Luciano Hortencio
Música e literatura fazem parte do meu dia a dia.
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Relembrando o grande Canhoto da Paraíba

Por Uraniano Mota e Luciano Hortencio

 

 

Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro mostrai que sois verdadeiramente mãe de todos artistas caídos em desgraça na terra.

Existe um homem que é grande no tocar, existe um sereno e augusto artista que é largo e alto de coração, existe um violonista de nome Francisco Soares de Araújo, que a simplificação da gente achou por bem chamar de Canhoto da Paraíba. 

Minha Nossa Senhora, esta súplica seria inútil se tivésseis a graça de ouvi-lo um só minuto. Então saberíeis como ele transporta o céu para a brutalidade e para a angústia de todos animais que somos.

Então sorriríeis com ele, e como ele, porque irradiante e empática e comungante sempre foi a sua ventura no tocar. Esta prece poderia ser tão-só e somente um insulto à dignidade de Francisco Soares de Araújo, se Canhoto da Paraíba não se encontrasse no estado e no ânimo em que se encontra. Sabei, erguida e nobre Senhora dos sonhos dos desesperados, sabei que Canhoto se acha numa cadeira de rodas, com a voz falha, e todo lado esquerdo do corpo, e toda a mão esquerda, cruel e certeira maldição, paralisada.
(É assim que a Providência castiga os bons da alma? Se um homem canta pela mão esquerda, será ela a ferida? Se um artista se expande pela voz, será na garganta o seu câncer?).

Sabei, Senhora, que Canhoto mal falando, a tropeçar nas sílabas, como uma grande criança que cresceu para ser coroada por uma cadeira de rodas, sabei, Senhora, que Canhoto ainda assim sorri. Com quase o mesmo sorriso com que o vi um dia, à luz do dia, ao meio-dia na Avenida Guararapes. Com este assim:

O guitarrista Pedro Soler, aquele mesmo guitarrista flamenco a quem Miguel Angel Astúrias declarou, “os teus dedos, Soler, são os cinco sentidos da guitarra”, este Pedro um dia esteve no Recife, em 1975. E disse, “Canhoto da Paraíba é um dos três grandes guitarristas do mundo”. E por ser lembrado dessa referência, ao ser encontrado na Avenida Guararapes, Canhoto assim respondeu, com o mesmo sorriso de menino bom, que agora insiste na paralisia em que se encontra, com o peito bom de menino que recebe pedras e se alarga, para abraçar as pedras como abraça facas e elogios:

– Num foi? Eu disse a ele, “Tu é doido, Soler?”

E como eu lhe repetisse o elogio de vexame, e para não ficar com a cara gorda e limpa exposta à luz do sol, como uma criança que se descobre despida em rua de adultos, Canhoto assim respondeu à consagração:

– Tu quer um confeitinho? Toma um de menta. É bom, rapaz.

E dessa maneira a receber caramelos, a vez de se encabular foi minha. Agora sinto, agora percebo que na pessoa de Canhoto aura nenhuma poderia ser posta, porque o seu maior elogio era a sua própria pessoa: Canhoto a sorrir, a tocar. E digo isto, Senhora, quase que em estado de raiva e convulsão, por entre estremeços. Porque o vejo agora e me vem num assalto: Não é assim que se trata um homem. Não é assim que se destrói um artista. Não é assim que se faz reduzir e insultar a memória da gente.

Este a quem encontro em Maranguape I, periferia do Recife, para lá de Olinda, é o mesmo homem que era convidado como estrela máxima de saraus, shows e banquetes? Este, na obscuridade da sua sala, olhando um disco na parede, como um mamute, como um gordo pacífico sem fala, é o mesmo genial violonista de Pisando em Brasa? Algo procuro, busco uma razão, e para não ser tão cru e cruel como a Providência, que assim pune os nossos grandes, prefiro balbuciar estas desrazões:

Imaculada Virgem e Mãe minha, Maria Santíssima, a vós que sois a Mãe de meu Salvador, Rainha do Céu, Advogada, esperança e refúgio dos pecadores, recorro:

