Exportação no complexo de soja: passado, presente e futuro
por Mario Cordeiro de Carvalho Junior
I– Introdução
Para compreender o passado e o presente do complexo de soja e sua orientação externa no âmbito da economia brasileira é preciso identificar e analisar três etapas ou estágios de crescimento, a saber: (i) A primeira é a passagem da etapa de autoconsumo para a de trocas e consumo interno, que durou dos anos vinte ao início dos anos sessenta do século passado; (ii) A segunda etapa é a de simultânea abertura ao comércio internacional de soja, ao crescimento das vendas e do consumo interno e externo dos bens do complexo soja observada dos anos sessenta até o período da abertura comercial ocorrida em 1990; e (iii) A terceira etapa observada deste último ano até agora em 2024 é um período em que se observa o crescimento preponderante e quase único da exportação de soja em grãos em função da expansão da demanda chinesa, de um sistema de financiamento à produção e venda singular, e de um viés pró-exportador incidente para quase toda a cadeia produtiva, com exceção de empresas que não conseguem se ressarcirem dos créditos acumulados de ICMS, e dos produtores rurais que não conseguem recuperar ou se isentar do recolhimento do Funrural, incidentes nas exportações indiretas.
Para se entender essas etapas se deve atentar que a oferta de bens do complexo de soja compreende desde a atividade do cultivo da soja no campo, sua colheita e beneficiamento do grão, a aglomeração desses grãos em sacas, silos ou armazéns, o transporte até aos portos e às unidades de processamento e transformação do grão em farelo, torta e/ou óleo, e inclusive o uso do conjunto composto por farelo/torta/óleo em insumo para alimento processado ou a processar via abate preponderantemente de porcos e aves. Por sua vez, a demanda por esses bens é originária ou do mercado interno ou do externo.
Demais, para analisar as etapas descritas acima é preciso compreender como ocorre em cada momento histórico a potencialização e a combinação das vantagens comparativas naturais, criadas e dinâmicas que tanto alteram as forças produtivas, quanto facilita a obtenção de ganhos de comércio pelos atores que participam dessa cadeia de valor. Sem dúvida, em cada momento histórico essa potencialização resulta da combinação engendrada e realizada pelas empresas/empresários/governo das fontes de vantagem comparativa que são derivadas da existência – (i) de recursos naturais; (ii) de trabalho; (iii) de capital; (iv) de tecnologia ; (v) de economias de escala e escopo; (vi) da geografia; e ( vii) da história – associadas à redução ao longo do tempo do peso da distancia de transporte e do custo de comunicação para atender, em ultima análise, ao maxi mercado composto pelo somatório do mercado interno e externo.
Para expor esta análise esse artigo aborda na segunda seção a etapa do autoconsumo para a época de trocas e de consumo interno. A seguir, na terceira seção, se descreve a orientação externa do complexo de soja iniciado e observado na segunda etapa de simultâneo crescimento das vendas internas e das exportações, e do consumo interno e externo dos bens processados nessa atividade econômica; e, nessa seção se descreve ainda como a orientação externa se aprofunda na terceira etapa em que se observa o crescimento preponderante e quase único da exportação de soja em grãos em função da expansão da demanda chinesa, e do viés pró-exportador incidente para quase toda a cadeia produtiva do complexo de soja.
Finalmente, na quarta e ultima seção, é feita uma análise prospectiva das restrições existentes para se expandir as futuras exportações deste complexo, e são expostas sugestões de ações e medidas de política para debate e dialogo entre os atores produtores/agricultores/fazendeiros/comercializadores/industriais/governo(s) com vistas a formular uma agenda de política comércio exterior estratégica para manter e aumentar a competitividade e a inserção internacional do complexo de soja brasileiro no mundo.
II – Do Autoconsumo para Trocas e Consumo Interno
A introdução no campo e na agricultura brasileira de semente de soja vinda dos Estados Unidos; e a gradual domesticação dos frutos e do cultivo começou a ocorrer no início dos anos vinte do século passado no Rio Grande do Sul. Durante um bom período de tempo, o cultivo e a colheita da soja à época se destinavam ao autoconsumo dos agricultores familiares e/ou produtores rurais, localizados majoritariamente naquele estado.
A partir do início dos anos cinquenta do século passado se observa uma transição de um processo de cultivo de soja destinada para o autoconsumo para um processo de trocas com base no mercado. Esse processo está intimamente associado ao início e a consolidação da imigração chinesa para o Brasil, cuja presença física e numérica foi centralizada nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Eles vieram preponderantemente passando por Taiwan devido à eclosão em 1948 da Revolução Comunista Chinesa. Esses expatriados trouxeram seus hábitos culturais e alimentícios, e começaram a abrir e desenvolver atividades econômicas em lojas de comércio de bens e para fornecer alimentos, principalmente nas chamadas atualmente de “pastelarias chinesas”.
Porém, alguns desses emigrantes decidiram abrir fábricas de processamento de soja, em São Paulo e no Rio Grande do Sul visto que eram muito cultos, empreendedores, e, sabiam lidar com o chão de fábrica e com o mundo dos negócios porque suas famílias haviam sido donas de unidades industriais no ramo manufatureiro na China. Devido à variedade de grãos e sementes oleaginosas existentes à época no Brasil, essas unidades foram desenhadas para prensar qualquer tipo de semente para extrair óleos comestíveis, e gerar um subproduto da prensagem – que é o farelo ou torta.
Durante a etapa de autoconsumo para a de trocas e consumo interno, – observada nos anos cinquenta e sessenta do século passado – se deve identificar e constatar que houve, de um lado, a introdução do cultivar soja, o seu plantio, e a sua difusão entre produtores rurais ou agricultores familiares nas terras gaúchas no século passado, e, de outro lado, há o estabelecimento de umas unidades industriais para processar soja no Rio Grande do Sul, e em São Paulo.
Isso ocorre a partir dos anos cinquenta por que naquela época há o começo do florescimento das “pastelarias chinesas” que ofereciam caldo de cana e pastel ( o brasileiro e a “invenção do pastel chinês”), que, por sua vez, demandavam o óleo de soja para fritar na hora o pastel na frente do cliente. Do ponto de vista de produção industrial, manter óleo de soja quente para fritura era um processo superior e mais eficiente que o uso da banha de porco, utilizada tradicionalmente na cozinha brasileira.
Ademais, data daquela época “campanhas de saúde” boca à boca que começaram a desaconselhar o uso de banha de porco no preparo dos alimentos, no Brasil, visto que se começava a se observar uma maior incidência de ataques cardíacos na população masculina brasileira. Isso incentivou a uma natural substituição da banha de porco por óleo de soja na cozinha brasileira, o que elevou a demanda por mais soja em grão e em óleo para atender ao mercado interno. Também data daquela época uma “inovação” nos alimentos processados. Inicialmente, também por motivos de “campanhas de saúde” boca à boca se começa a observar uma substituição de manteiga de origem látcea por margarina com base em oleaginosas derivadas do complexo de soja.
