Opinião

Tem sentido falar em luta de classes?, por Angelita Matos Souza

do Observatório de Geopolítica

Tem sentido falar em luta de classes?

por Angelita Matos Souza

Certa vez, no final do governo Lula ou já no de Dilma, uma cientista social usou a expressão luta de classes para caracterizar episódios de preconceito social relacionados à presença de trabalhadores em aeroportos. Com efeito, é comum o uso da expressão para descrever acontecimentos nos quais não há luta nenhuma. Neste textinho, a intenção é apontar conflitos reais que, do nosso ponto de vista, não deveriam ser denominados de luta de classes.

A título de ilustração, pensemos no desenvolvimento do capitalismo na Coreia do Sul, muitos estudiosos apontam para a importância da reforma agrária nesse processo. Decisiva por evitar a formação de um exército abundante de mão de obra para a indústria em expansão, favorecendo o poder de barganha do proletariado urbano organizado, ao encontro da construção de um capitalismo menos desigual. Trata-se de uma interpretação que valoriza os conflitos sociais e a sua contribuição para o desenvolvimento do capitalismo.

Entretanto, soa estranho denominar de luta de classes conflitos sociais que, em alguma medida, servem para “civilizar” o sistema. Quer dizer, em vez de derrubá-lo, limitam o seu evolver desregrado. Tendência, aliás, sublinhada por Marx, em “Salário, preço e lucro”, ao abordar a luta sindical engendrada pelo próprio capitalismo. Conforme o autor, essa apenas combateria efeitos do capitalismo.

O que é ainda mais verdadeiro no caso dos chamados novos movimentos sociais. Essencialmente, têm um caráter reformista-civilizatório, mesmo quando se autodenominam anticapitalistas. São lutas por democracia, justiça social, em defesa do meio ambiente, lutas feministas, antirracistas, passíveis de serem apreendidas como “de contenção”, pois operam para frear a tendência do processo de acumulação de destruir as suas condições de existência (o que é claro no caso dos movimentos ambientalistas).

São movimentos em geral merecedores de apoio, fundamentais, mas como qualificar de luta de classes se servem para proteger o capitalismo dele próprio? 

Seguindo essa linha de raciocínio, é claro que as disputas políticas dentro das classes também não devem ser rotuladas de luta de classes. As relações entre classes e/ou frações de classes dominantes costumam ser conflitivas, pois os agentes econômicos brigam para impor os seus interesses específicos às políticas estatais, a fim de se darem bem “no mercado”.

Não obstante, diante de qualquer movimentação social encarada como ameaçadora, tendem a se unir em uma espécie de “partido da ordem”. Por isso, é sempre mais conveniente não colaborar para com esse tipo de pressentimento, abusando do uso da expressão luta de classes.

Neste ponto, vale registrar que o dissenso no interior do bloco dominante pode abrir oportunidades para movimentos sociais contestatórios. No Brasil, no final dos anos 1970, o dissenso com relação à continuidade da ditadura militar favoreceu o movimento sindical que despontou no ABC paulista, com a ascensão política de um grande líder sindical, mais tarde presidente (agora pela terceira vez). O que nunca ameaçou o capitalismo no país, sequer contribuiu muito para reduzir a desigualdade social.

Seja como for, mesmo se frutíferos para movimentos sociais contestatórios, os conflitos no interior do bloco dominante não merecem, em hipótese alguma, a qualificação de luta de classes. Isso vale ainda mais para disputas/conflitos no seio das classes trabalhadoras (inúmeros e com muitos determinantes), pois decididamente beneficiam as classes dominantes.

Por fim, restam dois argumentos de encontro à banalização do uso da expressão. O primeiro diz respeito ao debate em torno de hierarquias relativas a movimentos sociais, entre os que consideram os conflitos trabalhistas mais importantes e os que consideram que, no século XXI, a esperança deve recair sobre os novos movimentos sociais. Como entendemos, enquanto não houver luta de classes, os dois campos de lutas devem ser considerados igualmente relevantes.

O segundo argumento diz respeito à necessidade de se fortalecer o campo progressista contra o avanço da direita/extrema direita no Brasil, que ambiciona proteger o sistema por meio da força bruta. O uso da expressão luta de classes pode afastar aqueles na mediania, simpáticos a pautas progressistas desde que os movimentos contestatórios não extrapolem certos limites. Dessa ótica, evitar a banalização do uso da expressão poderia ser mais produtivo do que o seu uso em vão.


Angelita Matos Souza – Cientista Social, mestre em Ciência Política; doutora em Economia, docente no IGCE-UNESP.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Observatorio de Geopolitica

O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.

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O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.

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  • Dra. Angelita Matos Souza,

    Quero parabenizá-la, não apenas pelo texto assertivo e fundamentadamente lúcido, como também pela coragem de nos apresentá-lo. Em tempos de discursos hegemônicos, inclusive e especialmente no âmbito dos "chamados novos movimentos sociais" (muitos deles sob a justificativa da "diversidade", desde que estejam sob uma mesma matiz...), mostrar esta firmeza de ideias tem sido algo raro. Parabéns!

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