Uma conversa com Che Guevara

Enviado por Jota A. Botelho


Créditos da foto: Alberto Korda

da Carta Maior

Em Cuba, o jornalista Roberto Savio conversa com Che Guevara sobre o surgimento de uma guerrilha na Venezuela, no ano de 1963, seguindo o modelo cubano, em que ele chegou à conclusão que a iniciativa seria um fracasso. 

MEU ENCONTRO COM O CHE

Conversamos até as quatro da manhã. A cada explicação que lhe dava, ele se mostrava pouco convencido e me pedia mais detalhes sobre a guerrilha venezuelana.

Por Roberto Savio*

Créditos da foto: Alberto Korda – Wikipedia

Em 1963, fiz uma viagem à Venezuela. Naquele ano, eu era um jovem repórter que trabalhava para a revista italiana Rinascita (o semanário do PC italiano). Numa entrevista com o Presidente Betancourt, ele me falou sobre o quão preocupado estava, como social-democrata, com o surgimento de uma guerrilha na Venezuela. Dali eu passei a buscar o líder dessa guerrilha, se chamava Luben Petkoff, mas não consegui localizá-lo. Contudo, encontrei alguns de seus simpatizantes e da conversa com eles surgiu uma reportagem sobre os camponeses que Petkoff queria alistar, seguindo o modelo cubano. Cheguei à conclusão que a realidade era profundamente diferente do que Petkoff pensava, e que aquela iniciativa não daria em nada.
Da Venezuela, eu viajei a Cuba, onde conversei com várias pessoas, a quem comentei a opinião de que a Revolução Cubana não daria certo naquele país, o que desagradou a vários dos meus interlocutores.

Estava alojado no hotel Nacional, e numa noite, enquanto dormia, uns golpes insistentes contra a porta me despertaram. Eram duas da madrugada. Um militar de uniforme verde-oliva, me disse que o comandante Guevara queria me ver. Me vesti, e o mesmo militar me levou ao Ministério da Indústria, pasta que era administrada pelo Che. O edifício estava totalmente às trevas, a exceção do último andar. O soldado que me acompanhou desde o hotel disse a outro, que montava guarda na porta do prédio, que o Che me esperava, e ele nos deixou passar. Subimos até o último andar, onde um terceiro soldado me conduziu até o escritório do ministro Che, abriu a porta, me anunciou e me convidou a entrar. Era um quarto revestido de madeira tropical, com uma grande mesa com grandes pilhas de papéis. O Che estava sentado do outro lado da mesa.


Fotomantagem deste Blog 

Ele se levantou e, sem rodeios, me disse: “Por que a guerrilha na Venezuela vai fracassar?” Logo, percebeu que eu estava surpreendido com aquele tema, e foi por outro lado: “Pensando bem, creio que é uma boa hora para um café”.

Abriu a porta e pediu ao soldado que trouxesse dois cafés.

O soldado voltou rapidamente, com as duas xícaras numa bandeja, e caminhava até onde estava o Che, quando este lhe indicou: “Rapaz, os hóspedes primeiro”. O soldado se aproximou de mim pelo lado esquerdo e girou a bandeja em minha direção. Ao fazê-lo, a metralhadora que carregava pendurada nas costas se balançou e deu com o cano no lado esquerdo da minha testa. Um reflexo instintivo me fez dar um salto e golpear a bandeja. Estupefato e horrorizado, vi como as duas taças de café voaram, quicaram sobre a mesa e mancharam muitos dos papéis que ali estavam. Se eu tentasse fazer um estrago desses de propósito, talvez teria sido menos eficiente.

Fiquei paralisado, e o Che disse: “Finalmente chega uma pessoa que, num só golpe, se desfaz de todos esses papéis”. E foi assim que comecei a me afeiçoar por ele.

Conversamos até as quatro da manhã. A cada explicação que eu lhe dava, ele se mostrava pouco convencido e me pedia mais detalhes. Não aceitou nenhum dos meus argumentos e me deixou a impressão de uma pessoa com uma extraordinária qualidade humana, porém muito obcecada.

No final do encontro, Che me deu um livro seu de presente, “A Guerra das Guerrilhas”, com uma dedicatória que dizia: “A Roberto Savio, como recordação de uma extensa noite de verão, sem pretensão de doutrinamento. Che”.

Passaram muitos anos. Em 1973, realizei um longo documentário de três episódios, de uma hora de duração cada um, sobre o Che e sua morte. Trabalhava então como chefe dos correspondentes da RAI (rede de televisão italiana), na América Latina. A RAI destruiu o meu trabalho. Transmitiu somente dois episódios de 50 minutos, totalmente diferentes dos que eu havia concebido, mas usando o meu material e o meu nome. Quando reclamei do fato, me despediram. Meu documentário estava todo ele feito de entrevistas irrepetíveis, mais de cem, desde a única oferecida pelo Secretário do Partido Comunista da Bolívia, Mario Monje, à do sargento Mario Terán, que matou o Che em La Higuera, passando pela de Sheldon, o militar americano que treinou os soldados que combateram a guerrilha, a de Holleeder, chefe dos serviços de inteligência americana que operavam na Bolívia, e a de Salvador Allende. Desde então, nunca mais realizei trabalhos sobre o Che.

