A violência policial nossa de cada dia, por Romulus

A violência policial nossa de cada dia – Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente testemunha, em primeira mão, as violências da PM de SP

Por Romulus

Chega a mim em um grupo de Whatsapp – “juristas e advogados pela democracia” – o relato abaixo, com a informação adicional de que o nome de quem o faz é Fábio Paz, Presidente do CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Após ler o relato assustador e também angustiante, pelo sentimento de impotência que reaviva, alguns pensamentos me assaltam:

(1) Quantas dezenas – dezenas apenas? – de fatos semelhantes não terão ocorrido nas grandes cidades brasileiras naquele mesmo dia sem o testemunho “privilegiado” de alguém engajado na defesa de uma minoria (na verdade maioria), capaz de fazer a sua voz ser (minimamente) ouvida?

*

(2) Constatação ainda mais triste: se fizerem uma enquete, a maioria da população aprovará a conduta policial e condenará a do ativista, “defensor de vagabundo”.

– “Direitos Humanos? Para humanos direitos, ora!”
– “Ele tá reclamando de quê? Não aconteceu ‘nada’ com ele, ué!”

Anos e anos com a insidiosa doutrinação dos programas mundo-cão no final da tarde / inicio da noite (Datena, Marcelo Rezende, Wagner Montes, etc.) lograram seu intento:

(i) banalização (ainda maior) da violência;
[“ainda maior” porque a origem do grau de banalização da violência e do valor da vida no Brasil está no seu passado escravocrata]
(ii) inculcação do medo e da paranoia na sociedade;
(iii) desumanização do “bandido” de ocasião; e
(iv) glorificação de respostas violentas das polícias.

Até a Globo tentou tirar um naco desse nicho com a volta de “Linha Direta” anos atrás.

(Dou um suspiro lembrando o quanto a luta contra a escalada do fascismo no Brasil é ingrata…)

*

(3) Todas as considerações acima me vêm depois de racionalizar o relato.

O primeiro impulso é “biológico”, em nível límbico, com uma resposta instintiva do tipo “lutar ou fugir” (fight or flight response).

Assalta-me o imperativo egoísta da biologia: sobrevivência e autopreservação.

Assim, não posso deixar de, de início, soltar um suspiro de alívio por estar num país com apenas 0.5 assassinatos por 100 mil habitantes – a maioria crimes passionais.

Isso vindo de um país, o Brasil, que figura no topo do ranking mundial, com taxa de 22.6.


Um no bloco dos 15 primeiros e o outro no dos 9 últimos do ranking mundial de homicídios.
Isso em 2014, quando o desemprego ainda estava em baixa recorde…
Não quero nem imaginar agora, numa depressão econômica.
E nem no futuro, com o desmonte do precário Estado do bem-estar social brasileiro.

Confesso que no meu Rio de Janeiro também me vinha um frio na barriga ao ver uma viatura policial se aproximar ou, pior ainda, parar o meu carro. A tentativa de arrancar um suborno era certeza. A incerteza era se a violência pararia aí, na esfera “moral”.

Aqui só não digo que a minha resposta à presença policial é a indiferença porque ainda me vêm ecos instintivos de toda uma vida no Brasil.

Leva uma fração de segundo até racionalizar e respirar aliviado:

– Calma! Essa não é a polícia brasileira!

*

Respirar aliviado?

O alívio é relativo…

Eu aqui e toda a minha família e amigos lá, junto a outros 200 milhões.

Ao relato:

*

Entre a presidência do CONANDA e o banco da viatura

(crônica de fato ocorrido no dia 10.10.2016 na cidade de São Paulo)

Ontem a noite vivi horas de terror em meio a uma tragédia repetida em tantas periferias de São Paulo. Depois do susto e com o corpo menos dolorido pelo tamanho da pressão escrevo estas linhas em forma de denúncia e de reflexão.

Estava num ponto a espera de um transporte público para retornar para casa depois de uma tarde no hospital na última consulta antes da fatídica cirurgia no intestino marcada para esta semana. Carregava uma sacola cheia de exames e um presente barato de plástico que comprei as pressas para a Pilar. Quando de repente escutei três disparos, gritaria e alvoroço geral pois estava no terminal de Santana, bairro com muito comércio e um grande terminal, no horário de pico.

Ao virar vi policial correndo de um lado para outro e o corpo de um garoto de não mais de 20 anos no chão ao seu lado menina-adolescente aos gritos suplicando que o policial não atirasse mais. Corri, corremos (um grupo grande de pessoas) e cercamos os dois corpos ainda vivos e em angústia. O menino foi ferido na região pubiana e no braço. O policial perdido ficou como cachorro louco, apreensivo, não pelo ato, mas pela multidão com seus celulares ligados e com força gritavam: “Chama ambulância! Por que você atirou?” outros mais irritados, “Assassino!”

