O Brasil ainda precisa da reforma agrária, por Gustavo Noronha

do Brasil Debate

O Brasil ainda precisa da reforma agrária

por Gustavo Noronha

Uma das funções da agricultura no desenvolvimento de um país é assegurar a oferta de alimentos. Nosso modelo, fundado no mercado externo e no fornecimento de matérias-primas, prevê inserção subalterna do país na divisão internacional do trabalho e perenizou a reforma agrária para que ela nunca fosse feita

A recente alta nos preços do feijão e do leite, e alguns outros produtos alimentícios, trouxe novamente a pauta a questão dos preços dos alimentos e seu peso nos índices de inflação. Como ocorrido há algum tempo no alegórico caso do tomate que serviu de colar para uma apresentadora de televisão, não há nenhum tipo de análise que busque identificar as causas do fenômeno de aumento dos preços. No máximo, de acordo com as preferências políticas, apontam o dedo ao presidente golpista ou à presidente afastada.

Alimentos têm uma demanda relativamente inelástica, particularmente produtos da dieta básica da população como é o caso do feijão no Brasil. Em outras palavras, uma família normalmente abre mão do consumo de outros produtos diante de um aumento de preços em produtos alimentícios básicos, mas a demanda destes tende a permanecer inalterada. Há, claro, uma variação na demanda agregada dos alimentos que acompanha a variação populacional, mas nada que justifique um aumento abrupto dos preços.

O que temos no Brasil é que as áreas voltadas para alimentos de consumo interno da população brasileira estão a perder espaço para culturas de exportação ou que produzem insumos não alimentícios para outras indústrias. Segue abaixo gráfico elaborado a partir da Pesquisa Mensal Agrícola do IBGE que compara a série histórica das áreas plantadas dos dois produtos mais elementares da dieta do brasileiro, arroz e feijão, com as áreas plantadas da soja (voltada ao mercado externo) e cana-de-açúcar (voltada tanto para a produção do açúcar, boa parte exportada, como para a produção do etanol, o álcool combustível).

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Em números, tínhamos em 1990 uma área plantada de 4.158.547 hectares de arroz, 5.304.267 hectares de feijão, 4.322.299 hectares de cana-de-açúcar e 11.584.734 hectares de soja. Em 2014, os hectares plantados eram 2.347.460 de arroz, 3.401.466 de feijão, 10.472.169 de cana-de-açúcar e 30.308.231. Uma drástica diminuição da área plantada dos produtos da dieta básica do brasileiro num período que a população saltou de menos de 150 milhões para cerca de 200 milhões de pessoas. Não é, portanto, uma estratégia de qualquer governo de plantão, mas um modelo de desenvolvimento adotado pelo país.

Uma das funções elementares da agricultura no desenvolvimento de um país é assegurar a oferta de alimentos. Estamos num modelo fundado no mercado externo e no fornecimento de matérias-primas para produtos como o etanol e a celulose que não apenas não contribui para o aumento da oferta interna de alimentos, como vem reduzindo a área plantada das culturas que atendem à dieta básica do brasileiro.

Trata-se de um modelo perpetuado pelas velhas elites agrárias. Os velhos coronéis da República Velha viraram os ruralistas de hoje. Um modelo que prevê uma inserção subalterna do país na divisão internacional do trabalho e que perenizou a reforma agrária no país para que ela nunca fosse feita.

A força destes grupos de interesse no congresso nacional impedem o avanço de qualquer pauta minimamente progressista no congresso. Todos os governos brasileiros, em maior ou menor grau, estiveram reféns dos velhos coronéis para garantir a governabilidade. A ditadura promoveu a modernização conservadora do campo sem qualquer modificação na estrutura agrária. Na Nova República, os representantes das velhas oligarquias sempre controlaram o Ministério da Agricultura e foram decisivos em todas as votações no congresso. O presidente Lula chegou a chamar os usineiros de heróis nacionais.

Nas discussões sobre desenvolvimento econômico, até economistas conservadores como o norte-americano Walt Whitman Rostow defendem como necessária uma ruptura com as elites tradicionais. No Brasil, as oligarquias permanecem hegemônicas tendo sido inclusive decisivas no processo de impeachment da presidenta Dilma. A ausência de uma reforma agrária efetiva tem ditado os rumos do atraso do país, seja na política seja na economia.

Esta discussão não é de hoje. Em 1948, Victor Nunes Leal publicavaCoronelismo, Enxada e Voto, em cuja conclusão apontava que a decomposição do  ‘coronelismo’ só será completa quando se tiver operado uma alteração fundamental em nossa estrutura agrária. (…)

Assim como a estrutura agrária ainda vigente contribui para a subsistência do “coronelismo”, também o “coronelismo” concorre para a conservação dessa mesma estrutura. Os governos brasileiros têm saído, até hoje, das classes dominantes e com o imprescindível concurso do mecanismo “coronelista”. Essa é uma das razões da sua perplexidade no encarar os problemas do país, cuja economia se caracteriza por um industrialismo ainda precário e por um agrarismo já retrógrado.

