Opinião

As arenas onde as batalhas culturais e políticas estão sendo travadas, por Arnaldo Cardoso

As arenas onde as batalhas culturais e políticas estão sendo travadas

por Arnaldo Cardoso

Entre o “ser” e o “dever ser” da vida das sociedades nas democracias liberais contemporâneas são múltiplas as arenas onde são travadas disputas culturais e políticas movidas por atores individuais, coletivos e institucionais impulsionados por diferentes motivações.

Quando falamos de democracias liberais é importante lembrar que a democracia é um modo de governo e o “liberal” refere-se ao campo em que a democracia pode operar contando com instituições políticas e sociais.

Nos últimos anos, em diferentes países, as insuficientes respostas dadas pelas instituições políticas do Estado – destacadamente o Parlamento – às demandas sociais, diante de consequências de crises sistêmicas como a financeira global de 2008, a migratória europeia de 2015 e, nos últimos dois anos, a pandemia da Covid-19, está na base da queda do apoio popular às instituições políticas e à própria democracia liberal, trazendo-nos as incômodas lembranças das primeiras décadas do século passado, quando surgiram o fascismo italiano e o nazismo.

Nesses contextos de descrédito com as instituições liberais, forças culturalmente conservadoras se projetam como defensoras e restauradoras da moralidade tradicional, mirando o campo da cultura como a arena principal de disputas. Contra “ideologias dissolventes” insurgem-se populistas, nacionalistas e tradicionalistas, convocando “o povo” para as batalhas.

No Brasil já se integraram à paisagem os “arautos da ordem” denunciando diuturnamente os agentes do globalismo e do marxismo cultural. Até canais de televisão e jornais historicamente mantenedores do status quo passaram a ser vistos como perigosos agentes da revolução.

Do Parlamento ao palco do Teatro Ariston

Na Itália, país com o qual o Brasil tem antigos e vivos laços culturais, econômicos e políticos, guardadas as diferenças, a sociedade está imersa em um cotidiano configurado por fragmentação política, radicalismos, polarizações, manifestações de racismo, machismo, crescimento de feminicídios, discurso de ódio e anti-ciência, além de problemas como o desemprego entre jovens e as consequências danosas da desigualdade econômica e social.

Nas últimas semanas dois eventos foram emblemáticos das mencionadas batalhas culturais e políticas que são travadas em diferentes arenas.

Poucos dias antes da abertura da 72ª edição do Festival de Sanremo – o mais importante festival de música popular italiana, que se estende por cinco noites – os italianos acompanharam pela imprensa nacional o conturbado processo político no Parlamento para eleição do Presidente da República. Por cinco sessões consecutivas as lideranças políticas do país se mobilizaram em negociações, ensaios de acordos e alianças em torno de candidatos, mas sem que um deles obtivesse votos suficientes. A reeleição, inicialmente descartada, do Presidente Sergio Mattarella, terminou sendo a única solução encontrada.

Em jornais italianos como o La Repubblica e o La Stampa e o inglês Huffpost pôde-se encontrar irônicos paralelos entre as cinco sessões do Parlamento e as cinco noites do Festival de Sanremo.

Em editorial do milanês La Stampa lê-se “Em vinte anos, quando pensarmos neste 2022, dois momentos atuais e antitéticos voltarão à mente. Um Festival de Sanremo transformado em alegoria do renascimento por um rito televisivo consolador, libertador, quase revolucionário e uma república parlamentar convertida em monarquia constitucional por um sistema político enfraquecido, deslegitimado, quase petrificado”. (tradução livre)

Um jornalista italiano em artigo para o Huffpost invocou a ideia do intelectual francês Guy Debord, autor de A sociedade do espetáculo que sugere que “o espetáculo é a afirmação de toda vida humana como mera aparência”.

O Festival de Sanremo

A 72ª edição do Festival de Sanremo registrou a volta do público ao Teatro Ariston e seguidos recordes de audiência nas televisões – 6 de cada 10 estavam sintonizadas no festival – e plataformas de streaming em todo o país.

O público assistiu além das apresentações dos 25 competidores, um desfile de personalidades da cultura italiana que, por meio de apresentações, depoimentos e compartilhamentos de memórias e experiências, deram os contornos a batalhas culturais e políticas – igualdade de gênero, conflito racial, desafio ao patriarcado, inclusão, diversidade, fluidez sexual, liberdade de expressão, direito à sátira, blasfêmia – que estão sendo travadas no cotidiano dessa complexa sociedade que se vê permanentemente confrontada com seu longo e marcante passado, seu presente e desejos de futuro.

As mulheres dividindo a condução do espetáculo

Uma das inovações dessa edição foi a criação da figura de co-anfitriãs que, propiciou que a cada noite uma mulher dividisse o palco com o diretor artístico Amadeus na condução do espetáculo. 

