2014 poderá ser diferente, por Delfim Netto

Do Valor

Descontinuidade: 2014 poderá ser diferente
 
Antonio Delfim Netto
 
Um dos benefícios psicológicos do calendário é que ele define períodos de tempo aos quais, num evidente autoengano, damos significação física. Temos a sensação de que 31 de dezembro encerra um período. É uma quebra no tempo contínuo. Em 1º de janeiro inicia-se um ano novinho, sem a herança dos erros e acertos acumulados nos anos anteriores.
 
Infelizmente, o mundo não é assim por motivo também temporal: as consequências vêm sempre depois… 2011 foi o que 2010 nos deixou somado ao que nele fizemos: o maior ativismo do governo, o aumento da desconfiança do setor privado, além da deterioração da situação externa. Isso se repetiu em 2012 e continuou até à segunda metade de 2013.
 
A partir daí o setor empresarial começou a entender os legítimos objetivos do governo e este entendeu que, no tipo de organização econômica em que vivemos, o setor privado não pode ser tratado como um “bando de egoístas”. Até agora, a história mostrou que o tal “capitalismo” foi descoberto por seleção quase natural e está em permanente evolução. Todo “intelectual” sabe que é ele o pior dos regimes, com exceção de todos os outros inventados por “intelectuais”…

Três anos (2011-2013) de desconfiança, suspeitas e incompreensões do setor privado e de longo aprendizado pelo governo, o tempo contínuo do triênio de 1.095 dias deixou resultados pobres: 1) taxa de crescimento do PIB de 6%; 2) taxa de inflação de 19% e 3) déficit em conta corrente de US$ 187 bilhões.

Pobre com relação ao “esperado” mesmo quando se desconta a menor expansão mundial: 1) um crescimento de 9% no triênio, contra os 6% obtidos (2/3 da expectativa); 2) uma taxa de inflação ligeiramente declinante de 0,5% ao ano a partir dos 5,9% de 2010, capaz de entregar a “meta de 4,5%” em 2013; e 3) um déficit em conta corrente de 2,7% do PIB, contra 1,8% no triênio anterior (2008-2010), o que o aumentou de US$ 127 bilhões para US$ 187 bilhões, 47% acima do que havia ocorrido no triênio anterior, cujo PIB cresceu 13% contra os 6% do atual!

É engano pensar que a desconfiança que começa a dissipar-se entre o governo e o setor privado tinha origem num “trotskismo” enrustido. Ela foi produto de um honesto superativismo governamental, derivado da crença de que poderia acelerar o tempo da correção de alguns de nossos graves problemas estruturais. Quando olhamos objetivamente para aquele ativismo vemos apenas resquícios de uma atitude comportamental que vai sendo superada pelo aprendizado.

Na crença popular existe um ente com capacidade de interferir no comportamento das pessoas, o chamado “encosto”. No clássico Aurélio, “é um espírito que está ao lado de um ser vivo para protegê-lo ou prejudicá-lo”. No magnífico Houaiss, “é um espírito perturbado que se presume estar ao lado de alguém para prejudicar”. E no sofisticado Sacconi, “é um espírito mau ou bom que se aproxima de uma pessoa para ajudá-la ou prejudicá-la”.

Na economia brasileira, os maus “encostos” se multiplicaram. São muitos, poderosos e visíveis. E não são as agências reguladoras, que por definição são “encostos” bons, quando entes do Estado não sujeitos ao aparelhamento por “companheiros de passeatas”.

Nada se pode fazer nos transportes rodoviários sem o “encosto” do Dnit (o que agora mudou graças à ação da ministra Gleisi, da Casa Civil e do ministro César Borges, dos Transportes). Mas nada ainda pode ser feito no transporte ferroviário sem o “encosto” da Valec, que é positivamente maléfico e deve ser exorcizado numa “sessão espírita” na sede da Polícia Federal! No setor de energia elétrica, tudo depende do “encosto” da Eletrobras. No setor de gás e petróleo, sempre há de aturar-se o “encosto” da Petrobras e, agora, um “encostinho” recém-chegado, a Pré-Sal Petróleo S.A.