Seja pelo quesito saúde, gosto, ou preço, e pela não necessidade de manter em local refrigerado visto que geladeira à época era um bem de luxo, o hábito de consumir margarina explodiu no Brasil. A produção desse alimento se concentrou em Santa Catarina, e, era vendida e transportada de lá para todo o Brasil. Isso elevou a demanda por mais soja em grão e sua transformação em torta e/ou óleo para atender ao mercado interno. E, nesse estado se começa a observar na mesma época uma demanda por farelo para uso como ração para criação de porcos ou galinhas.
Em resumo, nos anos cinquenta e sessenta do século passado há aumento de demanda por óleo de soja para fritura nas pastelarias, e de farelo/ou/torta de soja para ser utilizada como insumo em alimentos industrializados ou na engorda de aves e porcos. Logo, há justificativa e necessidade para que unidades industriais sejam implantadas. Assim, se começa a transitar de um sistema de organização social e da produção calcada no autoconsumo para um sistema de trocas simples em que há, de um lado, uma oferta de soja em grão, e do outro lado uma demanda para beneficiar essa mercadoria e transforma-la em torta/farelo/óleo.
Dai, surgem trocas simples – compra e venda entre produtores rurais e industriais -, e, introdução de moeda, contratos, “breganha”, e transporte para facilitar a relação e a interação desses atores no mercado do complexo de soja. O desenvolvimento das trocas à época ganha impulso porque a oferta de torta/farelo/óleo encontra saída, utilização e uso na demanda por alimentos processados – no caso como insumo para o beneficiamento do pastel por meio de óleo ou para a manufatura de margarina – ou para a engorda. Isso gera um encadeamento para frente e para trás na atividade econômica e permite que se fiquem as bases e os fundamentos do complexo de soja no Brasil.
Olhando sob uma perspectiva histórica se poderia também dizer que houve à época uma inovação de produto e processo na forma de organização da indústria e dos elos que compõem a cadeia produtiva e de valor da soja. Em resumo, de fato, naquela época o aumento da demanda interna, a capacidade de gerar economias de escalas, a inovação de produto e processo gerou bens diferentes e distintos fruto da economia de escopo, e a localização geográfica da oferta no eixo Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo; que junto com a consolidação de empresas/empresários viabilizou, de um lado, a conformação inicial do complexo de soja, e, do outro lado, o auge do período de autoconsumo para a de trocas e consumo interno.
III – Orientação Externa do Complexo de Soja
A segunda etapa de crescimento e expansão do complexo de soja pode ser observada do final dos anos sessenta do século passado até o período da abertura comercial ocorrida em 1990. No final dos anos sessenta é o começo da orientação externa do complexo de soja no Brasil. Naquela época há o início da entrada, exportação e entrega de produtos do complexo de soja ao exterior, junto ao simultâneo crescimento das vendas e do consumo interno e externo desses bens. De fato, durante aquele período haverá a configuração e a conformação das unidades produtivas, tanto de comercialização quanto de industrialização. Isto é um processo de “lock in com sunk cost”, que configurará de forma permanente a competividade sistêmica e a orientação externa do complexo de soja no Brasil.
Sem dúvida, naquela época – dos anos setenta até meados dos anos oitenta – se observa dois processos de potencialização das vantagens comparativas quase simultâneas, a saber. O primeiro é que foi possível atender ao crescimento do consumo interno de derivados de soja, e também cumprir simultaneamente os contratos de exportação de farelo e óleo de soja mediante o uso comedido de restrições quantitativas às exportações desses bens, acesso a recurso do Finex/Cacex para financiar as exportações e desoneração efetiva de impostos e taxas na exportação. A intervenção inteligente da Cacex durante todo aquele período viabilizou que não houvesse falta de margarina e óleo de soja nas mesas dos brasileiros, e, consolidou os embarques de grão, farelo e óleo de soja numa perspectiva de desenvolver todos os segmentos do complexo soja para obter divisas que na época eram escassas.
De forma mais precisa, na parte de farelo e óleo de soja do complexo de soja, a segunda etapa de simultânea abertura e crescimento das vendas e do consumo interno e externo funcionou bem dos anos sessenta até o período da abertura comercial ocorrida em 1990. Tudo isso mudou para o caso do farelo e do óleo de soja a partir de 1990 visto que a cobrança de ICMS oriunda de soja colhida em outros estados passou a inviabilizar o processamento e a exportação desses bens nas unidades industriais localizadas notadamente em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Inclusive, um antigo secretário da Receita Federal sugeriu que as fábricas fossem desmontadas e transportadas para áreas próximas da produção.
Além disso, os chineses não adquirem farelo ou óleo de soja porque preferem agregar valor às mercadorias compradas no Brasil nas suas unidades industriais na China. Assim, na terceira etapa do crescimento do complexo de soja observada a partir dos anos noventa até o momento atual há uma perda de dinamismo exportador e da participação das vendas de farelo e de óleo de soja no âmbito do complexo de soja.
Mas, por sua vez se observa ganhos de comércio na exportação de soja em grão tanto na segunda etapa, quanto na terceira etapa de consolidação da orientação externa do complexo de soja no país.
De fato, na segunda etapa – meados dos anos sessenta até os anos noventa – o cultivo de soja se expande do Rio Grande do Sul, primeiro para Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Depois, a difusão do cultivo leva a soja para o então Mato Grosso e Goiás, depois Bahia, Maranhão, Minas Gerais, e adentra até o sul do Pará. Há uma expansão da área cultivada com soja em todos esses estados. Há também uma migração de trabalhadores e de fazendeiros/produtores rurais/ empreendedores do Rio Grande do Sul que acompanharam essa interiorização da expansão agrícola.
Desse conjunto surgem, de um lado, trabalhadores ligados ao MST – Movimento dos Sem Terra -, e, do outro lado, produtores rurais que arrendam terras, produzem e vendem soja, utilizando moderna maquinaria; e, também, cooperados que formaram grandes cooperativas orientadas para atender ao mercado externo, e, empresários que montaram trading companies de beneficiamento de grão, exportação e escoamento de soja localizadas no então Estado de Mato Grosso, e de Goiás.
Estes últimos adquiriram habilidade de comercializar nas bolsas de mercadorias internacionais e, em alguns casos, transportar de forma eficiente e sustentável pequenos/médios volumes de soja produzidos perto à época da região do Rio Madeira, passando pelo rio Amazonas até fazer o transbordo da carga para navios graneleiros para o exterior. Isso significa uma solução local de logística.