Canhoto da Paraíba tem a perna, as articulações sacrificadas, porque não dispõe de recursos para fazer uma… terapia. Não esta terapia que ora faço, da súplica do milagre, da clemência aos céus, mas a mais elementar, humana, elementar, uma fisioterapia. Por isso, por falta desta, já reclama, reclama, não, que ele sequer se queixa, por isso já se refere a dormência nas pernas, porque passa o dia entre a cadeira e a cama. Mas disso ele não se queixa – está em repouso, não é? Sabei, Senhora, que Canhoto é homem de grande resignação. 

Minto. Menti para ficar dentro da forma beatífica do requerimento a Seus poderes. O que toda a gente toma por resignação (digo-o baixinho, bem baixinho, como um chorinho solado, murmurando) o que toda gente toma por resignação é uma imensa generosidade. Canhoto sempre foi um deus de fertilidade, tocava e distribuía seus dons com louca e desmedida prodigalidade, como se os seus recursos, porque lhe chegavam, fossem inesgotáveis. Depois do derrame, do AVC, esses recursos subitamente se esgotaram. Mas disso ele não se deu conta. É um Buda que vive e se alimenta dos restos e da sombra do seu nirvana. 

Daí que não se queixa, daí que de nada reclama. Canhoto espera que de uma hora para outra seus dedos esquerdos voltem a se articular como antes, e aí, que bom que será! Todas as portas voltar-se-ão para ele, todas as graças, todos os violões, até mesmo a Santa, que acorrerá para ouvi-lo sem necessidade de invocação. 

Nós, que não somos Canhoto, é que percebemos que o Rei perdeu o seu cetro, seu poder, seu trono. Nós, que o vemos transparente pela bonomia da sua fala de criança, é que sabemos: à causa “natural” da isquemia, da idade dos seus 76 anos, soma-se a natural organização do mundo. 

Canhoto vive de uma modesta aposentadoria que não lhe dá margem para um tratamento de luxo, e o luxo, Imaculada, é uma fisioterapia. Sabei, Santa sobre as santas, que ele recebe aposentadoria por suas atividades de burocrata, de funcionário do SESI, por ser Francisco Soares de Araújo. Da sua razão de ser – da sua razão de viver, da sua razão de morrer – do gênio de ser Canhoto da Paraíba … nada, nada, nada. Assim não são os bens espirituais? Nada, nada, nada. Dos políticos, dos deputados, senadores, governador do estado, prefeitos, nada, nada, e minto. Minto, minha Santa: destes tem recebido uma segura e intransponível distância. Ou melhor, nesta altura, fui injusto. Agora em junho deste ano, o nosso violonista foi a Brasília, para inaugurar, com chave de ouro, o Projeto Pixinguinha. Ali, Canhoto recebeu um aperto de mão do Presidente. 

Por isto, minha Santa, por isto, Imaculada, já que sois tão poderosa diante de Deus, fulminai para sempre e eternamente com vossos raios a insensibilidade humana. Porque existe um homem, que um dia foi Canhoto da Paraíba, que jaz numa cadeira de rodas, em Maranguape I, Paulista. Sem se queixar e a sorrir, e por assim estar, a machucar o coração da gente.

Urariano Mota.

 

 

https://www.youtube.com/watch?v=HOhqjoCx8FM

Luciano Hortencio

Música e literatura fazem parte do meu dia a dia.

21 Comentários

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  1. Genial

    Caro amigo Luciano Hortêncio, por essa ninguém esperava. Muito obrigado, rapaz.

    Abraçando Canhoto da Paraíba, como Canhoto um dia fez pra Paulinho da Viola: abraçando Paulinho.

    1. Corrigindo o nome da composição

      Caro amigo Luciano Hortêncio, perdoe a falha involuntária.

      Foi Paulinho da Viola quem abraçou Canhoto da Paraíba em um belo choro. O título é “Abraçando Chico Soares”, pois Canhoto era Francisco Soares de batismo.

