O atentado ao “Charlie Hebdo” foi um filme mal produzido?

Como em todos eventos agudos que envolvem a interminável “guerra contra o terrorismo”, muitos analistas apontam inconsistências, ambiguidades e lacunas na cobertura midiática ao atentado contra o jornal Charlie Hebdo em Paris.  São tantas que parece que estamos diante de um roteiro de um filme mal produzido: uma ação militar profissionalmente cirúrgica feita por jovens que esquecem um cartão de identidade no carro da fuga. Coincidências e conveniências para muitos lados (e até para a grande mídia brasileira) envolvem a chacina dos jornalistas e cartunistas franceses, gerando uma espiral de especulações e conspirações. Será que alcançamos o estágio mais avançado do terrorismo, o “meta-terrorismo”? O relato midiaticamente ambíguo de um atentado pode se tornar tão letal quanto o próprio atentado.

Como diria a personagem Church Lady (feita pelo comediante Dana Carvey no programa Saturday Night Live, sempre preocupada com as conspirações satânicas por trás das coincidências): “How Con-VEEN-ient!” (“Tão conVEEEniente!”).

Numa primeira análise, o ataque terrorista (alguns afirmam que foi na verdade uma ação militar pela precisão) ao jornal satírico francês Charlie Hebdo em Paris, que vitimou 12 pessoas entre eles cartunistas, editores e colunistas do veículo francês, tem se revelado bem conveniente para três personagens do atual cenário internacional e, de quebra, para o senso de oportunismo da grande mídia brasileira:

(a) Para o politicamente desgastado presidente da França François Hollande – 85% dos franceses declaram que Hollande não deveria se candidatar à reeleição e 50% o acusam de não cumprir promessas da campanha, segundo o Instituto Francês de Opinião Pública. Com a economia estagnada e falando para a mídia em “pacto de responsabilidade” onde cada um teria sua cota de sacrifício (aumento de taxação e redução dos custos dos trabalhos), Hollande  acenava com “união” para uma “França forte”. Medo e infelicidade são importantes ingredientes para a unificação diante de um suposto inimigo externo. O 11 de setembro nos EUA provou isso.

(b) Para o fascismo europeu – com dezenas de milhares indo às ruas das capitais europeias desde o ano passado no movimento chamado Pegida (sigla em alemão para Europeus Patriotas Contra a Islamização do Ocidente), isso sem falar no crescimento eleitoral da extrema-direita de Marine Le-Pen na França, o atentado dá forças à xenofobia alimentada pela crise econômica continental. O atentado cairia midiaticamente como uma luva pois representaria um ataque àquilo que supostamente distinguiria o Ocidente do “obscurantismo” islâmico: a liberdade de expressão.

(c)  Para os EUA – Enquanto em Paris os supostos terroristas faziam uma chacina na redação do Charlie Hebdo, um carro bomba explodia em frente à Academia de Polícia no centro de Saná, capital do Iêmen, resultando em 37 mortos. Informou-se que o braço jihadista da Al-Qaeda do Iêmen reivindicou a autoria. Quase ao mesmo tempo em Paris, os terroristas encapuçados gritavam na rua para todos que pudessem ouvir: “Digam para a imprensa que somos da rede Al-Qaeda do Iêmen”.

Por que agora o Iêmen? O que agora o mundo (ou os EUA) querem com esse país pobre fronteiriço da Arábia Saudita? Leia esse trecho do documento “A Agenda Secreta do Iêmen: por trás dos cenários da Al-Qaeda, o gargalo estratégico do petróleo” de 2010 do Centre of Research on Globalization (CRG): 

“A importância estratégica da região entre o Iêmen e a Somália torna o ponto de interesse geopolítico. Lá está o estreito de  Bab el-Mandeb, um dos sete pontos que os EUA consideram gargalos para o transporte de petróleo – um gargalo entre o cabo da África e Oriente Médio, e uma ligação estratégica entre o Mar do Mediterrâneo e o Oceano Índico”.

O impactante atentado de uma suposta ramificação da Al-Qaeda no Iêmen seria um pretexto perfeito para a militarização da águas em torno de Bab el-Mandeb pelos EUA ou OTAN. Os EUA buscam o controle desses gargalos críticos no mundo. Essa região seria estratégica em um futuro próximo pela possibilidade de controle do petróleo para a China, União Europeia ou qualquer região que se oponha à política norte-americana.

(d)  Para a grande mídia brasileira – diante do fantasma da regulamentação midiática através da possibilidade da implementação Lei dos Meios, oportunisticamente colunistas brasileiros dão o ponta pé inicial na transformação do atentado em combustível para sua agenda. Diogo Mainardi e Felipe Moura Brasil, por exemplo, tentam associar a tragédia de Paris a uma onda ofensiva contra a liberdade de imprensa do qual faria parte “os ataques petistas”.