Surge naquela época um hábito que se tornou comum entre os produtores de soja em grãos, no Brasil, que é acompanhar diariamente as cotações de preços spot e de futuro da Bolsa de Mercadorias de Chicago. Isso era feito no passado por radio e hoje por internet e serviço especializado de broadcast. O resultado é que isso servia (e) de parâmetro para a formação de expectativas acerca da evolução dos preços e, sobretudo, para decidir a área a ser plantada e o lucro esperado a ser auferido na venda e após a colheita.
Dado que nunca houve grande acesso a financiamento de silos e de armazéns para serem implantados nas fazendas e nas áreas de produção de soja em grãos, os fazendeiros e/ou produtores tinham de vender toda a produção antes ou durante o cultivo e a colheita, e contratar transporte para escoar a mercadoria, ou para o mercado interno, ou, sobremaneira, para um ponto de saída para o mercado externo.
Isso significava (e ainda significa) pico por demanda de transporte rodoviário por caminhão; área de estocagem em portos ou outros locais controlados ou determinados pelas cooperativas ou tradings, e, aglomeração e fila de navios nos portos para transportar a soja para o exterior. Grosso modo, é como se todo o ciclo de cultivo, colheita, escoamento, embarque, venda e recebimento pela soja ocorresse como num “quase“ mercado spot – em poucos meses do ano.
À bem da verdade e da história é bom frisar e lembrar que o aumento da produção de soja e da produtividade por área plantada em todas as regiões naquela época foi beneficiada pelo papel da Embrapa em descobrir e introduzir variedades de soja que se adaptaram bem as variações edafoclimáticas das regiões do então Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Bahia, Maranhão, Minas Gerais, e até no sul do Pará.
Assim, do ponto de vista do espaço territorial as regiões geográficas do então/atual Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Bahia, Maranhão, Minas Gerais, e até o sul do Pará são o lócus aonde foram formados e constituídos os atores/empresas/empreendedores/produtores do complexo de soja (grão, farelo, óleo, e processados) que há pouco mais de meio século vem combinando a e potencializando as fontes de vantagens comparativas estáticas e dinâmicas que do ponto de vista da oferta decorrem do papel da geografia e da história; e da intensidade relativa de recursos naturais, capítal, trabalho, tecnologia, e economias de escala e escopo.
Vale lembrar a titulo de curiosidade que hoje, em 2024, do ponto de vista do espaço territorial se pode plotar e visualizar os dados do complexo de soja de estoque ou dos fluxos, sejam monetários ou físicos. Isso permitiria a construção de um mapa para traçar a situação atual e os cenários futuros acerca da produção, da oferta, da demanda, e, sobretudo da relação do complexo de soja com o maxi mercado – composto pelo mercado interno e externo – com base nas informações hoje coletadas pela Receita Federal, Decex/MDIC, Inpe, Ibge, Conab, Mapa, e Ministério dos Transportes.
Voltando para a concepção analítica descrita acima se pode constatar que na segunda etapa de crescimento e expansão do complexo de soja observada dos anos sessenta do século passado até o período da abertura comercial ocorrida em 1990 há introdução de inovação tecnológica mediante novas variedades de cultivar que geram economias de escalas na produção de grão de soja. Isto incentiva uma co-evolução para a potencialização do capital ao se permitir constituir singulares unidades de comercialização externa como as cooperativas e as tradings, especializadas na commodity soja em grão.
Importante mencionar que esses atores empresariais foram quem abriram e aproveitaram a oportunidade de negócios de exportação devido ao fato de que o ciclo de produção e colheita de soja em grão no hemisfério norte ocorre no sentido inverso em termos de meses do ano ao do hemisfério sul.
Essa habilidade de negociar e ofertar e se constituir preponderantemente como cooperativa e tradings ao mercado externo é um evento – “lock in” com “ sunk cost” de uma cultura exportadora impar do agronegócio brasileiro – que permitiu que esses atores ofertassem ( e controlassem) a partir do Brasil soja em grão às chamadas sete irmãs – empresas multinacionais de commodities localizadas sobremaneira na União Europeia e na Suíça -, e vendessem e entregassem esses produtos inicialmente a essas empresas, e, posteriormente, às empresas chinesas quando essas passaram a demandar mais esse produto. Isso é uma inovação gerencial e empresarial do campo ao transporte ao porto impar no Brasil, reflexo do crescimento do tamanho das cooperativas e tradings ao longo do tempo da expansão da orientação externa do complexo de soja.
Além disso, o fato de que o escoamento da soja brasileira ocorrer no sentido inverso em termos de meses da soja norte-americana há disponibilidade e interesse de negócios no sentido de que as agências de navegação e os armadores internacionais escalem a vinda de graneleiros em alguns portos do Brasil para escoar a soja para o exterior. Tudo isso mostra que na segunda etapa de consolidação do complexo de soja no tocante sobremaneira à soja em grão há uma simultânea abertura e crescimento das vendas de exportação e do consumo externo de soja em grãos observada dos anos sessenta até o período da abertura comercial ocorrida em 1990. Por sua vez, em linhas gerais, isso gera uma conformação quase permanente da estrutura empresarial e da orientação externa do complexo exportador de grão de soja, válida até hoje em dia.
A partir dos anos noventa até o momento presente surge um novo impulso e um incentivo maior às vendas externas de soja em grão aonde há viés pró-exportador incidente para quase toda a cadeia de valor de soja. Daquela época até o agora há ainda o crescimento preponderante e quase único da exportação de soja em grãos em função da expansão da demanda chinesa, alicerçado a um sistema de financiamento à produção e venda singular – característico do complexo de soja.
Em linhas gerais esse sistema de financiamento se estrutura a partir da lei 8.171 de 1991 que dispõe sobre a política agrícola, e, cria o chamado plano safra com base no direcionamento de crédito a partir de um volume de depósitos à vista e à prazo existentes no sistema monetário para o setor agropecuário, em geral, e, em particular para o complexo de soja. Naquela época, ao menos durante uma quinzena de anos, no caso de exportação, houve a estruturação de operações de pré-pagamento das exportações do complexo de soja feitas pelas tradings companies junto ao mercado financeiro internacional visto que essas empresas tinham ordem de compra firmes, sobretudo das chamadas grandes operadoras/compradoras de soja e inclusive das demais empresas comerciais de commodities localizadas na União Europeia e na Suíça.