      Alguns links de vídeos de “Abraçando Chico Soares”

      https://www.youtube.com/watch?v=pO0fZCHiAVU

       

      https://www.youtube.com/watch?v=w6HS4eY9AeU

       

      https://www.youtube.com/watch?v=uVLfDjF60dk

       

       

      Com um abraço para Luciano Hortêncio. 

  2. O drama de Canhoto da Paraíba

    Impossibilitado de tocar e com a saúde seriamente debilitada, o violeiro e compositor precisa de ajuda financeira.

    Marco Antonio Barbosa

    02/01/2002- Canhoto da Paraíba, um dos grandes nomes do cancioneiro popular nordestino e raro estilista da viola (reverenciado por Baden Powell e Raphael Rabello), vive há pouco menos de um mês um drama. Aos 75 anos, o violeiro sofreu uma crise em seu sistema nervoso, ligada à isquemia cerebral que o vitimou em 1998 e que o obrigou a parar de tocar. Agora, Francisco Soares – o Canhoto – está impossibilitado até de falar. Ao delicado estado de saúde do instrumentista somam-se as dificuldades financeiras de sua família, que sobrevive apenas dos direitos autorais de um único disco de Canhoto (Único Amor), relançado recentemente pela Kuarup. Doações em dinheiro para a família de Canhoto da Paraíba podem ser feitas em nome da esposa dele, Eunice Gadelha de Araujo (Banco do Brasil, Agência 0325-5, C/C 704967-6).

    http://cliquemusic.uol.com.br/materias/ver/o-drama-de-canhoto-da-paraiba

     

    PS.: Canhoto faleceu aos 82 anos em Maranguape, Paulista, no dia 24 de abril de 2008.

  3. Violonista inventou técnica única de tocar

    Violonista inventou técnica única de tocar

       Já faz parte da lenda da música pernambucana, a viagem, de jipe, empreendida em 1959, por um grupo de instrumentistas do Recife para conhecer Jacob do Bandolim, no Rio. Uma viagem que levou cinco dias, mas foi recompensada pela acolhida de Jacob do Bandolim: “Ele enfeitou a frente da casa com bandeirolas, convidou Pixinguinha, Radamés. Gostaram muito das minhas músicas”, relembra Canhoto, sem acrescentar um fato acontecido nesse sarau.

       Meia-noite, o maestro Radamés Gnatali, aditivado com várias doses de uísque, pediu que Canhoto tocasse novamente o choro Lembrança que ficou. Ele tocou, e entusiasmado, Radamés atirou o copo de uísque no teto. Enquanto viveu Jacob do Bandolim conservou a mancha intocada, para relembrar a memorável noitada. Canhoto não conta esta história ao relembrar sua primeira ida ao Rio. Prefere falar sobre os grandes músicos que conheceu. Luperce Miranda, por exemplo: “Tocava muito rápido, tinha muita técnica. Quando toquei com ele, comentou para outro músico: ‘O garoto aqui é bom’. Eu aprendia ligeiro a acompanhar ele”, diz Canhoto.

       De sua própria técnica fala muito pouco. A forma como toca, do lado esquerdo, sem inverter cordas, faz com que sua música seja difícil de passar para a pauta. A baixaria do violão ele faz com os dedos que normalmente são usados para solo. Ele sola com o polegar. Como Canhoto nunca aprendeu a escrever música, a partitura nunca reflete exatamente a forma como suas composições são tocadas.

       Paulinho da Viola nunca se cansa de elogiar a beleza e dificuldade da música de Canhoto da Paraíba: “Minha primeira música foi Saudades de Princesa. Paulinho da Viola diz ter ficado espantado por eu fazer um choro tão difícil já naquele tempo”, diverte-se, Canhoto, que confessa ter encontrado dificuldades para acompanhar Djavan: “A música dele é complicada, é boa, mas complicada de tocar”. O melhor violonista que já viu? “Rafael Rabelo, o melhor de todos. Ele veio aqui em casa. Nós dois tocamos ali, (aponta para um pé de jambo, no jardim) só músicas minhas. Ele sabia todas. Foi gravado em fita. Acho que está ainda aqui em casa, não sei.” (J.T.)

