Vencer o Jair não basta II – arsenal de fitna e heresia, por Márcio Venciguerra

Vencer o Jair não basta II – arsenal de fitna e heresia

por Márcio Venciguerra

Quase ninguém quer tornar a própria vida uma obra épica. A lírica tem muito mais prazeres e é quase inevitável. Esse é o ponto frágil do patriarcalismo radical que busca extinguir o namoro e, com isso, controlar as vidas humanas.

Justamente por isso, o machismo deve ser o principal tema no debate contra o autoritarismo e o fanatismo religioso de Jair Bolsonaro e seus pares. O ocaso de Aécio Neves na eleição passada, por exemplo, se deu em grande parte porque a sua imagem pública passou de jeitoso com as mulheres para a de machista beberrão e surrador. E olha que ele não era um nazicrente como o bloco histórico do Jair.

Só que não se trata apenas de eleição. Os nazistas fundamentalistas estão empenhados em levar a sociedade ocidental para sua utopia, como a retratada na série de TV a cabo O Conto da Aia. Na tela, apesar do risco de morte e mutilação, os personagens insistem em se apaixonar contra o desejo das autoridades.  Paradoxalmente, o maior alvo deles é também a nossa melhor arma.

A capacidade que o namoro tem de quebrar as confrarias masculinas é o principal motivo de os monoteístas ranhetas reprimirem as mulheres. Segundo os escritos islâmicos, elas têm fitna (charme revolucionário e luta interna no Islã, uma palavra com esses dois sentidos), uma característica que Maomé coloca como o principal risco à ordem estabelecida por Alá. Se os esquimós precisam de mil palavras para definir o gelo, os muçulmanos usam uma só para designar o charme das mulheres e rebelião sangrenta. Esse é um dos modos de convencer da importância de reprimir as mulheres, para eles.

Nada a favor dos gregos, mas I F Stone dedicou um capítulo do livro sobre o julgamento de Sócrates ao fato de os atenienses terem quatro palavras para designar liberdade de expressão. Para o jornalista, analisar as palavras usadas numa sociedade leva à uma compreensão de como ela funciona.  

A Igreja tem um conceito irmão, o da heresia (escolha, ou algo que contrarie um dogma da Santa Madre, mas também era um crime passível de pena de morte). Basicamente, algo que quebra a hierarquia entre o humano e o divino leva às cismas (rompimentos e revoltas contra os representantes de Deus na terra). Os muçulmanos chamam de fitna algumas guerras civis pelas quais passaram. Na tradição dos três povos da Bíblia, normalmente a culpa de tais desgraças é da Eva. “Sempre que um homem e uma mulher se encontram, o terceiro que se junta a eles é satã”, diz um velho ditado árabe.

Todos os tais “povos da Bíblia” usam esse argumento tirado do mito da expulsão do paraíso. Seja Edir Macedo em seu livro Plano de Poder; sejam os escolásticos, lá na Idade Média ou durante as reuniões da Opus Dei. Mas nenhum texto é mais claro do que uma frase de Fayad Ibn Nagehh: “se o órgão sexual do homem se levanta, um terço de sua religião está perdido”, avalia o muçulmano.

Aliás, até mesmo um dos mais importantes nazicrentes brasileiros viveu esse efeito a pele. O senador Magno Malta se divorciou para casar com a outra (a correligionária e cantora gospel Lauriete Almeida). Ambos tiveram de pagar um preço entre seus pares por causa do idílio e da hipocrisia. Afinal, eram duas pessoas casadas e militantes nazicrentes pulando a cerca.

Independentemente da orientação sexual, todos nós temos fitna e valorizar essa virtude humana é uma obrigação para deter os arroubos dos nazicrentes. Não só praticá-la, inclusive dentro do casamento, como distribuir todo o farto material de propaganda disponível: canções de amor, filmes, livros à mancheia. E esperar os resultados.

O poder da fitna – Seria chavão demais falar do fim dos Beatles ou contar uma anedota idílica do fracasso de casamento arranjado para aliar reinos. Assim, segue a história do arquiteto Edward Durell Stone, que mudou de gosto ao se apaixonar por Maria Elena Torchio sobre o Atlântico, numa noite de 1953. No ano seguinte à viagem de avião, já estavam casados.

Stone era um perfeito modernista, fiel a Le Corbusier e à linha político-estético-ideológica pregada pelos seus seguidores. Verdade dos materiais e o arrojo da linha reta. O visual clean era caprichado até nas roupas. Nenhum traço fora da cartilha, que lhe rendia contratos e aplausos. Como líder da seita, foi um dos autores de seu maior templo. Projetou o Museu de Arte Moderna de Nova York.

O modernismo tem lá seus méritos, mas a confraria profissional dos anos 1950, em termos de clube masculino, não perdia para qualquer sistema patriarcal. Exceto, é claro, pela necessidade de seus membros conquistarem o amor das mulheres, pois viviam numa sociedade mais aberta.

Após a espanhola virar sua cabeça, Stone colocou toda a sua posição social em risco para erguer prédios enfeitados, como a amada gostava. Os ex-amigos logo chamaram as novas obras do traidor de Taj-Marias. Por sinal, o primeiro grande Taj-Maria foi na India: a embaixada norte-americana em Nova Déli.  

Se Stone, por exemplo, precisasse apenas de sua posição conquistada, de emérito arquiteto norte-americano, para convencer o pai a lhe oferecer a mão da moça, seriam sumariamente esquecidos os gostos excêntricos de Maria por penduricalhos e revestimentos. Todos ficariam satisfeitos, porém, o mundo perderia um exemplo de arrojo estético materializado na Gallery of Modern Art de Huntington, Hartford. Um autêntico Taj-Maria. Obra da fitna

A médica feminista egípcia Nawal El Saadawi  acredita que a existência de jovens mal amados por conta da política de controle da fitna gera violência nos países árabes. Mas a ordem é mantida. Caso contrário,  poderiam surgir prédios fora de moda e outras heresias perigosas.

O namoro é um padrão presente em sociedades criativas, segundo o psicólogo especialista em criatividade, Dean Keith Simonton: “os períodos da cultura japonesa em que o machismo do culto ao guerreiro floresceu tendiam a ser os períodos em que a criatividade literária enfraquecia”. Afinal, ou se tem ordem ou se tem progresso.

Inovação é brincar O respeito prestado às mulheres no estrangeiro assustava Evliya Çelebi, que achou extraordinário que até o imperador austríaco agisse com cavalheirismo com as damas da corte. “Nas terras dos infiéis, as mulheres têm precedência”, escreveu o turco em 1665.

Quase um século depois, em 1748, outro diplomata e cronista, Mustafa Hatti Efêndi, registrou outro efeito da fitna na mesma corte. Homens e mulheres adultos brincando, vejam vocês. Os vienenses da época se divertiam com aparelhos de eletricidade estática, como os estudantes fazem hoje em museus de ciência. Era muito divertido dar pequenos choques nos outros e se encantar com a tal maquinha misteriosa.

Mas o embaixador achou que aquilo não iria dar camisa para ninguém e muito menos colocar comida na mesa. E se irritou com a importância dada pelos nobres austríacos a uma bobagem daquelas. “Como não deram nenhuma resposta inteligível às nossas perguntas, e como a coisa toda é meramente um brinquedo, não nos pareceu que valia a pena buscar mais informação sobre ela”, anotou o dignatário muçulmano, embotado para a espionagem tecnológica.

Afinal, Efêndi era um camarada macho, representante de um país que passou para a história como um dos impérios da pólvora. Ele iria agora ficar dando choquinho? Tinha mais o que fazer.

Mas a falta de gosto por um brinquedo levaria ao desaparecimento desta ainda peça inútil naquele momento. Iria embora junto a curiosidade fitnesca de como aquela porcaria funcionava. O embaixador otomano não foi o único a perguntar aos anfitrões qual era o segredo. Muita gente pensou sobre a questão, até encontrar a respostas para o entendimento do fenômeno da eletricidade. O brinquedo revolucionaria a indústria e a vida do século XX e é a única energia com potencial para desbancar o fogo, que hoje queima o petróleo acumulado sob os reinos islâmicos e sob os mares nacionais.

Pode parecer pouco científico, mas tome como uma brincadeira o seguinte: imagine a visita de Efêndi à corte chinesa da Dinastia T’ang, uns mil anos antes. Ele também chegaria a uma corte muito estranha, onde as mulheres se vestiam igual aos homens, mandavam e havia até uma estátua da imperatriz Wu Hou.

Nesta época, fora bem melhorada a especiaria sulforosa criada pelos alquimistas taoistas – durante o reinado do imperador Wu Di (156-87 a.C.), como parte de uma pesquisa para encontrar a fórmula da vida eterna. Se não trazia a vida eterna, ao menos ainda não era instrumento de morte. Efêndi a teria encontrado na forma de fogos de artifício, bombinhas e adereço para efeitos especiais em festas. A pólvora que moldaria o império Otomano era uma maquinha de choquinho. Outro brinquedo, que ficou mais de 200 anos sendo experimentado antes de ter um uso prático.

A seriedade que os nazicrentres querem nos impor é igualmente castradora da liberdade de brincar e criar. Coisa que só é possível quando homens e mulheres fazem fitna o tempo todo para atrair atenção. Jair e seus amigos pastores e soldados querem nos impor a seriedade. E, como diz o Jesus Cristo de Ariano Suassuna: “O inferno é um lugar sério. Aqui não”.

 

A terceira parte da série é para dar otimismo. Veja aqui.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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