Cabe destacar, que durante aquele período, de um lado, as vendas de soja para a União Europeia perdem relevância e participação nas vendas externas do Brasil, e, de outro lado, surge uma co-dependência entre o aumento das compras de soja em grãos pela China e o aumento do volume e da produtividade por hectare de soja com a necessidade de “supplier credit” em reais para financiar a produção para embarque quase imediato logo após a colheita. Vale ressaltar ainda que quando a soja em grãos é vendida e posta livre e com os documentos ao longo do costado do navio ou no porto, o chinês paga à vista contra a entrega e o embarque da mercadoria na moeda acordada na negociação entre as partes – normalmente o dólar
Isso incentivou a conformação de um sistema de “trade and supply chain finance “ singular e dual, único no mundo. De um lado, para pagar pelo arrendamento das terras para se plantar soja, os empreendedores/produtores rurais “convencionaram” que o pagamento pela renda da terra ao fazendeiro dono da terra por safra seria feito por meio de um número fixo de sacas de soja por hectare. Esse “acerto e contrato” incentivavam que quanto maior fosse a produção (e a produtividade) maior seria a lucratividade obtida pelo arrendatário pelo “leasing” da terra. De forma simplista, adição de fertilizante no cultivo gera aumento da produção e da produtividade. Com base nessa lógica “fuzzy” se instituiu uma operação de “barter trade” aonde o fertilizante que é o insumo que mais pesa no custo variável no cultivo da soja passou a ser “adiantado” pelas empresas multinacionais de fertilizantes – (ou às vezes a própria empresa exportadora comercializadora e também às vezes tradings multinacionais) – ao produtor (arrendatário da terra) de soja em grão contra a entrega na hora da colheita de um número XX de sacas de grão de soja.
Por sua vez, esses conglomerados passaram a contratar empresas de consultoria para monitorar e acompanhar a evolução do processo de plantio, cultivo, crescimento, colheita, venda e entrega da soja para assegurar o recebimento do quinhão que cabia às multinacionais no processo de produção. Interessa ressaltar a metodologia usada por essas empresas de consultoria no sentido de “monitorar e estabelecer um trade score” para cada produtor com base num mix de métodos de busca de informação feita desde o uso de imagens de satélite até visitas às fazendas. Hoje, elas também conseguem obter dados qualitativos e quantitativos combinando imagens de satélites com “smart devices”, e acompanhar o crescimento desde o cultivo e do uso do gotejamento da semente quando há irrigação até a colheita. Além disso, conseguem delimitar os talhões da propriedade rural usadas para o cultivo de soja, e as cotas de reserva ambiental ( CRA).
Esse mix de métodos permite acompanhar desde o crescimento da planta até a colheita num contexto de agricultura de precisão. Com esse big data, e com um inteligente trabalho de estatística (talvez maior em breve com inteligência artificial, deep learning associado ao blockchain ) se pode hoje, de um lado, ter projeções e estimativas confiáveis de volume de safra para se melhorar a tomada de decisão para operar em bolsas de mercadorias. De outro lado, as equipes de vendas de fertilizantes podem discriminar preços nas negociações com os produtores de soja, extraindo um excedente econômico um pouco maior notadamente nas áreas com histórico de maior produtividade.
Cumpre destacar ainda que se houvesse hoje um cruzamento e combinação desses dados e informações privadas com os dados públicos hoje coletadas pela Receita Federal, Secex/MDIC, Inpe, Ibge, Mapa, e Ministério dos Transportes se poderia subsidiar a tomada de decisão pelos policy makers, investidores, produtores e sobretudo a classe politica e o Governo de como lidar com os nódulos de logística, tributos e sustentabilidade implícitos na nova relação em conformação do complexo de soja com o mercado externo, inclusive com o mercado Chinês e/ou Europeu.
Ao lado desse sofisticado “barter trade”, surgiu um mercado de letra de crédito do agronegócio (LCA). O desenvolvimento desse mercado facilitou, de um lado, que recursos financeiros fossem captados e transladados de forma inteligente no direcionamento de crédito imposto pela lei 8.171 de 1991, notadamente dos bancos comerciais para os agricultores/tomadores de credito rural.
De outro lado, em função da atratividade do agronegócio a difusão e o uso da LCA permite atrair investidores privados que, por sua vez, criaram alguns veículos de operação estruturada tipo fundo de investimentos Fiagro (Fundos de Investimentos em Cadeias Agroindustriais) para ofertar crédito aos agricultores.
Isso permitiu, de um lado, que muitos bancos reduzissem suas carteiras de crédito rural, e, assim não têm de avaliar e estabelecer trade score para um “empresário/produtor rural” que opera seus negócios como base no seu cpf – cadastro de pessoa física – para efeitos contábeis e fiscais. De fato, contabilizar pessoa física como atividade empresarial para efeitos de análise de concessão de crédito torna “opaca” a elaboração de demonstrações contábeis simples (como DRE) para avaliação de risco. Isso afasta de forma implícita atores do sistema bancário a operar nessa área de crédito rural, principalmente se esse segue bem os princípios de basiléia.
Por sua vez, as operações estruturadas com base nos instrumentos do mercado de capital – tipo LCA num FIAGRO – facilitam a condução e o fluxo de crédito entre tomador e investidor. Essa facilidade devido a menor redução de avaliação de risco e retorno da atividade econômica incentiva uma maior instabilidade e fragilidade financeira desses instrumentos e de suas instituições. Historicamente isso leva a crises, como ocorreu recentemente com a quebra e a frustação de safra no ano passado devido às más condições climáticas.
De fato, a perda de volume na produção colhida na safra passada e da renda do complexo de soja revela a pressão da instabilidade financeira pré-existente, visto que muitos produtores rurais buscaram proteger os seus ativos via o uso do instrumento de recuperação judicial. O não monitoramento claro das operações estruturadas por parte dos emissores das LCA em Fiagro está levando a proposição hoje que haja modificação na estrutura legal para melhorar a supervisão desses fundos, seja pela CVM ou/e pelo Bacen.
E, para reduzir os riscos associados às variações climáticas, os produtores rurais devido à sua importância e voz na formulação do Plano de Safra solicitaram maior provisão de recursos públicos para bancar o seguro rural. Por razões orçamentárias e sem espaço fiscal, o governo federal não conseguiu atender a esse pleito, e, apesar de seguro rural não dever ser totalmente coberto por recursos públicos por princípios de seleção adversa, o Plano de Safra atual – apesar dos altos volumes de recursos aportados – vem sofrendo críticas pelas entidades representativas do setor acerca do desenho das prioridades elencadas.
Todavia, por outro lado, cabe mencionar que os produtores rurais que exportaram de forma indireta soja em grão por meio de cooperativas ou tradings companies têm de serem ressarcidos por cobrança indevida no calculo da parcela relativa à exportação no recolhimento do Funrural. Dado que não se sabe por produtor individual o volume de soja que é destinada ao mercado interno e externo não há consenso de como a União irá ressarcir aos produtores rurais de soja. Isso é um haver (vultoso) a receber pelos agricultores que virará talvez precatório.
