Reforma do ensino médio: Que escola? Que formação?, por Derick Casagrande Santiago

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Reforma do ensino médio: Que escola? Que formação?

por Derick Casagrande Santiago

De amplo interesse da sociedade e de grande relevância por implicar no processo de escolarização dos jovens e, consequentemente, em suas futuras oportunidades e ocupações quando adultos, a reforma do ensino médio propõe mudanças sem que sejam consideradas questões estruturais para o aprimoramento deste nível escolar. O caráter problemático dessa proposta pode ser identificado tanto no seu teor como na sua forma de implantação, aspectos que remetem à escola e à formação que se pretende estruturar.

Imposta pela Medida Provisória nº 746/2016 e promulgada como lei (Lei nº 13.415/2017), a maior reforma do último ciclo do ensino básico desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 9.394/96) consiste fundamentalmente no aumento da carga horária e na reformulação e flexibilização do currículo escolar. Sua intencionalidade é promover o ensino em tempo integral e estabelecer uma organização curricular composta por disciplinas obrigatórias e disciplinas escolhidas pelos estudantes.

De oitocentas para mil e quatrocentas horas, a ampliação da carga horária mínima anual significa o estabelecimento de uma jornada escolar de tempo integral, visando o cumprimento da meta seis do Plano Nacional de Educação (PNE) que estipula que 50% das escolas e 25% das matrículas na educação básica de seus diferentes ciclos (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) estejam no ensino em tempo integral até 2024. A adequação a essa exigência deve ocorrer progressivamente de forma que, em até cinco anos da publicação da lei, os sistemas de ensino estaduais pratiquem, no mínimo, mil horas anuais.

Da carga horária total do ensino médio, definiu-se pela reforma que o cumprimento do conteúdo relativo à Base Nacional Comum Curricular (BCNN) não ultrapassará mil e oitocentas horas. Em outras palavras, isso significa que, no caso da carga horária anual de mil e quatrocentas horas, correspondendo a carga horária total de quatro mil e duzentas horas, a BNCC preencherá pouco mais de 40% (42,85%) do currículo; já no caso da carga horária anual de mil horas ou da carga horária total de três mil horas, sua presença será de 60%.

A conformação do ensino em tempo integral, no entanto, não se refere apenas à oferta da carga horária ampliada. Para que seu desempenho seja mais consistente e possa contribuir significativamente no processo de ensino e aprendizagem dos estudantes, é necessário pressupor um projeto pedagógico que contemple uma diversificação de atividades que não sejam semelhantes àquelas exercidas cotidianamente em sala de aula. Deve-se denotar sentido à ampliação da carga horária de forma que esse acréscimo de tempo de permanência na escola não seja maçante e não torne o ensino desinteressante para os estudantes.

Além disso, a viabilização do ensino em tempo integral depende do aumento de investimentos e de recursos financeiros disponíveis para a criação e manutenção de infraestrutura e também para a contratação, capacitação e remuneração de professores, caso contrário acarretará em defasagem e precarização. E este risco é real, uma vez que está vigente a emenda constitucional que limita o teto dos gastos públicos, aprovada em 2016.   

Quanto à questão curricular, é previsto que, de treze disciplinas obrigatórias – português, literatura, matemática, geografia, história, física, química, biologia, filosofia, sociologia, língua estrangeira, artes e educação física –, sua composição passe a ser estipulada pela BNCC e por itinerários formativos, sendo  parte das disciplinas obrigatória – do primeiro à metade do segundo ano – e parte escolhida pelos estudantes, conforme seus interesses e preferências – da metade do segundo ao terceiro ano. Dessa forma, há  diferentes possibilidades de arranjos curriculares, desde que sejam consideradas cinco áreas do conhecimento: linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional.          

Embora a BNCC para o ensino médio ainda não esteja definida, determinou-se que as disciplinas de língua portuguesa e de matemática serão obrigatórias nos três anos do ensino médio. Além delas, a lingua inglesa deve ser obrigatória e, de forma facultativa, pode ser ofertada outra lingua estrangeira, preferencialmente o espanhol.

Condicionada à conclusão da BNCC, a implantação dessa reorganização e flexibilização curricular cabe, assim como a ampliação progressiva da carga horária, a cada sistema estadual de ensino. Deve ser assegurada a parte obrigatória do currículo e não é exigida a oferta de todas as áreas que compõem o itinerário formativo. Assim, conforme critérios próprios e condições específicas, cada sistema poderá oferecer apenas uma das cinco áreas.         

Além de demandar investimentos, revela-se aqui que, ao contrário do que se divulga, consiste em uma precária diversificação curricular, a flexibilização proporcionará ao estudante restrita possibilidade de escolha. Os sistemas de ensino dispõe de estruturas, recursos e formas de manutenção diferentes que refletirão em condições e oportunidades desiguais aos estudantes. O discurso da flexibilização encobre, por meio da ideia de proporcionar maior autonomia ao estudante em relação à sua formação, a tendência ao agravamento das desigualdades escolares e, consequentemente, das desigualdades sociais.

A efetividade da reforma anunciada é bastante duvidosa. Além da imprecisão do conteúdo curricular, as limitações dos eixos que a fundamentam demonstram a insuficiência do modelo adotado. Embora seja proeminente, o aumento do investimento não é a única questão estrutural negligenciada pela proposta, a infraestrutura das escolas, o número de estudantes por turma e a valorização docente também parecem distantes de serem abordadas que contribuiriam para a melhoria do ensino médio.

Com a pretensão de inovar a escola e a formação por ela promovida, a ação do governo corrobora para a perpetuação de um sistema de ensino insufuciente e desigual. Agora a insuficiência e desigualdade se estabelecem sob outra forma, pela futura indicação de aprendizagem mínima comum de um conjunto de conhecimentos e pela suposta oportunidade de autonomia de escolha do estudante pela área de conhecimento que lhe for mais conveniente.  

Derick Casagrande Santiago – Docente da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e membro do grupo de pesquisa Poder Político, Educação, Lutas Sociais (GPEL/FE-USP), é mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e bacharel em Sociologia e Política pela FESPSP. 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. Acho ótimo o debate.

    Como professor sinto na pele como os alunos estão adentrando o ensino superior (escola particular, curso de engenharia). Uma maioria não tem conhecimentos de conteúdos de ensino fundamental. Como eu, muitos professores estão acreditando que as escolas estão servindo- quando isso – como espaço mais de socialização  que estudo e aprendizagem.

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