“Parece que a Bolívia terá que escolher entre diferentes tipos de dinossauros, em 2025”, Rocío Estremadoiro
Os militares cumprem um papel político importante e apoiam o atual governo. O general envolvido na última tentativa de golpe frustrada, em junho deste ano, alega “demência temporal”. “Na Bolívia tivemos muitas dessas histórias um pouco barrocas, um pouco bizarras”.
por Maíra Vasconcelos, especial para o Jornal GGN
Alguns políticos de direita, após estarem anos longe do poder, esperam um momento de crise das lideranças de esquerda ou centro-esquerda para ressurgir das tumbas ou das cavernas. Esse pode ser o caso da Bolívia, que atravessa uma de suas maiores crises político-institucionais, após rompimento e divisão interna do Movimento ao Socialismo (MAS), partido que governa o país há quase 20 anos. Período intercalado por tentativas de golpes de Estado (2019, 2008) e outra mais recente, em junho deste ano. “É o mesmo MAS que mina a sua própria gestão. Frente a uma oposição que nunca pode fazer muito, em relação a essa hegemonia. O mesmo MAS está boicotando o atual governo do mesmo partido”.
A insistência de Evo Morales em se candidatar novamente, a falta de renovação das lideranças e surgimento de novos quadros no partido, além da concentração de diferentes setores ideológicos e sociais dentro do partido, seriam algumas das razões que geraram rupturas internas no Movimento ao Socialismo. A análise é da socióloga e professora boliviana Rocío Estremadoiro, da Universidad Mayor de San Simón (UMSS), doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Salamanca (Espanha).
Com o MAS fragmentado, além da consequente perda de hegemonia, os políticos representantes da tradicional direita boliviana podem ter agora maiores chances nas eleições presidenciais de 2025, segundo Estremadoiro, que considera também pouco provável que o MAS se unifique até o pleito do ano que vem. “De algum modo, as eleições de 2025 serão um pleito onde a população terá que decidir entre vários de dinossauros”, criticou Estremadoiro.
Em relação à última tentativa de golpe de Estado, em 26 de junho deste ano, o general José Zúñiga, tem alegado “demência temporal” e está preso. As Forças Armadas bolivianas se desvincularam completamente de sua figura, deixando entender que não passou de um caso isolado. “Na Bolívia tivemos muitas dessas histórias, diria, um pouco barrocas, um pouco bizarras”, pontuou Estremadoiro, fundadora do coletivo “Não ao corte de árvores”, em Cochabamba.
Recentemente, o presidente Luis Arce e o vice David Choquehuanca foram expulsos do MAS, do próprio partido do governo, por Evo Morales. Essa ruptura interna já era esperada? E qual é a causa dessa crise institucional?
Em primeiro lugar, isso é consequência de um processo que está sendo gestado há bastante tempo, que é a perda de hegemonia do Movimento ao Socialismo. O MAS, quando ganhou as eleições, pela primeira vez, em 2005, realmente tinha um grande apoio popular, verdadeiramente exerciam uma hegemonia, que durou mais de uma década, sempre ganhando com maioria absoluta. Parecia invencível. Mesmo antes, quando o sistema de partidos era fragmentado na Bolívia, ninguém ganhava com maioria absoluta. Havia muitos partidos, segundo um sistema multipartidista. Eram obrigados a pactar entre eles para obter um mínimo de governabilidade. Isso foi quebrado com a chegada do MAS. O MAS foi um hiato, a partir de 2005, porque ganhou com maioria absoluta, tinha um amplo apoio popular. Além do mais, o MAS é ou era um partido que congregava muitos movimentos sociais, os sindicatos de agricultores mais importantes, os sindicatos de agricultoras mulheres, existia um pacto de unidade, onde também estavam as organizações de “terras baixas”, não apenas de “terras altas”.
Isso começou a se romper em 2011, quando o MAS decide construir uma estrada em uma área protegida ambientalmente. Assim rompe, pela primeira vez, de maneira notória, o pacto de unidade do partido. Várias organizações indígenas saem da aliança e, pouco a pouco, a partir desse fato, vão perdendo a hegemonia. Depois, outro marco importante foi em 2016, quando o mesmo governo fez um referendo consultando sobre a repostulação da dupla de governo desse momento, Evo Morales e Álvaro García Linera. E ganha o “Não”, para que não se modifique a constituição. No entanto, igualmente, essas serão maneiras de impor essa reeleição. Nesse momento, muitos retiram seu apoio ao MAS, e, pouco a pouco, o partido vai se fragilizando. Até que, finalmente, em 2019, será uma espécie de separação final, quando finalmente há uma crise política muito forte e Evo Morales se vê obrigado a renunciar. Há uma discussão se houve fraude ou golpe de Estado, o certo é que houve uma crise política e Morales se vê obrigado a renunciar, um presidente que antes parecia totalmente invencível.
