O prêmio Nobel para Lygia Fagundes Telles, por Walnice Nogueira Galvão

O prêmio Nobel para Lygia Fagundes Telles

por Walnice Nogueira Galvão

Romancista e contista, Lygia Fagundes Telles é um fenômeno raro: não há muitas pessoas que possam se vangloriar de mais de 70 anos de produção literária contínua. É só fazer as contas, pois desde sua estreia em 1938, aos 15 anos, com a coletânea de contos Porão e sobrado, cuja publicação o pai financiou, nunca mais parou. Aos poucos, foi criando para si um lugar especial no nível mais elevado da literatura de língua portuguesa, forjando um estilo próprio, inconfundível.Tornou-se perita no discurso indireto, rente e colado à “consciência” – consciência fictícia, é claro – dos personagens.

Em suas mãos, a linguagem é instrumento dócil, maleável, no brilho surdo do recato e da discrição. Predomina a verrumação psicológica, principalmente no que concerne às conexões entre as pessoas, conexões ou meio emperradas ou sujeitas a atrito, ambas as possibilidades tratadas com ironia. Protagonistas e meio social prediletos são a burguesia e a pequena burguesia, com incursões de preferência pelos meios intelectuais e artísticos, que conhece tão bem. É um universo urbano – pode-se dizer até paulistano.

Lygia pertence a uma linhagem em nossa literatura que vem de Machado de Assis – crítica, velada, expressa no bom português de quem escreve bem e toma a literatura a sério. Nunca facilitou e nunca mostrou-se sujeita a modas. Seu lugar na literatura brasileira é da maior dignidade, e ela veio para ficar.

Costuma-se colocá-la num trio de contemporâneas que imperaram num certo período, juntamente com Clarice Lispector e Hilda Hilst. Mas estas duas são mais heterodoxas que Lygia (não esquecer que esta descende de Machado de Assis). Clarice arrisca mais na pesquisa de linguagem e na introspecção das personagens. Já Hilda estoura todos os limites e se aventura na experimentação de gêneros literários: faz poesia, faz prosa, faz teatro, faz coisas difíceis de classificar – e não tem nada de recatada ou discreta, muito pelo contrário. Enfim, as três seriam o orgulho de qualquer literatura, e não só da brasileira. Três beldades, um trio que marcou época: Lygia de formosura clássica, latina, a morena paulista de olhos negros e cabelos combinando; Clarice a beleza exótica, uma eslava de malares salientes e olhos puxados; Hilda mais clara, mais loura, mais nórdica, para quem Vinicius de Moraes compôs o “Poema dos olhos da amada”, que começa assim: “O´ minha amada, que olhos os teus/ São cais noturnos cheios de adeus…”.

Quanto ao Prêmio Nobel, de que se anda falando para Lygia: ela merece há tempos, mais até que tantos agraciados. E ela já ganhou todos os prêmios brasileiros possíveis, bem como o Camões binacional, galardão para o conjunto da obra daqueles que escrevem em português.

Enquanto isso, Lygia continua na boa companhia dos não contemplados. O prêmio criado por Alfred Nobel, o inventor da dinamite – dizem que por remorso pela invenção – distingue cientistas de várias categorias; e, afora escritores, também há um “da Paz”. Atribuído pela primeira vez em 1901, não tomou conhecimento daqueles que são por unanimidade tidos como os dois maiores romancistas do século XX, Marcel Proust e James Joyce. Tolstoi, autor do monumental Guerra e paz, é do século anterior; mas, longevo, ainda viveria vários anos após a instituição do prêmio, que perdeu a chance de ser-lhe conferido. Dentre outros gigantes reconhecidos, nem Kafka, nem Zola, nem Jorge Luis Borges tiveram a honra. Em compensação, muitas mediocridades notórias o receberam – e aqui é melhor não citar nomes. Observou-se ainda que a maioria dos premiados é constituída por homens brancos, enfatizando a relutância, que tendeu a diminuir nas últimas décadas, em premiar mulheres, negros, árabes, asiáticos, bem como certas minorias.Mas sem dúvida é o maior prêmio literário do mundo, e a importância em dinheiro que o autor recebe ultrapassa um milhão de dólares, o que não é de se desprezar.

E entre seus incontáveis méritos, a obra de Lygia inspira respeito pela coerência, pelo estilo próprio, pela seriedade, pelo compromisso com a literatura.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

 

Walnice Nogueira Galvão

7 Comentários

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  1. A premiação é da Academia

    A premiação é da Academia Sueca e não veja em que uma campanha no Brasil a influencia.

    Quanto à falta de premios à minorias, trata-se de criterios da Academia Sueca , não cabem cotas politicamente corretas.

    1. Eu também não sei o motivo da matéria, mas…

      Suponho que ela esteja em vias de ser indicada por um ganhador porém o texto não menciona. Tradicionalmente, a academia sueca respeita a indicação de outros laureados. Foi assim com os irmãos Vilas-Boas e com Zilda Arns. Vale ressaltar que, desde o mal estar causado pelo caso Cesar Lattes, unanimidades brasileiras, como Carlos Drumont de Andrade, deixaram de receber o prêmio. É uma suposição com forte pitada de certeza.

      1. Não confunda Premio Nobel da

        Não confunda Premio Nobel da Paz  (Villas Boas e Arns) com Premio Nobel de Literaura e de Fisica (Cesar Lattes), os criterios de cada Premio são diferentes.

  2. Machado também não recebeu. E

    Machado também não recebeu. E merecai, como muitos outrosauotres brasileiros. É um problema editorial, diplomático, e de preconceito: neste mundo eurocêntrico, o Brasil não conta. A não ser como republiqueta, bunda, futebol e praia.

     

     

  3. Prêmio de país rico para

    Prêmio de país rico para cidadão de país rico. Mas um dia premiarão um brasileiro também, pois querem que a premiação seja reconhecida como de carater mundial, o que nunca foi de fato.

  4. Como bem disse Eric Hobsbawn

    Como bem disse Eric Hobsbawn em um de seu quarteto das “eras” (não me lembro especificamente qual), os critérios políticos no prêmio nobel são determinantes.

    Deram o prêmio a José Saramago (que, não bastasse escrever em português, ainda era notório comunista) porque simplesmente era impossível não fazê-lo. Idem para G. G. Márquez.

    As injustiças do Nobel são flagrantes e históricas: Machado de Assis, Jorge Amado, Mario Benedetti, Eduardo Galeano, Jorge Luis Borges, etc.

    E estas injustiças por vezes afetam até europeus, como Umberto Eco, ou que lá residem há muito, como Salman Rushdie. Este último ainda tem chance de ganhá-lo, é claro.

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