E eu ali, tentava entender e acolher aquele casal abandonado naquele lugar público junto com outras pessoas que viam seres humanos e não objetos de um jogo de violência.

De repente começa a chegar diversos carros da Polícia Militar e do Choque, policiais grandes, com armas desproporcionais para o ambiente começaram a empurrar como cães vorazes a população: “Saiam! Saiam! Saiam! Vocês também são bandidos?” As palavras não eram só violentas como eram de ameaças de quem ousasse falar algo de protesto ou reivindicação.

Neste momento eu disse: “Antes de armas ele precisa de socorro!”.

A resposta foi abrupta e violenta para mim: “Quem é você? Tá defendendo este bandido?”, de maneira enérgica e coletiva me cercaram de forma coerciva, me agarram e disseram “vem pra cá e passa o documento e celular!” Isto com os corpos blindados e armados em cima de mim.

Eu respondi que “Não!” começou uma gritaria, me empurravam e gritavam mais alto: “Você vai fazer isto sim, porque é determinação do Secretário e nos vamos pegar seus documentos e celular. Pelo contrário você vai preso!”

Até que sozinho, sem referência, esmagado por tamanha opressão, apenas com o apoio de um grupo de pessoas que estavam indignadas com a postura da polícia, começaram a gritar “Injustiça! Injustiça!” Os policiais começaram a responder de forma irônica “Injustiça é defender bandido!”

Fui levado a força para dentro da cena novamente. Agora éramos três: eu, um desconhecido, acusado como agitador, apoiador de bandido, com uma adolescente “bandida” no chão ao lado do namorado ferido. Ao olhar para aquele corpo negro no chão pensava no Carandiru e o desfecho do processo dos 20 anos. Absolveram atos criminosos de policiais. E esta imagem e outras eram como um rosário de meditação frente as atrocidades causadas pelo Estado. Via os movimentos dos policiais, os cochichos, os olhares, a forma como queriam proteger o ato de quem atirou etc.

Até que mais uma cena estúpida de agressão me envolveu em náusea. Um policial gritava para a adolescente que estava de joelhos debruçada sobre o namorado: “Se afasta vagabunda! Se afasta e para de chorar!” Com os pés afastava ela como cachorro diante de um saco de lixo. Engoli seco. Olhava ao redor e não via nenhum ponto de apoio do que chamamos de rede e sistema de garantia. Via aquele universo de policiais com suas lógicas e autoridade absoluta. Eu ali, diante de um sistema de segurança que se transforma em juiz, deus e tudo. O silêncio era a melhor maneira de evitar mais uma tragédia, pensei na confusão dos meus medos.

Ao perceber que eu estava sem documento e celular o desespero me invadiu com a possibilidade de tantos desfechos nesta história. Eu estava preso, sem estar preso, estava condenado sem estar condenado. Dois jovens no meio da multidão que agora era gigantesca perceberam minha situação e condição, disseram: “Podemos apoiar com algo amigo?”, falavam por cima dos ombros dos policiais.  Eu pedi que ligassem pra minha esposa para mantê-la informada. Pois eles iriam me levar e precisava que soubesse pra onde eu fui. Vinha na minha mente as estatísticas que denunciamos e publicamos de violência policial.

Alguns policiais vinham para mim e perguntavam: “O que vc viu?” e respondiam, “Sabe que ele é bandido né?” e assim faziam de forma constante com um tom estranho de julgamento. Mais uma vez o medo rondava meu estômago e cabeça.

CONANDA? Aldeias? Defensor e militante de direitos? Nada disso cabia eu era um Zé ninguém, mais um entre a multidão, um trabalhador com sua bermuda rasgada e barba grande e desajeitada. Tudo o que eu representava no campo profissional, politico e social se diluía: Eu mesmo me via como uma coisa, sem identidade e trajetória histórica. Agora eu era o violado, diante de uma parede de opressão que me tirava a voz e minha história, me jogava para o medo do acaso e do abuso de autoridade de policiais. Por isso, eu poderia ser alvo e descartado a qualquer momento. Olhava para a sacola com o presente surpresa da minha filha e tentava buscar um pouco de sanidade e tranquilidade e pensava que com a doença encontrada nestes dias me afastei da cadeira dos projetos e dos debates de incidência e fui engolido pela realidade complexa e perplexa.