No transporte aéreo, nada decola ou pousa sem o “encosto” da Infraero. Temos usado instrumentos fundamentais para o desenvolvimento como o BNDES, o BNDESpar, os fundos de pensão das estatais e a Caixa Econômica Federal como “encostos” para promover alguns investimentos duvidosos, esquecendo que seus passivos serão dívida “contingente” do governo federal. Sem dogmatismo e para dar o benefício da dúvida: alguém pode afirmar com segurança que eles “ajudaram” o bom andamento dos investimentos em infraestrutura que deixamos de fazer nos últimos 30 anos?

Não adianta sofisticar ou mistificar os diagnósticos e as “receitas” que eles sugerem. Com a desconfiança recíproca entre o governo e o setor privado empresarial existente até há pouco, não há políticas econômicas (fiscal, monetária e cambial) e sociais, que funcionem, que: 1) acelerem os investimentos e aumentem a taxa de crescimento do PIB; 2) levem num horizonte razoável a taxa de inflação para a sua meta de 4,5% ao ano; 3) mantenham um déficit em conta corrente sustentável; e 4) reduzam a relação dívida bruta/PIB.

Felizmente “caiu a ficha”: a Casa Civil e os ministérios dos Transportes e da Fazenda, que “escutavam, mas não ouviam”, passaram a “ouvir”. Por outro lado, o setor privado entendeu que a honesta insistência do governo na “modicidade tarifária” buscava eficiência na prestação de serviços em monopólios públicos que, depois dos leilões, seriam monopólios privados. Sujeitos a contratos “abertos”, eles precisam de regulação cuidadosa e permanentemente justa. Não era, pois, “socialismo”…

Os primeiros resultados já são visíveis: os leilões de infraestrutura mostraram que o diálogo está restabelecendo a confiança mútua. E com essa virão os investimentos. Talvez a crença na descontinuidade temporal possa fazer de 2014 um ano melhor do que a média do triênio 2011-2013.

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras

E-mail: [email protected]

 

Redação

8 Comentários

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  1. Entre um encosto e outro…
    Faltou o Delfim citar o encosto da oposição sem rumo que torce para o quanto pior melhor com o apoio inrestrito do encosto chamado grande mídia.

  2. Prezados,
    O Senhor Delfim é

    Prezados,

    O Senhor Delfim é um paradoxo extremo: Ora pode formular conceitos geniais, ora desanda a falar estultices. 

    Ótimo, afinal, o descobrimos humano, sensivelmente humano, apesar da carga mística construída nos tempos em que era czar da economia e manipulava, ele mesmo, todos os “encostos” sem o inconveniente da democracia. 

    Não teve muito sucesso.

    Ao menos ele (re)pactuou suas noções e não inseriu o incômodo (democrático) na sua lista, ao menos não diretamente, porque gênios paradoxais como Delfim são chegados às sutilezas.

    Veja que ele trata todas as instâncias institucionais e as escolhas políticas de um governo eleito, e/ou suas necessidades políticas para sustentação como “enconstos” ou um problema “comportamental”, o superativismo! Quanta arrogância!

    Um parêntese para destacar uma enorme grosseria do Delfim com nossa pobre e mortal inteligência: chamar a Petrobras de “encosto” pelo seu desempenho no setor de energia a base de carbono, ou a Eletrobrás no campo da eletricidade, é uma estultice que não esperava ler em Delfim.

    Mas como digo, aos gênios às excentricidades. 

    Lógico, sem disfarces está embutida aí a sua noção de mundo e de gestão pública estatal: O mínimo possível e o máximo neessário, ou seja, intervenção só se for para salvar o mundo privado, desde que o governo não lembre politicamente a este mundo privado que está fazendo isto, e lhe cobre qualquer contrapartida, por mínima que seja.

    É um jogo de confiança, diria Delfim, mas que ousamos interpretar assim: O setor privado tem que confiar que o governo fará tudo que ele deseja! A confiança no acordo Caracu. Não é preciso dizer quem vai entrar com o quê.

    A defesa desta visão é legítima, vivemos tempos democráticos.

    Só não pode ser apresentada por alguém (Delfim), que reivindica a fala científica, como um cânone ou dogma irreversível.

    E subvertendo toda a compreensão sob perspectiva histórica que a análise profunda que ele propõe, Delfim exige, acelerado: “tudo o que o governo fez alterou os problemas estruturais que se acumulam nestes últimos trinta anos?”. Ele espera que alterações estruturais mostrem resultados em 5 ou 10 anos?

    Talvez aí esteja explicada boa parte da precariedade da sua gestão da economia do país quando teve chance.