E ainda, a inacreditável “jornalista” Rachel Sherazade, em comentário na Rádio Jovem Pan, comparou a revista Veja ao Charlie Hebdo. Para ela, o veículo estaria autalmente sendo vítima não do radicalismo islâmico, mas do “radicalismo de esquerda”.

Um filme mal produzido?

Daniel Boorstin: a simulação 

domina a vida pública

O historiador norte-americano Daniel Boorstin, talvez o primeiro pesquisador a compreender o papel da simulação como elemento dominante da cultura, chamou a atenção da “era do artifício” atual onde a vida pública estaria sendo dominada pelos “pseudo-eventos”: fatos deliberadamente planejados e roteirizados para serem “noticiáveis”, ganhando a atenção da opinião pública – e isso Boorstin escreveu em 1963 no seu livro The Image – a guide of pseudo-events in America.

Para Boorstin, um dos critérios para podermos diferenciar um pseudo-evento de um “evento produzido por Deus” é a sua “ambiguidade” em relação à realidade subjacente. Enquanto diante de um evento real (terremotos, enchentes, desastres aéreos) o interesse está em saber o que aconteceu e as consequências, no pseudo-evento há uma ambiguidade presente através de inconsistências, detalhes inverossímeis e conveniências ou coincidências que tornam o evento noticiável. O pseudo-evento obedece o timing dos ritmo midiático da transmissão das notícias.

Somado ao timing e conveniência a múltiplos interesses que o atentado veio aparentemente de forma involuntária atender, acrescenta-se uma narrativa com diversas ambiguidades. Um roteirista de cinema experiente condenaria a produção como um filme mal produzido. Vamos analisar sete das inúmeras ambiguidades que analistas e teóricos da conspiração estão discutindo:

(a) Apesar da proximidade do Centro de Paris, as ruas próximas ao atentado estavam vazias. O  atentado ocorreu  no primeiro dia dos “Soldes” (temporada de liquidação de inverno dos saldos do Natal que ocorre de 7 de janeiro a 17 de fevereiro), caracterizado pelo frenesi de turistas, grande movimentação de carros. O Citroën dos terroristas estava parado no meio da rua. Particularmente nesses dias de “Soldes” você não consegue ficar parado sem, em questão de segundos, formar-se uma fila de carros;

(b) A suposta execução de um policial numa calçada de concreto foi um ato arriscado para o terrorista: ninguém atira numa superfície de concreto, a não ser que queira ser morto por um ricochete;

(c) Problemas com o “figurino” dos policiais: intrigante é que os policiais anti-terroristas não estavam com capacetes e máscaras. Aparecem no vídeo com boné e roupa casual;

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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  • Numa ação meticulosamente

    Numa ação meticulosamente planejada, como um terrorista esquece sua identidade num carro?

              É óbvio, evidente demais, que foi de propósito.

                 Com qual intenção?

                   Declarou depois: '''Quero morrer como mártir'-- e mártir precisa de nome.

                      E morreu mesmo,

  • É tão absurda a versão da

    É tão absurda a versão da mídia e o que nos espanta  é que não há ninguém para rebater essa tragédia que se tornou a subinteligência dos informativos em geral. E quando há, há imediato corte da fala daquele que ainda pensa e discorda da versão primitiva e tão fraca do acontecimento. Foi uma execução tão banal e terrível quanto os inúmeros crimes encomendados que nos cercam em qualquer lugar do mundo. Para que haja justiça e as mortes não tenham sido em vão, apostamos que essa farsa (mais uma) seja desfeita tão friamente quanto esse ato calculado. Estamos todos no mesmo barco, a burrice e ganância dos centros do poder econômico e a tentativa de mais um avanço geopolítico está virando um pesadelo pior do que a ameaça de uma 3a. Guerra Mundial. Para a humanidade inteira.

  • sincronismo para viver

    O Wilson segue sua cruzada incansável em busca de sincronismos que expliquem nossa vida caótica. È claro que Aécio Neves e Diogo Mainardi vão colocar a culpa no PT, Obama na Al- qaeda, Le pen no imigrantes islâmicos, para os judeus a culpa é dos palestinos ,e por aí vai. Nada de novo sob o sol. O fato mesquinho, desumano e apequenador é que estes dois ou três desmiolados deram sangue novo para este circulo vicioso que não nos leva a lugar algum.    

  • Esses não ficariam vivos de

    Esses não ficariam vivos de modo nenhum. Vivos falam ! As vezes nem o corpo se mostra, como o Osama Bin Laden.

  • Queima de Arquivo

    E, para completar esse enredo mal escrito, fizeram a "queima de arquivo".

    Eu -- sinceramente -- não quero acreditar nessa teoria conspiratória, mas as mensagens de ódio que estou lendo me lembram os textos de incitação à guerra que li nos livros escolares.