Então, se bem essa crise política deriva em um governo que cai nas mesmas práticas que criticava, ou até pior, novamente, volta a ganhar o MAS nas eleições de 2020. Igualmente, de alguma maneira, já está debilitado e fragmentado.
Finalmente, isso será traduzido nisso que estamos vendo agora. O MAS dividido em dois. A ala arcista, que é a ala do atual presidente Arce, e do atual vice-presidente XX, e logo a ala evista, que é a ala de Evo Morales, de outros hierárquicos importantes desse partido. Quer dizer, é o mesmo MAS que mina a gestão do MAS. Frente a uma oposição partidária que nunca pode fazer muito, em relação a hegemonia do MAS. Então, o mesmo MAS está boicotando o atual governo do mesmo partido.
Com o MAS dividido, as Forças Armadas estão de qual lado? E qual é o papel que as Forças Armadas ocupam hoje na Bolívia?
As Forças Armadas na Bolívia costumam apoiar o governo de turno. Pelo menos, essa tem sido a atuação histórica dos militares na Bolívia. Mesmo quando algum governo começa a ir muito à esquerda, como na época do recrudescimento da Guerra Fria, nos anos 60 e 70, houve uma reação das Forças Armadas. Primeiro, frente a governos do MNR (Movimiento Nacionalista Revolucionário), depois com a instauração das ditaduras militares enquadradas na doutrina de segurança nacional, justamente para frear o movimento de esquerda.
Os militares têm um papel político que não deveriam cumprir, porque se supõe que devem manter uma neutralidade.
No entanto, o MAS soube manter uma relação muito forte com as Forças Armadas, durante as décadas de seu governo. Inclusive, aprovaram uma série de mais benefícios para as Forças Armadas, continuaram os salários, os privilégios.
Por isso, nunca se opuseram, até 2019. Em 2019, frente à crise política, foi justamente um dos hierárquicos que “sugeriu”, entre aspas, que Evo Morales renunciasse, junto com todo o seu entorno.
Então, nesse momento, as Forças Armadas tiveram um papel nessa renúncia, para instituir o governo de Jeanine Añez. Apesar disso, não puderam minar a hegemonia do MAS, porque voltou a ganhar as eleições em 2020. De alguma maneira, a aliança do MAS com as Forças Armadas ainda permanece. Até hoje, as Forças Armadas continuam com o governo vigente, apesar dessa última intentona golpista. Parece que foi um caso isolado de um general, que não se sabe o que lhe aconteceu, e quis levar adiante essa tentativa golpista e terminou completamente isolado.
Do meu ponto de vista, as Forças Armadas continuam apoiando o governo vigente. Porque isso é o que costumam fazer. Agora não sei se haverá uma ala arcista dentro das Forças Armadas. Acho que agora os militares estão se mantendo um pouco à margem, um pouco observando a situação, antes de atuar. Porque estamos em plena mobilização, se supõe que a ala evista decretou bloqueios, protestos contra o governo de Luis Arce, e acho que as Forças Armadas estão vendo a situação. Estão apoiando o governo vigente como instituição, e de alguma maneira estão vendo de longe o atual cenário político.
Os militares estão cômodos sempre e quando os governos mantêm os privilégios que eles vieram adquirindo ao longo da história na Bolívia. O MAS sabiamente tem mantido esses privilégios, porque aqueles que governam a Bolívia sabem que o primeiro a fazer é deixar os militares contentes. De toda maneira, o país inteiro está vendo com o mesmo MAS debilita o próprio MAS, com essa divisão interna. Todos estão na expectativa sobre o que irá acontecer, após essa fragmentação partidária, e acho que também as Forças Armadas.
Esse corte nas relações entre Arce e Evo era algo que se esperava? Era esperado que Morales quisesse voltar a se reeleger?