    Olhado bem de perto, Delfim nos acarreta uma visão sui generis dos conflitos intelectuais dos gênios: Ele sabe que irá morrer dizendo: “o capitalismo é o que há”, e dentro dos limites de sua existência, ele estará certo.

    Por outro lado, sabe que deixará este mundo sem poder dizer que o capitalismo é a última etapa da evolução humama sobre a Terra, ou seja, nunca poderá dizer: “o capitalismo é o que sempre haverá”.

    Nem todo seu sarcasmo ou refinamento são capazes de substituir esta lacuna conceitual que carregará até o fim.

    Porém, não se enganem: quando a gente menos espera, ele nos brinda com algo genial.

    Uma pena que não foi desta vez.

  3. Encosto maléfico pior do que

    Encosto maléfico pior do que a mídia velha e decadente não existe. E ainda tem umas pollyanas poderosas no planalto que não enxergam.

  4. seletividade

    Nassif

     

    Ha pouco tempo o Delfim escreveu um artigo criticando fortemente o governo e prevendo a tempestade perfeita (indo de encontro com o pensamento do Arminio Fraga). Delfim escreveu que o governo acabou com a petrobras e com a eletrobras descapitalizando as empresas.  Entrei comentando um post qualquer e pedi que vc postasse a opinião do Delfim e nada aconteceu. Agora ele escreve este post mais ou menos e que coloca panos quentes nos erros do governo voce publica.

    Voce está sendo muito parcial e o Delfim não sabe se abandona o barco ou se o barco irá prosperar.

    Segue o link para quem quiser conferir.

    https://www.google.com/url?q=http://www.infomoney.com.br/onde-investir/acoes/noticia/3086396/que-governo-fez-com-petrobras-foi-uma-tragedia-diz-delfim&sa=U&ei=dz7VUoftIafmsASb3IKAAg&ved=0CBEQFjAF&client=internal-uds-cse&usg=AFQjCNHmrGOdbqRz5dYSZQ2Ao6QTSlImqQ

  5. A qualidade ruim do nível de

    A qualidade ruim do nível de instrução passado e absorvido pela população significa na base a dificuldade para elaboração de fórmulas elementares de matemática, no que seria o topo da pirâmide teóricos com visão ultra especializada incapazes de ver além, de calcular de modo sofisticado sobre fatores e dimensões que não dominam, considerar o auxílio de ciências que menosprezam.

    Olha esse cidadão que repete coisas sem parar. Embora coma e beba na alta direção de governos do estado há mais de quarenta anos, suas predições dão sempre nágua. A mais última dele foi uma tal “tempestade perfeita”.

    Apenas três anos atrás predizia o paraízo enquanto outros menos reconhecidos embora muito mais atilados já diziam da desindustrialização, para ficar apenas num caso.

    E na última Carta ele me vem com essa.: precisamos investir em infraestrutura, é “injeção de ânimo” na veia da produtividade.

    Vai pastar Delfim.

  6. quando ?

    …. quando serah implantada a desindexaçao de preços e salarios – mola mestra da retroalimentaçao da inflaçao de preços publicos e seus reajustes com base no IPCA .

    por que ja eh ssim na tabela do imposto de renda e o resto nao ?!?

    falar em “inferencias” nao faz sentido ……….

  7. Delfim é um dos “encostos” do

    Delfim é um dos “encostos” do jornalismo econômico que , dependendo do “cavalo” , pode ser um bom ou um mal espírito …

  8. Será o oráculo do capitalismo tupiniquim!!!!

    “Todo “intelectual” sabe que é ele o pior dos regimes, com exceção de todos os outros inventados por “intelectuais”…

    Sempre ele!!!!! Só ele, porque ele tem o capital!!!!

    Capitalismo selvagem!!!!! Socialismo estatal, que também não deixa de ser capitalismo de estado!!!

    E quando este capitalismo neo-liberal, democratico, privado, vai mal, quem o socorre?

    Então meus caros, sem o capital, nada se fará, e a busca desta convivência, é que é dificial dada a ambição gananciosa!!!

    Utopia? Talvez, mas basta lembar que quase todas as revoluções, sejam capitalistas ou socialistas/comunistas foram financiadas pelo capital, fico na dúvida se um dia teremos uma revolução humanista!!!!

    Haja utopia!!!!!!!!!!!!!!!!!

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