    Nos capítulos de História sobre a Segunda Guerra Mundial. A mesma verborragia, a mesma lógica doentia e implacável, tudo de novo!

    Eterno retorno, escrito por Nietzsche:

    "E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"

    • Tempos estranhos

      Compartilho algumas das suas inquietações, já tenho pensado nisso há tempos. Morei na Europa, quando estudei por lá há quase trinta anos, conheci um pouco a xenofobia, mas lembro que nada era tão grave e violento assim. O agravamento é em parte causado pelos extremismos insuflados pelos Tea parties da vida, pelos jihadistas de todos os lados, e todos os tipos de escalada que vemos são inquietantes mesmo, se analisamos em perspectiva. Muitas semelhanças com a década de trinta e suas loucuras.

  • Ideologia em vídeo

    No pensamento de Guilherme de Occam, a explicação mais simples para o fenômeno era, via das dúvidas, a melhor.

    Fanatismo religioso + manipulação ideológica + incapacidade de se vigiar tudo todo o tempo = terrorismo

  • 11 de setembro francês?

    Algo cheira mal nessa narrativa: http://resistir.info/franca/c_hebdo_thierry_07jan15.html

  • Ofensivo

    Acho particularmente que dar título de "um filme mal produzido" ao texto é uma ofensa as vítimas e suas famílias

     

  • Aliança entre neofascistas e 'jihadistas'?

    O jihadismo do Estado IslÂmico e da Al-queda tem suas raízes no nazismo e não na religião mulçumana. Nos impérios mulçumanos da Idade Média todas as religiões conviviam pacificamente, sem perseguições e fanatismos. Os judeus estavem em melhor condiççao no califado mulçumano do que na Europa medieval. O Jihadismo foi uma ideologia de combate criada na década de 1930 por Hassan al-Banna (fundador da irmandade mulçumana) e Amin al-Husseine o grande Mufti (lider religioso de Jerusalem). Ambos colaboraram com o nazismo e tiveram apoio de Hitler. Recrutaram adeptos para a Wafen-SS nazistas na bosnia mulçumana, mesclaram a ideologia da Jihad com a do Nazismo(O livro de hitler foi trazido pela irmandade mulçumana com a palavra jihad no título).

    Há videos dos adpetos  do Estado Islâmico pretando lealdade ao califa fazendo a saudação nazista. O nazi norueguês responsável pelos atentados em 2011, pregou em carta na prisão uma aliança entre nazis e jihadistas (Jihad Watch, 1 de dezembro de 2014). Na segunda feira, dois dias antes do atentado em Paris, 18.000 marcharam com o PEGIDA em uma manifestação anti-imigrantes em Dresden na Alemanha. Hoje o único país grande economica e politicamente em que a extrema direita tem chances reais de chegar ao poder é a França com a frente nacional de Marine Le Pain.

    Seria tudo isso uma coincidência, dados os antencentes históricos? Não teria sido essa operação planejada por um acordo entre os dois grupos? é uma hipótese no mínimo plausível.

    Ah, e o que o Brasil tem a ver com isso? esqueçam a obsessão com o tal do PIG. Lembrem-se do ex-comandante do BOPE, ex-comadante do Batalhão de choque da PM-rj e ex-membro da segurança pessoal do secretário de segurança do RJ que foi pego em um forúm com outros oficiais da PM RJ fazendo apologia ao nazismo.

    • Amin Al - Husayni

       Ou, o Grande- Mufti de Jerusalem ( na hierarquia teocratica muçulmana, sunita, somente inferior ao "Guardião dos locais sagrados - Meca e Medina - titulo atual do Rei saudita ).

        Mas acho mais "bonito" o titulo dado em alemão, por Himmler e Ribbentrop, de: Der Grossemufti Von Jerusalem".

        Após fugir de Jerusalem (1941)estabeleceu-se com escritório, frequencia de radio aberta em arabe, nas instalações do RSHA em Berlim, onde tambem instruiu e supervisionou traduções coranicas falsas, interpretações de haddiths, para justificar o nazismo, e Adolph Hitler, como uma parte da "jihad".

         Amin-Al-Husayni, com grande interesse nos Balcãs, auxiliou a H. Himmler, na montagem, recrutamento, instrução religiosa - salafista, visando a "limpar" de judeus, católicos romanos, ortodoxos e comunistas, as regiões hj. compreendidas, entre a Albania e a Croácia, sendo "patrono" religioso e "Gruppenführer", das sanguinárias 13a e 21a Waffen-SS GerbitsjagërDivisionen.

         Amin-Al-Husayni, um criminoso de guerra, genocida, candidato a forca pelos russos e iugoslavos, nazista e islamico, foi salvo, nunca processado, pelos ingleses - ficou preso no Cairo por poucos meses - e pór condicionantes politico estratégicas, até religiosas, foi reconduzido, pelos ingleses, a seu posto de origem, em Jerusalem.

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