Essa perplexidade teria de conduzir, inevitavelmente, a medidas contraditórias. Para proteger a indústria, não se procura ampliar o mercado interno com providências eficazes e consequentes, porque semelhante política prejudicaria os interesses da classe rural dominante. Apela-se então, exclusiva ou principalmente, para o protecionismo alfandegário, a fim de contentar gregos e troianos: os preços dos produtos industriais mantêm-se altos e a estrutura agrária permanece intocada.

As consequências aí estão: o mercado interno não se amplia, porque a vida encarece e a população rural continua incapaz de consumir; não dispondo de mercado, a indústria não prospera, nem eleva seus padrões técnicos e tem de apelar, continuadamente, para a proteção oficial; finalmente, a agricultura, incapaz de se estabilizar em alto nível dentro do seu velho arcabouço, prossegue irremediavelmente no caminho da degradação. Fecha-se, assim, o círculo vicioso: no plano econômico, agricultura rotineira e decadente, indústria atrasada e onerosa, uma e outra empobrecendo sistematicamente o país; no plano político, sobrevivência do  “coronelismo”, que falseia a representação política e desacredita o regime democrático, permitindo e estimulando o emprego habitual da força pelo governo ou contra o governo.

Talvez haja imprecisões se quisermos transportar ipsis literis as conclusões de Nunes Leal para os dias de hoje. Entretanto, é inequívoca a necessidade de uma profunda alteração da estrutura fundiária no Brasil, muito além da política de assentamentos do último período. Do combate à inflação ao desempoderamento das velhas oligarquias, as forças políticas que defendem um projeto minimamente autônomo de desenvolvimento devem ter a reforma agrária em sua agenda prioritária. O aprofundamento da democracia e a superação dos golpes do passado, do presente e do futuro dependem desta agenda.

Gustavo Noronha é economista do Incra.

Redação

8 Comentários

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  1. Tá faltando um Napoleão na área. ..
    Com uma ruptura brusca no modus vivendi da nossa casa grande, com certeza o neo-D. João abriria novamente as porteiras do atraso para o desenvolvimento necessário. ..
    Essa pseudo elite só está por cima nos dias de hoje porque, ” mierda ” nunca afunda!

  2. Reforma agrária é coisa do passado

    Reforma agrária é coisa do passado, e isso até o MST já percebeu, tanto que forma militantes, e não agricultores. O Brasil tem 20% da população vivendo no campo. É muito. Um país desenvolvido típico tem menos de 5% da população vivendo no campo. Nossas massas pobres têm que ser incluídas em modos de produção urbanos, na construção, na indústria, nos serviços. Não dá mais para viver como pequeno agricultor, a menos que se queira viver de roçados de subsistência. A produção de alimentos no Brasil é farta, e os hortifrutis são baratos. O agronegóco brasileiro é dos mais eficientes, e garante nossas divisas de exportação. A solução para o problema do Brasil não está no campo, porque o problema também não está lá.

    1. O que esperar …

      de alguém que trabalha no INCRA? Órgão que nem deveria existir mais?

      Não só o percentual da população que vive no campo ainda é alto no Brasil, como ele tende a cair ainda mais, por conta da automatização na agricultura. Estamos no limiar de um novo salto de produtividade no agronegócio, com o uso de sensores, drones, veículos autônomos e outras tecnologias que 1. trarão ganhos de escala a propriedades maiores e 2. reduzirão ainda mais a demanda de mão-de-obra na agricultura.

      Ademais, nas entrelinhas o autor do texto está propondo uma reforma agrária “revolucionária” (que exproprie terras de grandes produtores, pois só assim seria possível diminuir o tal “coronelismo”). No entanto, quem disse que as novas “pequenas propriedades” vão idilicamente passar a plantar arroz e feijão ao invés de soja e cana? Agricultores, grandes ou pequenos, são movidos por incentivos, e o mercado é em última linha responsável por ajustar a oferta à demanda. A alta nos preços do feijão estimulará o plantio, não interessa se o agricultor é grande ou pequeno – simples assim!

      O Brasil deveria ter feito uma reforma agrária em 1888, quando acabou a escravidão. Além de dar uma base muito melhor ao desenvolvimento do país no século XX, talvez hoje em dia nossas favelas seriam muito menores, e sequer precisaríamos de uma política de cotas … infelizmente não dá para voltar no tempo, portanto o dinheiro que o país ainda gasta com reforma agrária (e com estruturas paquidérmicas como o INCRA) seria muito melhor aplicado em educação, saneamento e outras melhorias para as populações urbanas.

      1. Reforma agrária no Brasil

        O Incra não deveria ser extinto, mas com certeza deveria ser revisto. Suspeito que há muito desperdício lá.