A veterana atriz Ornella Muti ocupou o palco na primeira noite e, nas redes sociais o que mais repercutiu foi o fato dela defender a liberalização da cannabis para uso medicinal. Um post ao lado da filha, usando um colar com pingente em formato da folha da maconha, gerou muitas críticas inclusive de um deputado do partido neofascista Fratelli d’Italia, que é membro do conselho da RAI, a tv estatal italiana que transmite o festival.

Na segunda noite a co-anfitriã foi a jovem atriz Lorena Cesarini que produziu um dos momentos mais marcantes do Festival ao falar sobre racismo. Nascida em Dacar, a jovem é filha de mãe senegalesa e pai italiano e cresceu em Roma. Cesarini relatou que desde que foi anunciada como co-anfitriã de Sanremo, conheceu o ódio de muitas pessoas, e demostrou isso projetando numa grande tela frases racistas a respeito dela, postadas e curtidas nas redes sociais. Ao final, sob lágrimas, leu trechos do livro “O racismo explicado à minha filha”, do escritor marroquino Tahar Ben Jelloun.

A co-anfitriã da terceira noite não foi menos representativa de questões candentes na Itália. A travesti Drusilla Foer, que é escritora, roteirista e atriz ocupou o palco buscando aliar elegância e franqueza expondo-se através de frases como “Cada um se veste como quer, beija quem quer, sente o que quer, é muito simples”. Deixou como principal marca de sua estreia no palco do Ariston um depoimento sobre a importância da escuta, da gentileza e do respeito à singularidade de cada um. Nas noites seguintes as co-anfitriãs foram as atrizes Maria Chiara Giannetta e Sabrina Ferilli.

Os super-convidados e os recados aos hipócritas

Na primeira noite, entre os superconvidados, teve lugar de honra o grupo Maneskin ovacionado pela plateia que levou o vocalista Damiano às lágrimas. Também ocupou o palco o tenista Matteo Berrettini, sexto colocado no ranking mundial da ATP que disputou a última semifinal do Aberto da Austrália e é o único italiano a ter disputado a final de Wimbledon.

O jovem ator Filippo Scott – premiado no último Festival de Veneza como ator revelação por sua atuação em È stato la mano di Dio – foi outro convidado de uma nova geração de talentos italianos. Ao lado de seu amigo o cantor e compositor Marco Mengoni, vencedor da edição de 2013 do Festival, ouviu-o rememorar com a plateia como foi aquela vitória nove anos atrás. “Eu tinha apenas 24 anos […] Você cresce, tem experiências, e é bom voltar para ver como você se relaciona com o palco e o quanto se pode mudar e amadurecer”.

Além de cantar a música L’Essenziale  que lhe rendeu anos atrás um disco de platina, leu com Scott dois artigos da Constituição Italiana, artigo 3 e artigo 21. O primeiro é pela igualdade de dignidade para todos, o segundo é pela liberdade de expressão, em seguida exaltaram a importância do respeito ao outro em oposição ao ódio e intolerância tão abundantes nas redes sociais.

Concluíram suas falas lembrando que “Somos animais sociais que foram postos à prova [durante a pandemia] mas precisamos de contato e partilha. Entendemos que uma tela nem sempre pode nos ajudar, e que o teclado pode se converter numa arma”.

Outro momento marcante do Festival foi a homenagem às vítimas da máfia, dentre as quais os juízes Paolo Borsellino e Giovanni Falcone, feita pelo jornalista e escritor Roberto Saviano. Lembrando os 30 anos do atentado de Capaci em que Borsellino e Falcone foram assassinados, junto a outros. Saviano fez também uma homenagem à jovem Rita Átria de 17 anos, cujo pai e irmão haviam sido assassinados pela máfia e decidira colaborar com a operação que visava derrotar a organização criminosa.

Sob muitos aplausos, Saviano disse “A coragem é sempre uma escolha perante a necessidade de mudar as coisas, porque se pode vencer ou perder, mas não escolher é se tornar cúmplice”.

Na mesma noite o Presidente da República, Sérgio Mattarella, através de videochamada cumprimentou a realização de mais uma edição desse tradicional festival e foi aplaudido por todos do auditório Ariston.

Para não dizer que a Itália não estava toda representada, o público teve também uma exibição do politicamente incorreto através do animador Checco Zalone que contou uma piada em que a personagem principal era um travesti brasileiro. Nas redes sociais houve um mar de críticas, mas também a defesa por aqueles que consideraram divertida a piada.

A competição e os vitoriosos

Nas etapas de votações os 25 candidatos foram avaliados por um júri formado por profissionais da imprensa, depois por um grupo de mil pessoas selecionadas, e por fim através do televoto aberto a todos os cidadãos.

Ainda que revelando a influências de diferentes ritmos e estilos, 70% das músicas apresentadas pelos 25 concorrentes tiveram o amor como tema estruturante.