Mobilizar esses recursos para financiar e dar competitividade aos produtores de soja deveria ser uma prioridade, e para isso seria importante ter dados dos últimos cinco anos para traçar a evolução dos estoques comercializados interna e externamente pela combinação das entradas e saídas observadas nos estabelecimentos dos produtores rurais e das cooperativas e tradings com o maxi mercado – composto pelo mercado interno e externo. Esses dados em tese existem e estão nas informações hoje coletadas pela Receita Federal, Secex/MDIC, Conab e Ibge. Caso os dados públicos fossem cruzados se definiria parâmetros a maior e a menor de volume e de imposto recolhido para o Funrural.
E, por decisão do Governo Federal este poderia ressarcir o que é devido aos produtores rurais visto que essa querela já foi transitada e julgada pelo STF desde que os mesmos criassem ESC – empresas simples de crédito – para que os produtores rurais financiassem suas compras de insumos visto que o ressarcimento do imposto cobrado a mais pela união serviria para compor o capital próprio da ECS. Essa medida reduziria em parte a instabilidade financeira inerente ao mercado de crédito para o complexo de soja.
Além disso, à proporção que se observou a partir dos anos noventa uma maior orientação externa do complexo de soja – ou seja, o coeficiente de exportação de produção de soja exportada em relação ao total de soja produzida vem crescendo – quase simultaneamente se começou a verificar o aumento do acumulo de ICMS nas exportações nos balanços das cooperativas e das tradings contra os governos estaduais aonde há unidade de beneficiamento ou comercialização de soja com cnpj – cadastro nacional de pessoa jurídica – e escritura contábil própria. Ao longo do tempo na medida em que não há ressarcimento desses recursos por parte dos governos estaduais às empresas exportadoras, o valor que consta nos balanços contábeis dessas firmas acaba virando uma rubrica do tipo devedor duvidoso, sobretudo, no balanço das unidades comercializadoras ou das tradings.
De um lado, espera-se que na nova reforma tributária haja uma solução para esse passivo escondido de modo que esse contencioso tributário venha ser pacificado. Por outro lado, dado os volumes de recursos envolvidos nos acúmulos passados e futuros, vale lembrar que há propostas de representantes dos governos estaduais de instituir um tipo imposto de exportação “estadual“ para fazer frente corretamente, em parte, à necessidade dessas unidades estaduais terem base de incidência de taxação para financiar suas obrigações estaduais. De fato, do ponto de vista de incidência tributária e de acordo com a OMC se deve assegurar a não incidência de impostos indiretos no produto final a ser exportado na hora da saída do produto do território nacional, e, não ressarcir o exportador por haver acumulo de créditos entre períodos contábeis.
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Em resumo, se pode sintetizar que a orientação externa do complexo de soja se iniciou nos anos sessenta do século passado aonde se constatou um simultâneo crescimento das vendas internas e das exportações. Essa orientação externa se aprofunda de 1990 até hoje em que se observa o crescimento preponderante e quase único da exportação de soja em grãos em função da expansão da demanda chinesa, e do viés pró-exportador da cadeia produtiva do complexo de soja. Apesar da fruição desse viés em termos tributários não ser total se constata que os atores – empresas, empresários, produtores rurais, e agricultores – ao longo de um período de quase setenta anos transformam o campo brasileiro mediante a potencialização e a combinação das vantagens comparativas naturais, criadas e dinâmicas que tanto alteram as forças produtivas, quanto obtém ganhos de comércio e “criam” uma orientação externa singular dessa cadeia de valor na atividade econômica brasileira.
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IV – Em busca de uma agenda de política comércio exterior estratégica
Do exposto até aqui se constata a orientação externa do complexo de soja no Brasil se alicerçou em dois pilares, a saber: O primeiro é o incentivo e a manutenção de um viés pró-exportador incidente para quase toda a cadeia de valor de soja, com exceção dos produtores rurais que não conseguem recuperar ou se isentar do recolhimento do Funrural, e das unidades de beneficiamento e comercialização e de industrialização que não conseguem recuperar totalmente os créditos acumulados de ICMS nas exportações. O segundo é que há uma inovação gerencial e empresarial do campo ao transporte ao porto impar no Brasil – reflexo do crescimento absoluto e relativo do tamanho da renda e dos impostos diretos recolhidos – das cooperativas, tradings, indústrias, produtores rurais e até agricultores familiares – que potencializam (ram) as fontes de vantagens comparativas existentes no território do Brasil, e obtiveram ganhos de comércio ao exportarem seus produtos e viabilizaram de fato ao longo do tempo a expansão da orientação externa do complexo de soja.
O resultado disso – num contexto de abertura do complexo de soja ao comércio internacional – é que os ganhos de comércio obtidos pelo setor levaram a uma situação singular fruto e reflexo do desenvolvimento das forças produtivas. O setor tem uma grande participação tanto na produção quanto na exportação mundial do complexo de soja – ou seja, é um grande player, mas o Brasil como um todo (em termos de exportação) é um país pequeno em termos de participação e presença no comércio internacional.
Apesar de ser um player no mercado de soja, há fatores internos que prejudicam e travam a potencialização, o desenvolvimento e a projeção do setor no cenário internacional. Além disso, por terem obtidos ganhos econômicos que resultaram na melhoria de renda, emprego e bem estar dos “capitalistas e trabalhadores” que atuam no setor e que estão localizados preponderantemente nos estados do Centro Oeste e no Sul, a voz e a representação política nos Estados, no Congresso Nacional, e na sociedade civil acaba expressando que o agro é pop, é teck, e que todos os brasileiros devem gostar de sertanejo universitário e exposição agropecuária!
Num contexto de transição energética, digital, geopolítica, e de transição de um sistema unipolar para multi polar a posição e a visão adotada por representantes do setor que refletem a posição e o pensamento médio do eleitor dessas regiões cria fricções e tensões desnecessárias num contexto de polarização política fruto da mudança tecnológica e energética em curso e de crise econômica e política global. Isso é visível no momento atual do Brasil. E, o atual governo não está sendo capaz de formular plano com ações e medidas em prol de uma política de comércio exterior estratégica para o complexo de soja. Este, por ser um grande player internacional precisa de forjar uma agenda e uma parceria pública e privada de modo a que se possa afirmar a veracidade do slogan: “Brasil, um país de todos”.