Eis que chegou os bombeiros e prestaram os socorros ao menino. A menina foi pega pelo braço e um dos policiais disse: “Você vem com a gente!” perguntei, “Pra onde?”, “Não sabemos ainda!”, eu insisti sem demonstrar qualquer tipo de energia e sim um ar calmo e de submissão necessária: “Preciso saber para comunicar os meus familiares e amigos que estão aqui!” um deles respondeu com boa vontade: “Vamos para a 20° DP. Acompanhe a menina”. Fui ao lado, no mesmo banco que a adolescente que estava toda ensanguentada como pietá.

Ao entrar na viatura a sessão de tortura psicológica começou. “E aí garota, você também é bandinha? Dá nisso defender bandido e ficar com bandido. Eu digo hoje para os meus companheiros, na hora de atirar não atira na perna ou no saco. Atira na cabeça! Assim resolve tudo.” Eles de maneira irônica e agressiva continuavam a indagar e julgar: “E aí você participou do roubo?” ela respondia chorando: “Sim, senhor!” Falava tudo e se expunha ali no carro com se devesse responder. Não estava diante de juízes e sim diante de policiais. Mas destaco aqui uma frase dela: “Estou grávida dele!” rindo alto falaram, “Coitada desta criança! Você vai para a Fundação Casa e seu namoradinho não vai sobreviver. Já era!” a menina soluçava em prantos. Peguei em sua mão e disse “Calma, não tenha ouvidos!”

Ao chegarmos na delegacia ela ficou num canto sozinha e eu ali atrás parado como cúmplice de um ato de estranhos, num bairro desconhecido, numa hora inesperada. Até que por telefone soube que a Diretora da Aldeias Infantis SOS, organização que assessoro há anos, estava vindo com um advogado. Mas as cenas de abuso e violência continuavam no espaço da Delegacia por policiais que chegavam e olhavam pra mim com ódio quando não me pressionavam com perguntas que não respondia, o que os irritavam mais. Depois disso o advogado chegou entramos e fiz o BO. Estava acuado com medo e o corpo todo dolorido.

Conheci de forma diferente este ente chamado “Polícia”. Mudou meu sentimento cotidiano: “Vejo uma viatura começo a suar e com uma dose involuntária de medo. Fico a imaginar as crianças, adolescentes e jovens que são abordados de forma abusadora nas diversas periferias po serem pobres e negros na sua maioria das vezes. Não enxergam os policiais como força de proteção e sim como força do medo, como uma entidade geradora de desconfiança, incerteza e arbitrariedades absolutizadas.

Demorei para dormir na madrugada entrante. Pensei na minha vida, no sistema que se encastela em poderes isolados e regidos por um autoritarismo ditatorial. Repassava todos os procedimentos equivocados diante do que entendemos e pregamos como sistema de garantia de direitos. Fazia um check list das Leis e Códigos existentes. Direito de escuta, do contraditório, do processo legal. Mas a confusão é tamanha que policial vira juiz e advogado, pra não dizer deus, que manda e comanda o destino de vidas. Talvez a tragédia foi menor, por mais que foi traumática e singular na vida destas duas pessoas, se fosse em outro lugar, menos povoado de gente, outro horário e não tão central? Como se daria o final deste enredo?

Acordei e vi na imprensa: “Suspeito baleado por PM após tentativa de assalto na zona norte de São Paulo. Um homem que estava próximo ao local foi conduzido à delegacia por ter incitado populares a agredir os policiais. O celular dele foi apreendido”. Este “homem” narrado pela inventosa mídia, era eu, Fábio, atualmente presidente do CONANDA e co-participante de uma cena de violação dos meus direitos e da adolescente em destaque nesta história. A contradição se encontra na mesma história. A luta e a vida se misturam e se encontram na tragédia. Ali não existe cargo, função, a realidade de opressão atinge a todos e tudo. É necessário repensarmos as estruturas de maneira radical pelo contrário a utopia e as leis se transformam em quimeras que propiciam pela omissão mais incidentes e mortes.

*

Romulus:

Dou um suspiro lembrando o quanto a luta contra a escalada do fascismo no Brasil é ingrata… (2)

*   *   *

Achou meu estilo “esquisito”? “Caótico”?

– Pois você não está só! Clique na imagem e chore suas mágoas:

*

(i) Acompanhe-me no Facebook:

*

(ii) No Twitter:

*

(iii) E, claro, no meu blog aqui no GGN:

*

Quando perguntei, uma deputada suíça se definiu em um jantar como “uma esquerdista que sabe fazer conta”. Poucas palavras que dizem bastante coisa. Adotei para mim também.

Redação

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador