Corrupção e privilégio, por Cláudio Gonçalves Couto

Jornal GGN – “A nós, cidadãos comuns, cabe não sermos seduzidos por uns ou outros, mas aproveitarmos democrática e republicanamente seus embates”, manifestou o cientista político Cláudio Gonçalves Couto, em coluna ao Valor.
Para Couto, o jogo da ambição contra a ambição visualizado em 2016 foi o que ganhou forma em aprovações, como a 10 Medidas contra a Corrupção, pela Câmara dos Deputados. Desde o processo que partiu dos procuradores da República, com a coleta de assinaturas, até a modificação exacerbada pelos deputados, o Estado de Direito não se fez presente.
Por uma feliz coincidência, minha coluna no Valor foi antecedida, nesta mesma semana, por importantes considerações de dois colegas cientistas políticos, que agora me serão muito úteis. Na quinta-feira, noutra coluna, Marcus André Melo recordou a percepção dos Federalistas americanos, pela pena de James Madison e Alexander Hamilton, de que o Judiciário seria o menos perigoso dos Poderes estatais, já que apenas agiria por meio dos demais ramos de governo. E anteontem, em entrevista, Rogério Arantes alertou para os riscos de um “governo dos juízes”, forma peculiar de um “governo dos homens” sobreposto ao “governo das leis” e, por isto mesmo, aos limites de uma ordem livre.
Pois vale aproveitar e relembrar outro ensinamento dos Federalistas, atribuído tanto a Madison como a Hamilton, relativo aos freios e contrapesos (“checks and balances”) do funcionamento dos Três Poderes. Diziam os “founding fathers” americanos que a melhor forma de assegurar que os ramos do Estado se contenham é opondo uns aos outros, aproveitando-se não das propensões virtuosas de seus membros, mas de suas ambições: “deve-se fazer com que a ambição se contraponha à ambição”. Afinal, homens não são anjos (e, poder-se-ia acrescentar, homens poderosos são menos angelicais ainda), de modo que ao mesmo tempo que esse é o motivo pelo qual precisamos de um governo,, é mais ainda a razão pela qual precisamos limitar nossos governantes – sejam eles do Executivo, do Legislativo, do Judiciário ou do Ministério Público. A nós, cidadãos comuns, cabe não sermos seduzidos por uns ou outros, mas aproveitarmos democrática e republicanamente seus embates.
Pois é exatamente esse jogo da ambição contra a ambição que temos presenciado. Veja-se a disputa entre todos esses atores que ganhou forma na tramitação das afamadas (ou talvez famigeradas) dez medidas contra a corrupção. Elas chegaram ao Congresso escudadas numa portentosa campanha de coleta de assinaturas populares por membros do Ministério Público, contemplando regras que certamente não eram de fácil compreensão (ou sequer conhecimento) para a maior parte dos signatários. Apreciadas pela Câmara, foram substancialmente atenuadas (com a retirada, inclusive, de disposições muito questionáveis num Estado democrático de direito) e ganharam o acréscimo de dispositivos voltados não só a inibir os inegáveis excessos, como também as prerrogativas funcionais inerentes à magistratura e aos promotores.
O afã de deputados e, depois, senadores em aprovar esse pacote repercutiu mal, obrigando-os a recuar. Note-se, entretanto, que nem tudo o que constava do projeto de lei original era razoável: havia muito ali de autorreforço institucional de juízes e promotores, mesmo que ao arrepio do devido processo legal e dos direitos individuais. Por outro lado, nas motivações de deputados e senadores não havia apenas a legítima preocupação com evitar tais excessos, mas também a intenção de limitar os atores do sistema de justiça inclusive no que é necessário ao combate à corrupção e à defesa da legalidade. Uns e outros não são anjos e, como esperado, suas ambições se digladiaram.
O embate também se travou na outra Casa do Congresso, tanto com o projeto do senador Renan Calheiros, de limitação aos abusos de autoridade, como em sua iniciativa de por freio aos supersalários do funcionalismo, fenômeno em que o Judiciário se destaca. Notável foi a reação a estas medidas pelas sempre diligentes associações de classe dos juízes, bem como alguns membros da hierarquia judiciária: a tentativa de limitar os estupendos estipêndios inviabilizaria a luta dos atores do sistema de justiça contra a corrupção. O fabuloso deste argumento é que ele aponta não haver como se combater a corrupção. O fabuloso deste argumento é que ele aponta não haver como se combater a corrupção dos políticos senão garantindo-se os privilégios dos juízes.
Se aceitarmos tal raciocínio nos restará pouca esperança de que possamos viver numa república democrática, já que a eliminação da corrupção (república) requereria a aniquilação da igualdade (democracia) mediante o sustento, por toda a sociedade, de um estamento privilegiado no âmbito das instituições judiciais – ou seja, de uma aristocracia togada. Por um lado, tais privilégios se traduzem nas benesses nababescas usufruídas por juízes, como no caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (um Estado falido), em que apenas 1 entre 861 juízes recebe dentro do teto constitucional – dentre eles a filha do ministro do STF, Luiz Fux, que desde 2012, mediante um pedido de vistas, suspendeu o julgamento de uma ação da Procuradoria-Geral da República que inibiria tais sinecuras. Melhor seria se devolvesse o processo e se declarasse impedido.
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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  • Corrupção e privilégios são mutuamente excludentes?

    Quer dizer que o combate à corrupção pelo MP e pelo Judiciário só vigorará até o dia em que os supersalários e os superpoderes dos promotores e magistrados não forem contrariados?

    Ora, privilégio é corrupção.

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