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Esta agenda tem cinco desafios a enfrentar: (a) O primeiro é corrigir e ajustar o viés pró- exportador em relação aos tributos e ao financiamento exposto acima; (b) O segundo é como atender ao crescimento da demanda chinesa por soja com sustentabilidade, recuperação de áreas degradadas e captura de créditos de carbonos; (c) O terceiro é como implantar uma logística de transportes que permita o escoamento competitivo da produção de soja notadamente do Centro Oeste; (d) O quarto é como lidar e gerir com as medidas impostas recentemente pela União Europeia no sentido: (i) de estabelecer Due Dilligence entre comprador europeu e exportador nacional; (ii) de impor rastreabilidade na origem da soja eventualmente produzida na região amazônica em função da lei europeia que quer coibir a entrada de produtos elaborados próximos de áreas que possam sofrer ou estar sofrendo com o desmatamento na Amazônia; e (iii) de taxar produtos importados ou produzidos na União Europeia conhecida como CBEAM, que no seu processo produtivo utilizam insumos que geram direta ou indiretamente gases que causam efeito estufa no planeta, e, em solo europeu; e, (e) O quinto é como construir uma imagem e uma marca de com bases nos fundamentos do “soft power” do setor do complexo de soja que mostre a singularidade de se plantar soja em áreas temperadas com sustentabilidade e produtividade, e, inclusive florescer ainda mais uma cultura sertaneja de brasilidade, e, associar esse esforço a formação de uma cultura exportadora que permita fincar as bases para a presença de traders brasileiros para comercializar os produtos do complexo de soja (e talvez do agronegócio) em todos os países do mundo com o objetivo de aumentar a diversificação de mercados compradores.
Para implementar essa agenda é preciso que por determinação do Presidente da República, o Conselho de Ministros da CAMEX/MDIC baixe resolução criando um Grupo Executivo para o Complexo de Soja – composto por membros da própria CAMEX. Receita Federal, STN/MF, Decex/MDIC, BACEN, Secex/MDIC, MRE, INPE, IBGE, Coaf, Conab, Mapa, Ministério da Reforma Agrária, Ministério dos Transportes, Ministério dos Portos e Aeroportos, e das áreas internacionais do Ministério do Planejamento e da Fazenda. Além disso, deveriam ser convocados funcionários do EXIM/BNDES, do PROEX/BB, e da APEX.
Ato contínuo a essa decisão se deveria criar quatro sub-grupos executivos para analisar, propor e resolver os desafios apontados acima, a saber:
- Grupo de coleta, elaboração e produção de dados e informações sobre o complexo de soja, cuja direção executiva caberia ao IBGE e ao Coaf visto terem em tese – por lei – condições de obter e processar os dados do sistema Siscomex, da Receita Federal, do Mapa, da STN/MF, e da Conab, e outros que se fizer necessário – sem que haja disclosure de informação que viole a proteção dos dados de cada órgão.
- Grupo de resolução de problemas do regime pró-exportador do Complexo de Soja, composto pelo Decex/MDIC; Receita Federal; BACEN; STN/MF; MAPA; EXIM/BNDES, PROEX/BB, e cuja direção executiva caberia conjuntamente a CAMEX, SECEX e área internacional do MF;
- Grupo de resolução de problemas de transporte e logística, composto por Conab, Mapa, Ministério da Reforma Agrária, Ministério dos Transportes, Ministério dos Portos e Aeroportos, e área internacional do Ministério de Planejamento. A direção executiva caberia à Camex; e, finalmente;
- Grupo de construção de marca e “soft power” e difusão de uma cultura exportadora para atuar de modo eficiente, eficaz e efetivo no mundo multipolar, composto por MRE, MAPA, APEX, SECEX/MDIC, e área internacional do MF.
Ao grupo de coleta, elaboração e produção de dados e informações sobre o complexo de soja caberia – como já mencionado anteriormente – coletar e elaborar informações e analise de inteligência sobre o setor para que do ponto de vista do espaço territorial se pudesse plotar e visualizar os dados do complexo de soja de estoque ou dos fluxos, sejam monetários ou físicos. Isso permitiria a construção de um mapa ou um network acerca da produção, da oferta, da demanda, e, sobretudo da relação do complexo de soja com o maxi mercado – composto pelo mercado interno e externo. Esse grupo seria responsável por montar os dados para traçar a evolução nos últimos anos dos estoques comercializados interna e externamente pela combinação das entradas e saídas observadas nos estabelecimentos dos produtores rurais e das cooperativas e tradings com o maxi mercado – composto pelo mercado interno e externo. E, também identificar os passivos ocultos derivados dos acúmulos de créditos de ICMS, que constam dos balanços das empresas exportadoras e dos arquivos das secretarias de fazenda estaduais.
Com base nos dados estatísticos obtidos pelo Grupo acima, caberia ao grupo designado para corrigir e ajustar o viés pró- exportador em relação aos tributos e ao financiamento buscar ressarcir o que é devido aos produtores rurais desde que os mesmos criassem ESC – empresas simples de crédito – para que os produtores rurais financiassem suas compras de insumos. Além disso, com a na nova reforma tributária em curso esse grupo deve buscar uma solução para o passivo escondido nos balanços das empresas exportadoras do setor. De um lado, para além de 2038 – por já haver acordo para repassar recursos federais para os estados para reduzir esse passivo escondido – esse grupo deve buscar assegurar do ponto de vista de incidência tributária e, sobretudo, de acordo com a OMC a não incidência de impostos indiretos no produto final a ser exportado na hora da saída do produto do território nacional. E, encontrar meios legais para não ressarcir o exportador por haver acumulo de créditos entre períodos contábeis para não caracterizar no futuro a concessão de subsídios que violariam as regras da OMC.
Também com base nos dados obtidos pelo Grupo responsável por esse assunto, caberia ao grupo de resolução de problemas do regime pró-exportador do Complexo de Soja com os dados de área produzida e os dados de estoques de entrada e saída por estabelecimento e por região estabelecer com o apoio do INPI e ABNT metodologias próprias para o calculo do CBEAM, Anti desflorestamento e Due Dilligence impostos pela União Europeia. As métricas a serem criadas e coletadas sistematicamente devem ser organizadas e apresentadas a União Europeia com vistas a mostrar um goodwill por parte do setor e do governo brasileiro. Boa parte de processo de rastreabilidade para o setor poderia ser bancado, em parte, com recursos do Fundo da Amazônia – oriundo de fonte europeia, e, o aporte nacional poderia ser objeto de recursos provenientes do SEBRAE Nacional e da Apex.
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Caberia ainda ao grupo de resolução de problemas do regime pró-exportador do Complexo de Soja criar condições para atender ao crescimento da demanda chinesa por soja com sustentabilidade, recuperação de áreas degradadas e captura de créditos de carbonos. Este é um momento ímpar para os atores do Complexo de Soja planejar um salto expressivo da corrente bilateral de comércio de bens e serviços e de investimentos chineses no Brasil. O setor pode ser o veículo e um incentivo para uma frutífera cooperação bilateral para viabilizar a redução das emissões de carbono e a recuperação de áreas agrícolas degradadas com vistas a melhorar a sustentabilidade, a segurança alimentar e a segurança energética global.
