O romance de Umberto Eco que explica a imprensa, por Luiz Zanin Oricchio

Umberto Eco. Referência à hipócrita sociedade italiana e à sociedade de vários pontos

‘Número Zero’, de Umberto Eco, é um romance simples apenas na aparência

LUIZ ZANIN ORICCHIO – O ESTADO DE S. PAULO

18 Julho 2015 | 04h 00

Novo livro do autor de ‘O Nome da Rosa’, que chega agora às livrarias, elege o mundo contemporâneo como espaço ficcional

Número Zero, novo romance de Umberto Eco, alude ao jargão jornalístico sobre as edições experimentais de um novo periódico. Estes números experimentais são feitos apenas para uso interno, para ver “como ficam”, são mostrados a anunciantes e, em tese, passam despercebidos do público-alvo, os futuros e hipotéticos leitores. 

Em sua trama, Eco reúne uma esdrúxula equipe editorial, formada por Colonna, um tradutor de alemão e ghost-writer na casa dos 50 anos e sem nenhuma perspectiva profissional pela frente; Maia, uma jovem redatora de gossips, cuja única e frustrante experiência se deu num semanário sensacionalista; um repórter experimentado, Braggadocio, dado a teorias de conspiração, e por aí vai. O chefe vem a ser um antigo professor universitário, Simei, por acaso incumbido por uma pessoa influente dos meios de comunicação, o comendador Vimercate, de fundar esse novo periódico. A época histórica é 1992, ano particular para a Itália, no qual teve lugar a operação Mani Pulite (Mãos Limpas), espécie de Lava Jato deles, que provocou prisão de poderosos e ricaços, mas também causou a debacle da classe política italiana. Na esteira da esperança provocada pela operações Mãos Limpas, surgiu a figura de Silvio Berlusconi, como salvador de uma Itália falida. 

Há uma particularidade a respeito do Amanhã, título escolhido para o jornal: é que ele não está destinado a circular. Ou seja, não deve ultrapassar o período experimental. A ideia (que apenas dois dos membros da equipe conhecem no início) é produzir “números zero” tão acintosamente reais que, espera seu idealizador, as pessoas ameaçadas se sintam compelidos a pagar (em dinheiro ou influência política) para que a publicação jamais venha à luz. 

Nesse ponto, Número Zero revela-se um sarcástico anticompêndio jornalístico, descrevendo práticas que bem podem servir de carapuça para parte da imprensa contemporânea. Discute-se, por exemplo, como produzir acusações vagas, e sem provas, de modo que certas pessoas se sintam intimidadas, mas não consigam processar o jornal por difamação. Não se trata, ensina o chefe, de contar mentiras, mas de distorcer a realidade apenas relatando verdades. 

Por outro lado, o editor ensina como manter a tradicional separação jornalística entre opinião e noticiário, mas, ao mesmo tempo, contaminar a reportagem e torná-la também opinativa e obediente à linha do jornal. Observem os grandes jornais de língua inglesa, diz à sua equipe, como inserem declarações de testemunhas em meio ao texto, ou seja, colocando o ponto de vista do jornal na boca do entrevistados. Por exemplo, há um fato “X”, que precisa ser noticiado, digamos, a queda de um viaduto, que provocou um acidente fatal. Uma primeira pessoa é ouvida, e lamenta a morte do motorista, mas diz “que nada podemos fazer quando chega a nossa hora”. Ouve-se também outra testemunha e esta afirma que todos sabiam que o viaduto estava em mau estado de conservação e um acidente desse tipo era previsível, pois as autoridades não ligam a mínima para a segurança das pessoas. Por quem os leitores se inclinarão? Para o conformista, que julga o destino responsável por tudo, ou por aquele que faz uma crítica, justificada ou não, a alguma autoridade? Desse modo, sutilmente, a publicação consegue colocar numa reportagem factual, na qual pessoas do povo são ouvidas, a sua própria opinião a respeito do assunto. 

Número Zero, em boa parte de suas 240 páginas, é marcado por passagens como esta, escritas por quem conhece muito bem a sociedade onde vive e os mecanismos de controle e persuasão por ela encontrados para que determinados grupos se mantenham no poder. Ensaísta e semiólogo brilhante, Eco não se impressiona com as virtudes da transparência e sabe que, mesmo nas sociedades mais livres, existem zonas de opacidade muito extensas, em especial no que tange às esferas do poder político e econômico. 

Desse modo, faz muito sentido que, no interior desse grupo de trabalho para um periódico destinado a jamais ver a luz do dia, surja uma complexa teoria da conspiração que, imagina um dos redatores, poderia ser levada a público em uma série de reportagens especiais do Amanhã. De acordo com essa teoria, o homem fuzilado e pendurado pelos pés em Milão no final da Segunda Guerra Mundial não seria o líder fascista Benito Mussolini, mas um sósia. O verdadeiro Duce teria conseguido escapar para a Argentina, onde se preparava para voltar oportunamente à cena, como um Messias.

