”  Mas a tragédia nesse caso não será apenas de Lula. Ele é apenas um símbolo.

Assim que Lula for destruído, tudo será possível e nenhuma resistência ao poder dos juízes será tolerada. Portanto, se enganam aqueles advogados, promotores, juízes, jornalistas e intelectuais que acreditam que a decapitação processual do ex-presidente petista vai salvar o Brasil. Muito pelo contrário, o mais provável é que muitas outras decapitações se tornem necessárias. Algumas delas ficarão a cargo dos juízes neoliberais, outras serão executadas extrajudicialmente por policiais. E em algum momento o poder ilimitado dos policiais nas ruas fará com que os juízes se sintam inseguros nos Fóruns.

Parafraseando Montaigne podemos dizer que não é a carência, mas o excesso de poder que acarreta o abuso. Portanto, Não deixeis escapar tão bela ocasião! de frear a Bruxa Merca-Tudo do neoliberalismo quer se domesticar totalmente nosso Sistema de Justiça até fazê-lo novamente funcionar como ele funcionava quando da condenação do dramaturgo Antonio José. 

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

Recent Posts

As invisíveis (3), por Walnice Nogueira Galvão

Menino escreve sobre menino e menina sobre menina? O mundo dos homens só pode ser…

25 minutos ago

A máscara caiu governador Romeu Zema, por Wemerson Oliveira

Como presidente do Sindpol/MG e defensor dos interesses da categoria policial civil, não poderia deixar…

39 minutos ago

RS: 136 mortos e 141 desaparecidos

Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia) alerta que, a partir deste fim de semana, haverá queda…

1 hora ago

O arcabouço fiscal e a natureza ambígua do Direito, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O Direito é um fim em si mesmo, um meio para um fim ou ele…

3 horas ago

A Reconstrução do Rio Grande do Sul, por Lurdes Furno da Silva & André Moreira Cunha

Não temos a pretensão de oferecer um pacote pronto, fechado e detalhado. Isso é impossível…

3 horas ago

Foto e infâmia de Maria, por Urariano Mota

Não estava na parede, porque ali não poderia figurar na hierarquia dos santos e do…

4 horas ago