Essas diretrizes em função da realização do GOSBAN nesse ano deveriam ser seguidas por ambas as partes – lado brasileiro e lado chinês – por no mínimo o próximo decênio, ou, na visão chinesa, até 2048, época que se estará celebrando o centenário da criação da República Popular da China.
Há desafios estratégicos, macro e microeconômicos a enfrentar pelo grupo de resolução de problemas do regime pró-exportador do Complexo de Soja nessa longa jornada. O afluxo de investimentos externo chinês esperado que haverá de ocorrer no complexo soja vai pressionar o balanço de pagamentos bilateral, pois apesar do superávit estrutural da balança comercial entre os dois países ser favorável ao Brasil, haverá no futuro necessidade de gerar novas receitas de exportação com a China para pagar o serviço da dívida externa com os chineses.
Inclusive, renninbi podem ser obtidos, no Brasil, com essas novas vendas externas se houver decisão de ambos os bancos centrais firmarem acordos mútuos de linhas de swap cambial para que haja liquidez no mercado cambial brasileiro com vistas a que as empresas exportadoras do complexo de soja possam liquidar as suas vendas externas e transações comerciais trocando, no Brasil, renmimbi por reais. No Brasil, as grandes empresas exportadoras de soja só teriam de aprender a operar e a contabilizar operações de swap cambial com no mínimo três moedas – real contra dólar e renimbi – e assim haver maior demanda por trocas de moedas no mercado de cambio spot de moeda nacional (real) por reninbi.
Vale ressaltar que os investimentos externos chineses poderão ser feitos nas unidades dos produtores rurais ou dos fazendeiros brasileiros de forma direta entre as partes para a recuperação de áreas agrícolas degradadas e para aumentar a oferta de soja. E, mais ainda, dada à tradição e ao interesse chinês – estes investimentos podem vir a ser quitados por meio das sacas da produção de soja obtida nas fazendas nacionais. Em outras palavras, nessa transação comercial – de interesse mútuo chinês/brasileiro – assistiremos a instituição de uma variante internacional da “breganha” ou do “barter trader” comum, no Brasil, entre agora os investidores chineses e os produtores rurais e agricultores familiares.
Aliás, segundo o novo marco cambial há possibilidade que essa negociação seja lastreada mediante um contrato de mutuo entre as partes situadas no Brasil e na China. Logo, do ponto de vista da entrada do capital chinês há legalidade da operação cambial e da sua saída ou baixa da obrigação privada brasileira. Em outras palavras se incorrerá numa divida externa contraída pelo produtor rural para recuperar áreas degradadas e aumentar a oferta de soja, e, esta será em tese resolvida do ponto de vista cambial ao se enviar mercadoria para a China num determinado valor em renimbi, cumprindo às determinações do BACEN.
Para fechar a operação de exportação dessa troca do tipo “barter” ou “offset” entre atores privados chineses e brasileiros só faltará esta ser normatizada no âmbito da SECEX-MDIC, da COANA-SRF-MF e do BACEN. Estas instituições terão de normatizar quem vai adjudicar a operação, e como e onde vai ocorrer a autorização para saída de mercadoria no processo de despacho aduaneiro de exportação sem cobertura cambial, e, simultânea baixa do registro de operações financeiras (ROF) aonde a divida entre as partes chinesa e brasileira estará registrada. Esse local deveria ser um armazém geral, no Brasil, ligado a uma SPE chino-brasileira a ser criada que ao receber a mercadoria a exportadora – fruto de mercadoria sem cobertura cambial – emitisse ( antes ou no momento de entrega) um warrant contra o banco chinês localizado no Brasil – que por sua vez daria baixa do contrato de mutuo entre o investidor chinês (que pode ser o banco chinês no Brasil ou o importador chinês) e o produtor/exportador brasileiro. Obviamente, a cada safra previamente seriam estabelecidos volumes, peso e valores da soja em grão passível de ser embarcada sem cobertura cambial para efeito de pagamento pela recuperação da pastagem ou por melhoria de padrão de sustentabilidade voltada para o mercado chinês.
Importa que do ponto de vista macroeconômico e microeconômico há arcabouço e atribuição legal para lidar com a mudança de nível da transformação da corrente de comércio e de investimento entre o Brasil e a China no que tange ao complexo de soja. Falta apenas decisão por parte dos fazedores de política econômica brasileiros.
Ao grupo de resolução de problemas de transporte e logística, caberia identificar o fluxo e o estoque de movimentação de carga do complexo de soja para exportação. Com esses dados e analises de inteligência o grupo verificará que com o aumento da demanda chinesa se observa uma melhoria da produtividade por hectare de soja plantada em quase todas as regiões dos estados produtores do Brasil. Mas, a intensificação dos fatores de produção para obter ganhos e aumentos mais significativos na produtividade ocorreu nos Estados produtores que são próximo à Costa do Atlântico. Estes estados não possuem quase mais áreas para expandir ou abrir para o cultivo da soja. Nos locais de produção dos estados “perto” dos portos parece que houve maior e mais eficiente uso e combinação de maquinaria, fertilizantes, técnica de cultivo, pouca perda de produção, e agilidade no armazenamento e na movimentação dos “sacos de soja”, quando comparados às regiões produtoras de soja em grão mais distantes dos portos nacionais.
O desincentivo à obtenção de ganhos de produtividade na cultura de soja nas regiões de soja mais distantes dos portos do atlântico está em parte relacionado à quase inexistência de silos e armazéns nas fazendas , quando comparados, por exemplo, aos Estados Unidos, e, à distância das regiões produtoras principalmente no Centro Oeste às saídas nos portos marítimos do Brasil. Isto acaba por onerar o frete interno de soja e acaba reduzindo a competividade FOB (free on board) ou FAS (free alongside ship) no ponto da saída marítima de um produto nacional proveniente principalmente do Centro Oeste.
Cabe destacar que o problema da distância e da preponderância do modal de transporte rodoviário no Brasil no complexo de soja afeta e onera sobremaneira o escoamento da produção do centro oeste para os portos, notadamente a originária de Mato Grosso. Boa parte desse problema decorre de erro de projeto de engenharia e de financiamento para o desenvolvimento das ferrovias e das malhas construídas nos fim dos anos oitenta e noventa, que foram amplamente financiadas por bancos oficiais. Linhas férreas foram projetadas para estruturar a malha de transporte e deveriam conectar Paranaguá e Santos com as regiões produtoras e orientadas para a exportação do Centro Oeste, seja de soja – produto do passado – e hoje de celulose e de algodão.