        Pequenos e grandes agricultores são movidos pelas leis do mercado, a menos que queiram permanecer como figurantes que montam barracos de lona e vivem de cestas básicas distribuídas pelo governo. A agricultura familiar só é economicamente viável se plantar algum produto que tenha alto valor por hectare, tipo frutas, mas já há bastante oferta desses produtos por aí. Feijão também é muito barato, e nada indica que seu preço vai subir além das variações sanzonais. Soja e cana só são viáveis em grandes propriedades, pois têm valor agregado muito baixo, e requerem mecanização. Por isso que eu não acredito que se tivéssemos feito reforma agrária em 1888 estaríamos melhor hoje: quase todos os nossos produtos só são viáveis em grandes propriedades, desde o tempo do café. Com certeza os assentados acabariam por vender seus lotes a fazendeiros e se mudariam para as cidades, tal como acontece hoje. Ou então viraríamos um grande Haiti, que destruiu sua estrutura fundiária após a independência feita por revolta de escravos, e tornou-se um país de agricultura primitiva que destruiu praticamente todas as suas floresta nativas (compare com a vizinha República Dominicana).

        Reforma agrária é um atavismo que vem desde os tempos coloniais. Precisamos tirar essa ideia da cabeça, é como um dente de leite que temos que arrancar se quisermos crescer. Os novos países emergentes da Ásia importam alimentos e exportam chips de computador.

  3. O Brasil…

    Para lançar um pouco de luz e tirar o bolor e a poeira sobre este assunto de reforma agrária com um mínimo de inforrmação mais atual e mais embasada sobre a agropecuária nacional indico lerem as matérias de um certo Rui Daher num certo porta da internet chamado GGN

  4. Afora o típico argumento dos

    Afora o típico argumento dos “moderninhos” que acham antiquado tudo que contenha as palavras satânicas “classes”, “mais valia”,”capitalista”, “proletário”, “reforma agrária” e “Marx”, a gente só precisa ver o tanto de gente que morre tentando se manter na SUA terra (dezenas de pequenos agricultores mortos só em RO neste ano) pra perceber como é necessário arrancar das mãos dos coroneís do agrotóxico, da soja pra chinês e do boi pra europeu (que só fazem empobrecer o solo e trocar mata amazônica por pasto) terras para quem de fato precisa. E, também, uma boa parte das devolutas, por que não?

    Ah, mais aí vêm os “moderninhos” e acham que dando terra pra uma família do MST eles têm que fazer brotar do chão maquinário, insumos, técnicas, fertilizante, estrutura de irrigação e de moradia.. aí quando, sem apoio nem financiamento nenhum, aquilo vira um barracão (o que, somado aos pistoleiros – fartos aqui na minha RO, e em quase todo lugar – faz com que eles tenham que vender ou deixar a terra), tem-se aí um argumento para a “preguiça e indolência natural ao campesino”, e, claro, o aumento do ódio aos malditos “esquerdocomunobolivariomsterroristas!!!111”

    Meus queridos, esse tão decantado agrotóxiconegócio te faz comer 6 quilos de veneno por ano pra enriquecer “boi gordo”. Nos submete à vergonha de exportar soja sequer filtrada das impurezas e importar tofu. Nos faz aqui em RO, só pra citar exemplos de quem ainda tem mata e ar puro pra proteger e enlutar-se quando é queimada, ter que pagar 30 contos num quilo de corte ruim de boi, num estado que tem 10 bois pra cada habitante, porque o barão quer ganhar em euro! Seja midiota, seja ideologiota, seja até agroidiota, mas não seja “idiota idiota”.

    1. Não é a “sua” terra

      Esse pessoal não morre tentando se manter na SUA TERRA, eles morrem tentando manter A TERRA, que só é sua conforme seu juízo particular. Infelizmente para eles, os latifundiários têm razões equivalentes para acreditar que a terra lhes pertence. É preciso deixar a terra nas mãos de fazendeiros profissionais capazes de produzir para o país, ao invés de ressuscitar o faroeste no século 21 só para conservar românticas fantasias socialistas. O pessoal sem terra tem que ser incluído em outros setores da economia, mesmo porque não existem somente os sem terra – também há os sem botequim, os sem banca de jornal, os sem barbearia, os sem escritório e por aí afora. A terra é apenas um entre muitos meios de ganhar a existência, e como os demais, sua viabilidade depende do mercado existente.

      É claro que maquinário , insumos, técnicas e fertilizantes não brotam do chão, mas dar tudo isso para milhares de pequenos fazendeiros fica inviável. Mais barato sai pagar um salário-desemprego, o que aliás já vem sendo feito pelo bolsa-família. A verdade que ninguém quer admitir é que a produção em larga escala não é viável para pequenos produtores.

      Se não fossem os quilos de veneno que o agronegócio me faz comer, as pragas dizimariam a plantações, e para se obter a mesma produção, seria necessário cultivar uma área muito maior, destruindo muito mais a natureza.

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