Em 1964, eu havia criado a IPS. Ser despedido da RAI me deu a chance de ocupar todo o meu tempo à Agência. Passaram-se os anos e, um dia, minha secretária anunciou a visita de um deputado venezuelano, cujo nome eu lamentavelmente não me lembro. Enquanto eu perguntava a ela qual era o motivo da visita, o deputado abriu a porta, invadiu meu escritório e disse: “Ei rapaz, que manhã difícil você nos fez passar com o Che”, como se falasse de algo que acabou de acontecer…

Foi assim que eu soube que, logo depois de me despedir do Che, após meu encontro em seu escritório no Ministério da Indústria, pouco depois das quatro da manhã, ele foi até a casa onde estava alojada uma delegação da guerrilha venezuelana. Os despertou e disse: “Um italiano veio até mim e listou uma série de razões pela qual a guerrilha de vocês vai ser um fracasso”. E foi enumerando todas as minhas razões, enquanto pedia explicações a eles por cada uma. O deputado me disse: “Foi uma manhã duríssima, porque ele estava bem informado e com argumentos reais”.

Descobri, assim, que o Che Guevara, longe de estar obcecado, como eu havia pensado durante tantos anos, havia registrado todos os meus argumentos e os havia usado para dar um sermão aos guerrilheiros venezuelanos. Não me cabe nenhuma dúvida de que ele acreditava na guerrilha. E que escutava, muito mais do que deixava transparecer. (25 de abril de 2015)

Jornalista ítalo-argentino. Co-fundador e ex-diretor general da Inter Press Service (IPS). Nos últimos anos, também fundou Other News, um serviço que proporciona “informação que os mercados eliminam”.
Other News
Em espanhol: http://www.other-news.info/noticias/ 
Em inglês: http://www.other-net.info/

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O DOCUMENTÁRIO DE ROBERTO SAVIO

Abaixo o extraordinário documentário de Roberto Savio, realizado em 1973, sobre Che Guevara, que foi picotado pela RAI, exibido com cortes na televisão italiana, totalmente diferentes de como foram concebidos. Pouco depois do assassinato de Che na Bolívia, Savio vai atrás da história do guerrilheiro. Entrevista deus e o diabo, percorrendo o mundo. Desde Mario Monje, presidente do Partido Comunista Boliviano, que não apoiou a guerrilha, o sargento Mario Terán, que executou Che Guevara, passando pelos agentes americanos infiltrados na Bolívia, até o presidente Salvador Allende e camponeses anônimos, que viram Guevara passar sem saber direito quem era. A televisão italiana, que não gostou do material, o editou em dois programas de 50 minutos, à revelia de Savio. Ele então pediu que tirassem o seu nome do filme, pois não reconhecia o seu trabalho após os cortes, razão pela qual o demitiram. A cópia do autor, que relata a verdadeira história, através de suas entrevistas, é aqui apresentada em seus três episódios originais: Nascimento de um Guerrilheiro/Nascita di un Guerrigliero, As Causas do Fracasso/Le cause del Fallimento e Morte de um Guerrilheiro/Morte di un Guerrigliero.


Che Guevara com Fidel Castro no México e na Sierra Maestra

1- CHE GUEVARA – NASCIMENTO DE UM GUERRILHEIRO 

https://www.youtube.com/watch?v=A__V4I3I-8Q align:center]


Che Guevara nos Andes Boliviano e a prisão de Régis Debray

2- CHE GUEVARA – AS CAUSAS DO FRACASSO

https://www.youtube.com/watch?v=uuSKHPPqjW8 align:center


A prisão e morte de Che Guevara

3- CHE GUEVARA – MORTE DE UM GUERRILHEIRO

[video:https://www.youtube.com/watch?v=o2QSv5lHoVc align:center
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Jota Botelho

6 Comentários

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    1. Procure conhecer Tchê que

      Procure conhecer Tchê que você vai ver que esses dois personagens históricos não tem nada a ver entre si. Se gostar de ler sugiro que comece lendo o conto do Córtazar. Assista documentários sobre Tchê. Especialmente ouça o depoimento da professora da escola em que Tchê foi assassinado.

  1. No livro Todos os Fogos – O

    No livro Todos os Fogos – O Fogo, de Julio Cortázar tem um conto magnifico sobre Tchê. Com uma delicadeza de alma extrema, Cortazar relata a chegada de Tche a Cuba e a luta da guerrilha. O conto chama-se Reunião e o que tem de extraordinário é a visão de Córtazar como Tche se relacionava com a luta a partir de sua sensibilidade pessoal onde se cruzam a violência da guerrilha com sua sensibilidade pessoal.

    Este trecho do conto, particularmente, é magnífico no contraponto que faz entre a alma do guerrilheiro, a floresta, a luta e sua sensibilidade musical. Só um grande escritor, e uma grande alma pode relatar assim um grande homem.

    “Penso em meu filho que está longe, a milhares de quilômetros, num país onde ainda se dorme na cama, e sua imagem me parece irreal, afina-se e perde-se entre as folhas da árvore, e, em compensação, me faz tanto bem lembrar o tema de Mozart, que sempre me acompanhou, o movimento inicial do quarteto A Caça, a evocação do halali na voz mansa dos violinos, essa transposição de uma cerimonia selvagem para um claro gozo pensativo. Penso-o, repito-o, cantarolo na memória e sinto, ao mesmo tempo, como a melodia e o desenho da copa da árvore contra o céu vão se aproximando, travam amizade, unem-se uma e outra vez até que o desenho se arrume, de repente, na presença visivel da melodia, um ritmo que saiu de um galho baixo, quase à altura de minha cabeça, torna a subir até certa altura e se abre como um leque de galhos, enquando o segundo violino é esse galho mais fraco que se justapõe para confundir suas folhas num ponto situado à direita, perto do final da frase, e deixá-la acabar para que o olho desça pelo tronco e possa, se quiser, repetir a melodia.” 

     

     

     

     

    1. É verdade

      É um conto extraordinário. Penso que a partir desse livro houve a ‘conversão’ de Cortázar, isto é, a politização de sua literatura e de sua vida.

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