    (© JC Online)

  4. Canhoto e Geraldinho Azevedo

    No início dos anos 90, graças ao empenho de Geraldo Azevedo, nao o músico, mas o entao superintendente do BB na Paraíba, Canhoto teve a oportunidade de fazer 40 shows pelo Brasil, patrocinados pela Fundaçao Banco do Brasil.

    1. Valeu, amigo Paulo Gurgel Carlos da Silva!

      CANHOTO DA PARAÍBA E ZIVALDO MAIA NO SANTIAGO DRINKS

       Em Fortaleza dos anos 80, funcionou no térreo do edifício Marinho de Andrade, na Avenida Beira-Mar, o Santiago Drinks, o simpático barzinho do Otávio Santiago.
      Um dos seresteiros mais conhecidos da cidade, naquela época, Otávio Santiago montou uma casa noturna onde recebia os amigos e os admiradores de sua voz. Uma voz belíssima, a serviço da seresta tradicional, ao tempo em que eram ainda assíduas as canções de Silvio Caldas, Francisco Alves e Orlando Silva.
      No Santiago Drinks, a mais inesquecível das noites aconteceu justamente em um meio de semana. Quando se deu, por acaso, um encontro musical doCanhoto da Paraíba com o cearense Zivaldo Maia (fotógrafo: Igor de Melo), dois virtuoses do violão. Canhoto e Zivaldo: um cordial enfrentamento de cordas que fez um bem enorme à música popular brasileira.
      Zivaldo Maia, para quem não conhece
      Jota A. Botelho, Jornal GGNCitado pelo Sr. Paulo Gurgel, o virtuoso violonista cearense, Zivaldo Maia, aqui executando o chorinho, de sua autoria, “Violando”:
      Zivaldo Maia: um mestre cearense do violão, O POVO online, 01/02/2013
      A paixão e o virtuosismo de Zivaldo, um mestre cearense do violão que já foi parceiro de Luiz Gonzaga e cicerone da fina flor da música brasileira em Fortaleza
      Uma das últimas composições de Luiz Gonzaga foi feita em Fortaleza. Um xote de duas partes em que o Rei do Baião dividiu a assinatura da melodia e da harmonia com Zivaldo Maia, o violonista virtuoso diante do qual Lua se espantara anos antes: “esse cabra é bom!”, proverbiou quando ouviu pela primeira vez aqueles arpejos criativos e aqueles acordes elegantes. A letra da composição, ainda hoje sem nome, seria escrita por Padre Gotardo – com quem Gonzaga dividiu “Obrigado João Paulo”, homenagem ao papa que desembarcou no País em 1980. Mas a letra nunca ficou pronta.
      “O Gotardo esteve aqui em casa, junto com o Luiz Gonzaga, e ficou de fazer. Mas adoeceu em seguida e ela terminou sem ser feita.”(Trecho inicial da entrevista de Zivaldo ao jornalista Felipe Araújo.)
      28/02/2015 – Atualizando…
      Relembrando o grande Canhoto da Paraíba, por Uraniano Mota e Luciano Hortencio. Postado por Assinar: Postar comentários (Atom)

       

  5. Salve Canhoto!!

     

    “Canhoto compôs choros com um “agradável sabor nordestino”. Conta a lenda que ao ver Canhoto tocar pela primeira vez, Radamés Gnattali ficou tão impressionado que teria gritado um palavrão e jogado seu copo de cerveja para o teto e que o dono da casa, ninguém menos que Jacob do Bandolim, nunca teria apagado a mancha do teto para lembrar o momento (tudo indica que é apenas lenda)”. (Wikipédia)

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=xWgqj_-VQ5Q%5D

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=873AZoD3AJ4%5D

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=10sUs0rGcW8%5D

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