Na história da Bolívia, há esse destino dos partidos que se convertem em máquina de poder. Partidos que exercem uma longa hegemonia, por vários governos consecutivos ganhando com maioria absoluta. Partidos, que, além do mais, concentram uma série de setores sociais em seu interior, mesmo que tenham ideologias diferentes. Então, o MAS como um partido policlassista, poli-ideológico, tem se mantido por décadas no governo, ganhando com maioria absoluta. Inclusive, como dizia, não necessariamente respondem a uma ideologia compacta. Como aconteceu com outros partidos poli-ideológicos, caso do MNR, que se manteve por ao menos 12 anos, ganhava com maioria absoluta, ao menos três períodos consecutivos. Finalmente, acaba dividido em quatro.
O que acontece com o MAS é algo que já vimos acontecer na Bolívia, com os partidos poli-ideológicos. Concentram muitos setores em seu interior, e isso mesmo, de alguma maneira, é o segredo da sua hegemonia. Mas ao mesmo tempo é uma espécie de tendão de Aquiles. É uma debilidade ao mesmo tempo, porque acabou rachando o MAS. E um dos motivos é justamente a teimosia de Evo Morales com a reeleição.
É impressionante como nessa ala do MAS não há uma espécie de renovação de quadros, ou não se fomenta a liderança entre pessoas mais jovens. E está essa teimosia de Evo Morales em repostular-se. Esse é um dos motivos pelos quais o MAS tem se dividido em dois.
Por outro lado, a ala arcista insiste que o MAS deveria renovar seus quadros, as lideranças. Bom, foi pouco a pouco que o MAS foi perdendo essa hegemonia, e chegou a esse ponto.
E os movimentos sociais, os sindicatos, principalmente o sindicato dos produtores da folha de coca, como estão nessa situação de divisão política? De que lado estão? Como têm atuado?
Acho que também estão divididos. Tem uma ala que está com Arce. Ontem mesmo o presidente fez um comunicado oficial, justamente rodeado por vários dirigentes agricultores e de outros movimentos sociais. Inclusive, havia uma representante das mulheres agricultoras. Arce tem mostrado que tem apoio de uma parte dos movimentos. Mas na ala “evista” é onde estão concentrados os cocaleros, os produtores da folha de coca, são eles que em sua grande maioria apoiam o Evo Morales. Afinal, Evo vem daí, é um deles. Uma ala do movimento das mulheres agricultoras, se supõe que está com a ala “evista” também. Uma parte dos “ponchos rojos”, de indígenas agricultores, eles anunciaram esses dias que irão se mobilizar. Então, uma parte dos “ponchos rojos”, saiu à luz apoiando o Evo Morales. Mas ontem Arce fez um anúncio mostrando o apoio de outro setor das mesmas organizações. Parece que as mesmas organizações sociais estão divididas entre a ala “evista” e a ala “arcista”.
Diante desse cenário, o que se pode esperar para as eleições presidenciais de agosto de 2025? Já que falta menos de um ano.
Parece que o MAS perdeu sua predominância. Se está dividido, e até 2025 não consegue se unificar, coisa que duvido, porque agora estão mais distendidos que nunca. Mas se não conseguirem se unificar, e isso seria o mais inteligente para a sobrevivência do seu partido, o MAS já não irá ganhar com maioria absoluta. Pode ser que… Evo está decidido a se postular, então, teremos a candidatura da ala evista. Mas, por outro lado, também, ao que parece, a candidatura da ala arcista. Se o MAS sai assim dividido, perde sua possibilidade de ganhar com maioria absoluta, como tem acontecido até agora. Por outro lado, a oposição, tampouco, apresenta muitas opções. Ao menos, até agora, mas ainda há um tempo para que surjam novos candidatos. Mas, até esse momento, a oposição continua sendo a mesma, com os personagens de décadas atrás.
De algum modo, as eleições de 2025 serão um pleito onde a população terá que decidir entre vários dinossauros. Por um lado, está Evo Morales, por outro lado, Arce, e depois são os velhos líderes. Líderes que correspondiam à chamada política tradicional, antes de 2005. Os que parecem querer se candidatar como oposição, vêm dessa época.
Na Bolívia, parece que teremos que escolher entre diferentes tipos de dinossauros. Vamos ter novamente uma eleição onde ninguém terá maioria absoluta.
Vamos voltar ao sistema de partidos fragmentados e já não vamos ter esse sistema de partido predominante, que, justamente, caracteriza as eleições desde 2005.