Na apuração final, Elisa com “O forse sei tu” e Gianni Morandi com “Apri tutte le porte” obtiveram os segundo e terceiro lugares, respectivamente. A dupla Mahmood e Blanco, com “Brividi”, foi a grande vencedora desta edição do festival.

Críticos apontaram a canção de Giovanni Truppi “Tuo padre, mia madre, Lucia” como a melhor em termos de texto, arranjo e originalidade, mas ela não obteve votação geral significativa.

Presença marcante nas últimas edições de Sanremo, o cantor performático Achille Lauro, dessa vez escolheu a Igreja Católica como alvo de sua crítica/ironia. Sem camisa e vestindo calça preta de látex, cantou Domenica acompanhado por um coral gospel e ao final se autobatizou despejando com uma concha água sobre sua cabeça.

A reação nas redes sociais foi imediata com variados insultos por sua “blasfêmia”. O bispo de Sanremo condenou publicamente a performance do artista e a liberalidade do festival. O diretor da Rai1 Stefano Coletta e o diretor artístico Amadeus defenderam Lauro.

O já conhecido barulho feito nessas ocasiões pelos conservadores (que são de diferentes tipos) costuma desaparecer em outras situações ainda mais “delicadas”. Exemplo disto foi nacionalmente exposto em agosto passado pelo escândalo protagonizado por Luca Morisi, guru e braço-direito do líder da Lega, o extremista de direita Matteo Salvini, trazendo à tona, mais uma vez, a hipocrisia desses radicais e seus discursos em defesa de valores tradicionais.

O encontro íntimo de Morisi em sua casa em Belfiore, província de Verona, regada a cocaína e estimuladores sexuais (la droga dello stupro), com dois garotos de programa romenos. Um verdadeiro banquete com os temas prediletos dos moralistas: drogas, prostituição, homossexualidade, imigração… O episódio evidenciou sobretudo a precariedade e ineficácia dos recursos retóricos e ideológicos com que esses pobres personagens buscam confinar a realidade e suas complexas demandas.

Nem vamos aqui lembrar dos escândalos de pedofilia e abusos sexuais de religiosos sob o manto da poderosa Igreja Católica Apostólica Romana. Nestes últimos dias vimos mais um pedido de perdão, desta vez, feito pelo Papa emérito Bento XVI, expoente conservador da igreja, por omissão em escândalo sexual envolvendo religiosos sob seu bispado na década de 1980.

Outra eloquente demonstração da inconsistência e estratégia escapista desses extremistas moralistas foi o reprovável uso do instrumento da “tagliola” (“armadilha”) em novembro passado no Senado italiano para interromper a tramitação do projeto de lei que criminaliza a homofobia e a transfobia equiparando-as ao racismo e à discriminação religiosa no Código Penal. O deputado Alessandro Zan, autor da proposta deu a seguinte declaração após a suspensão da votação “Foi traído um pacto político que buscava fazer o país dar um passo de civilidade”.

Mas, voltando ao festival, é quase consensual a avaliação de que a irreverência e provocações de Achille Lauro nos palcos já se tornaram previsíveis e assim, se esterilizaram. Sua rebeldia foi assimilada pelo sistema e ele se tornou “o malvado preferido”.

Já a dupla vencedora, Mahmood e Blanco, opera em outra sintonia, ainda que também navegando pelas tormentosas águas da liberdade de escolha e da sexualidade. Mahmood é bonito, sensual, carismático, filho da imigração, mescla tons da melodia árabe com o som do mediterrâneo e trilha o caminho que a música italiana vem apontando. Blanco é bastante jovem, desenvolto e, assim como seu parceiro, aberto aos jogos que põem em xeque as rígidas e, portanto, frágeis certezas. Ambos ousaram e logo na segunda estrofe de sua música está lançada a grande indagação a todos “La tua paura cos’è?”.

Brividi (Arrepios, em português), a canção vitoriosa, em apenas um dia alcançou o quinto lugar no Top 50 Mundial do Spotify e o recorde italiano de streaming em um único dia. No Youtube, o sensual clipe da música já tem, em um único link, mais de 18 milhões de visualizações.

Se no último ano o Maneskin – grupo vitorioso da edição anterior de Sanremo – se projetou como fenômeno internacional e, incomodando os conservadores, mudou a cara da música italiana, neste ano Mahmood e Blanco estão provocando ainda mais arrepios.

Além do esforço cidadão em eleições para levar ao Parlamento lideranças sensatas e corajosas que atuem para mitigar as fraquezas estruturais intrínsecas da democracia liberal e promover os meios para uma vida social o mais livre e justa possível, também cabe à sociedade manter a capacidade de reverberação e responsividade das várias arenas em que batalhas culturais e políticas são travadas, para que o futuro não repita os erros do passado.

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela PUC-SP.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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