Como não havia naquele tempo dados de fluxo de carga de ida ou de volta, nem de produção e eventual destino, os traçados propostos pelas empresas férreas nos seus projetos detalhados de engenharia definiram o ponto final da ferrovia no Centro Oeste em áreas aonde não havia à época perspectiva de produção e até hoje não há produção a ser escoada e transportada no fim da linha do trem. Isso induziu a erro nas análises de projetos naquele momento histórico, fruto talvez de um processo de rent seking e de captura das agências públicas de fomento por interesses privados.
Esse erro passado de traçado implica hoje, de um lado, num valor maior por transporte de soja em caminhão por rodovia para os portos nacionais – reduzindo a competitividade -, e, de outro, surge à demanda por recursos da ordem de bilhões de reais para investir em opções de transporte como: (i) concluir a conexão férrea com Paranaguá e Santos para escoar a produção do Centro Oeste de soja (e agora de celulose e talvez algodão); (ii) construir um arco norte como hub de escoamento logístico por Mirituba no Pará; ou (iii) construir um corredor logístico sul americano para escoar e movimentar carga do Brasil para os países andinos (e vice versa), e inclusive direcionar e viabilizar que a soja colhida no Centro Oeste se destine à China saindo por porto localizado no Peru.
Caso haja disponibilidade de recursos é importante mencionar que o corredor biooceânico é um negócio da China, para a China. A construção vai criar demanda de bilhões de doláres para a China de produtos manufaturados a serem comprados pelo Brasil e o Peru, ambos exportadores de produtos primários. No caso do Brasil, a construção do corredor biooceânico abre caminho para incorporar áreas da franja sul/sudeste da Amazônia para se plantar soja. Independente de haver demanda externa por essa adição de produção haverá dificuldade de haver oferta de financiamento pelo setor financeiro em parte por causa dos princípios do acordo do Equador que regem os princípios ESG dessas entidades com vistas a não financiar projetos que desmatem a região amazônica. E, no caso do Peru, abre caminho para alterar o ecossistema andino, lembrando que as soluções aventadas são rejeitadas pela população local pelo risco que trazem especialmente aos mananciais e aos microclimas secos da região.
Vale atentar ainda que a distância marítima é praticamente a mesma entre a China e o Peru, assim como entre a China e qualquer porto brasileiro que esteja no eixo entre Vitória e Rio Grande, incluindo Santos e Paranaguá. E, a distância náutica de Mirituba para a China é maior que a observada nos portos da região Sul e Sudeste, o que tornará mais caro o transporte final do escoamento da soja para a China, com a implantação total do arco norte.
Vale ainda lembrar que a Terra é redonda, e, a área da superfície do Pacífico é maior que a do Atlântico Sul e do Indico somadas. Só que esse caminho é ruim pra China, pois os navios têm de atravessar zonas de conflito na Indonésia, Filipinas, apoiadas por nações rivais dos chineses. Não há mar aberto na região, por isso existe o conflito pelo Mar da China. E, com a tensão e risco geopolítico crescente no estreito de Malaca e em Taiwan, e sem navios de bandeira brasileira para transportar soja brasileira para o mercado chinês, o menor e o menos distante caminho marítimo do Brasil para China continuará a ser via os portos do sul-sudeste, em função do peso da história – afinal antes da era do vapor nos navios, estes quando vinham da Europa para a Índia e China – escalavam os portos brasileiros (Rio de Janeiro e Bahia, sobretudo) por uma questão de milhas náutica. Para validar essas distâncias náuticas, o grupo executivo de resolução de problemas de transporte e logística deveria contar com apoio técnico da marinha e de armadores e transportadores internacionais.
Esse grupo deveria apresentar via Camex à Presidência da Republica e ao Congresso Nacional estudos de custos e benefícios socais para mostrar a não necessidade de se implantar duas das três conexões de transportes a serem implantadas como parece querer o atual governo. Essas são Paranaguá e Santos se conectando ao Centro Oeste; esta região se conectado com Mirituba no Pará e, depois, esta região sendo conectada ao Peru. É preciso mostrar que sem esses estudos em pleno século XXI estaremos a repetir a história de erro do século XX da elaboração e analise de projeto, de rent seeking e captura das agências de financiamento, sejam oficiais ou internacionais. Demais, arco norte e corredor bioceânico não é uma solução estrutural para a competitividade internacional e para uma movimentação eficiente de um volume expressivo da produção brasileira para o exterior do complexo de soja.
Ao grupo de grupo de construção de marca e “soft Power” e difusão de uma cultura exportadora caberia desde agora identificar através dos adidos comerciais do MAPA e dos SECOM/MRE quais mercados promissores para o complexo de soja expandir as vendas em países de renda média ou em países aonde a market share brasileira é baixa. Com essas informações e alvos pré-definidos, a APEX junto com MRE e MAPA contando com o apoio de entidades empresariais deveria incentivar a formação de traders especializados no agronegócio, em especial no complexo de soja, para viabilizar o início de um processo de diversificação das vendas externas. Um dos focos dessa ação deveria ser incentivar que brasileiras que desejam emigrar ou já emigraram para países de menor desenvolvimento relativo ou onde é pequena a participação do Brasil sejam empoderadas de modo a virem a ser traders e representantes das empresas brasileiras do agronegócio (e do complexo de soja).
Por serem mercados “difíceis”, importante seria permitir que nesse esforço comercial mercadorias sem cobertura cambial fossem embarcadas pelas empresas brasileiras do complexo de soja e pudessem ser enviadas como working capital ou capital comercial para fazer girar inicialmente a operação de exportação. E, sobretudo, que esse investimento inicial realizado pelas empresas nacionais fosse usado como contrapartida aos programas de promoção comercial a serem desenvolvidos pela APEX nesses países alvos.
De fato, essa ação de promoção comercial em prol de uma cultura exportadora deveria ser acoplada a ações de soft power especifico ao setor do agronegócio , de um lado, mostrando a peculiar agricultura de soja do trópico sul, e, também difundindo gradualmente a cultura e a música sertaneja internacional que aos poucos vem conquistando o estrangeiro, como o caso da cantora Ana Costela.
Caso as medidas aqui propostas venham a ser adotadas será possível verificar que o complexo de soja, no Brasil, terá superado os desafios aqui expostos mediante a adoção de uma política de comércio exterior estratégica. Esta gera ganhos de comércio compatível e apropriada a uma atividade econômica que é um exemplo de inserção internacional e crescimento econômico e social, a ser seguido por outros setores nacionais.
Mario Cordeiro de Carvalho Junior – Professor da FAF/UERJ.
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