Nesse cenário fragmentado, com a divisão do MAS, sobre os dinossauros anteriores a 2005, quem são? Fale umpouco mais sobre eles? São de centro, direita, ultradireita?
Até agora, as figuras que se perfilam como possíveis candidatos, são o atual prefeito de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, que seria presidenciável, mas ainda não confirmou. Ele vem da política anterior a 2005, ele estava no NFR (Nova Força Republicana), foi parte de uma megacoalizão. Esse partido controlou vários governos, os da era neoliberal. Esses são os velhos políticos de sempre, que estavam em um espectro de centro-direita. Outro nome, Jorge “Tuto” Quiroga, vem dessa política tradicional, ele foi vice-presidente do general Hugo Banzer (falecido em 2002), o ditador que depois foi eleito democraticamente, em 1997.
Outro nome que talvez se perfila, é Doria Medina, um velho político, da política anterior ao MAS. Essa oposição tradicional, que tampouco renova suas lideranças, seus quadros, continuam aparecendo os mesmos dinossauros. Outra candidatura que se fala é a de um famoso agroindustrial “cruceño” (de Santa Cruz de la Sierra), que também é um velho político. Esses são os nomes que até agora se apresentaram como possíveis candidatos.
Quando o MAS chegou, em 2005, nenhuma dessas opções políticas pode lhe fazer frente. Então, olha que oportunidade esses candidatos da tradicional e velha política boliviana têm agora. E a oportunidade que têm é porque o MAS se dividiu. Se o partido não tivesse se dividido…. Mas agora têm essa oportunidade de ganhar. E pelo visto, não parece que o MAS irá se unificar.
Mas, então, dito isso. Sei que é muito difícil tentar uma projeção um ano antes das eleições, e também não sei até que ponto é produtivo pensá-la agora, mas existe alguma possibilidade de acontecer uma surpresa em 2025 e que não ganhe nem uma nem outra ala do MAS e que ganhe algum desses velhos políticos? Considerando esse cenário que a senhora desenhou.
Olha, pelo menos do meu ponto de vista, se o MAS sair dividido em 2025, acho que algum desses candidatos da oposição pode ganhar. Mas acho que nenhum ganha com maioria absoluta, independentemente de quem seja. Acho que se o MAS sair dividido, o voto estará fragmentado, pois poderia ganhar algum da oposição tradicional, mas se ganhar não acho que seja por maioria. Certamente, vamos ter um cenário de segundo turno na Bolívia. Se nenhum candidato conseguir maioria absoluta, terá segundo turno. Poderia ser esse segundo turno entre um candidato do MAS e outro candidato da oposição, que, geralmente, são de centro-direita.
Indo agora a um fato mais recente. Já se sabe o que realmente aconteceu naquele 26 de junho, naquela tentativa de golpe de Estado? Passados esses meses, já está mais claro o que foi aquele episódio?
Pelo contrário, está cada vez menos claro o que aconteceu. Porque foram divulgadas novas declarações do general que armou tudo isso, e suas falas são muito contraditórias. Disse que estava sob efeito de algumas substâncias alteradoras da consciência. Está alegando uma espécie de demência temporal. Não sabemos se foi um militar que saiu dos eixos para armar algo como um golpe de Estado. A última versão que estavam considerando é que teria sido um fato isolado desse general José Zúñiga, e parece que foi isso. O resto das Forças Armadas não aceita estar envolvida nesse episódio. Parece que foi uma ação isolada.
É necessário considerar que na Bolívia tivemos vários golpes de estado, e que, justamente, respondem a essa mesma versão. Fatos isolados de generais que, em algum momento, o poder lhes sobe à cabeça e acreditam que é viável, que é válido fazer esse tipo de tentativa de golpe. Na Bolívia tivemos muitas dessas histórias, diria, um pouco barrocas, um pouco bizarras. Até agora, esse general, Juan José Zúñiga, está isolado, não tem nenhum tipo de apoio. Agora está preso, e o último de seus argumentos é que estava muito mal, sob efeito de remédios.
Esse episódio contou com várias versões. Uma outra, foi que isso foi um pacto com Luis Arce para fazer uma espécie de autogolpe, isso também José Zúñiga chegou a dizer. Fato é que, agora, Zuñiga não tem nenhum tipo de apoio institucional, de nenhuma das facções das Forças Armadas. Ele está preso e respondendo a processo. E receberá a pena máxima de traição à pátria, por tentativa de golpe.
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