Naturalmente, essa volta em triunfo seria apoiada por forças anticomunistas, como a Máfia e o Vaticano, amedrontadas pela ameaça da União Soviética ao “mundo livre e cristão”. O plano, claro, gorou com o fim da Guerra Fria e o desmoronamento do campo socialista. 

Como toda teoria da conspiração, também esta tem como material de construção pessoas e fatos históricos reais. Além do Duce, a sempre presente Máfia, a Loja P2, o Banco do Vaticano, a morte suspeita do papa João Paulo I, os grupos de luta armada de esquerda infiltrados por agentes de extrema direita, além de políticos muito conhecidos por suas relações perigosas, como o todo-poderoso primeiro-ministro Giulio Andreotti, apelidado pelos italianos de “Il Divo”. O próprio magnata das comunicações, que finge criar um periódico “porta-voz da verdade” para assustar e chantagear seus desafetos políticos, é baseado em Carmine Pecorelli, que editava um boletim com notícias ameaçadoras enviadas aos poderosos e terminou seus dias com quatro disparos de pistola numa rua de Roma. 

Teorias conspiratórias usam fatos e pessoas reais; apenas refazem as relações mantidas entre elas de modo a propor uma nova interpretação da História. Nesta nova versão, tudo se encaixa e não sobra espaço para o acaso, como nas construções paranoicas. Isso não quer dizer que muitas delas não possam ser verdadeiras. Esta, pelo menos, a da ficção de Número Zero, se mostra tão eficiente que acaba por provocar estragos variados, como o leitor de Eco verá. 

Tratado por alguns críticos como “obra menor”, Número Zero é um romance simples apenas em aparência. De fato, ele não exibe a complexidade formal de obras anteriores de Eco, como O Nome da Rosa ou O Pêndulo de Foucault (seu romance favorito, como tem dito em entrevistas). Em compensação, revela mais fluência que o anterior, O Cemitério de Praga, e tem a virtude de eleger o mundo contemporâneo como espaço ficcional. Inútil dizer que a luz lançada por Número Zero sobre a hipócrita sociedade italiana pode também iluminar outras situadas em pontos diferentes do planeta, inclusive abaixo do Equador. É o que dá a entender o desalentado diálogo entre Maia e Colonna nas páginas finais do romance. 

 

Luis Nassif

3 Comentários

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  1. Sérgio Dávila
    Ainda sobre os

    Sérgio Dávila

    Ainda sobre os imbecis

    SÃO PAULO – No Natal de 2013, a assessora de imprensa Justine Sacco, então com 30 anos, digitou 47 letras em seu celular, apertou “tuitar”, desligou o aparelho e embarcou em uma viagem de avião de Nova York para a África do Sul. Os destinatários eram seus 175 seguidores na rede social.

    A frase: “Going to Africa. Hope I don’t get AIDS. Just kidding. I’m white!”(“Indo para a África. Espero que não pegue Aids. Brincadeirinha. Eu sou branca!”).

    Onze horas depois, ao aterrissar, soube que seu post tinha se tornado viral e sido compartilhado por dezenas de milhares de pessoas. Fotógrafos já a esperavam no aeroporto. Desde então, perdeu o emprego e amigos, ganhou uma depressão e enquanto houver Google terá seu nome ligado a uma brincadeira racista.

    A história está no livro “So You’ve Been Publicly Shamed” (“Então Você Foi Humilhado Publicamente”), lançado em março, em que o autor, Jon Ronson, conta este e outros casos de pessoas que tomaram decisões erradas e as viram ser amplificadas e sair de controle pela velocidade e o alcance da internet.

    Ronson, mais conhecido pelos livros “O Teste do Psicopata” e “Os Homens que Encaravam Cabras” (que virou um filme divertido com George Clooney), argumenta que os deslizes cometidos pelos tais publicamente humilhados do título ganham uma reação desproporcional graças ao tribunal implacável e o comportamento de manada das redes sociais.

    É verdade.

    Mas quem erra em geral é gente que, colada 24 horas por dia em seus celulares, já não sabe mais discernir o privado do público, confunde o real e o virtual. Faz parte do grupo sobre o qual falou o escritor italiano Umberto Eco no discurso em que critica a internet, tema desta coluna no domingo passado.

    Eco os chamou de “legião de imbecis”

  2. Então………………………………..

    Humberto Eco somo semdpre na môsca !!! ” E para complementar, retiro do texto : “Isso não quer dizer que muitas delas não possam ser verdadeiras.”

    Podemos ou não achar que Eco faz ficção, mas seus romances, entrelaçados de acontecimentos ficcionais, está mais para reais, muito embora os que combatem os teóricos da conspirações sempre queiram desacreditá-lo.

    Serão sempre vitimas do sistema, pois põem o dedo nas feridas das instituições e indiretamente dão nomes aos que sempre manipulam as manadas!!

    Haja visto seus companheiros Snowden e Assange, que amargam exilios por terem sido mais diretos em suas declarações!!

    Assim, este romance é mais um que, indiretamente nos abre os olhos para o que realmente ocorre neste ” vale de lágrimas ” !!!!!!!!!! 

     

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