
A ovelha difícil do Mercosul: Milei e a cruzada para flexibilizar o bloco
por José Victor Ferro
Na última sexta-feira (6), encerrou-se a 65ª Cúpula do Mercosul com a realização da reunião do Conselho do Mercado Comum do Sul, sob a presidência do uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou, que ocupava a liderança pró-tempore do bloco. Estiveram presentes ao evento, realizado em Montevidéu, os presidentes dos demais países membros: Santiago Peña (Paraguai), Luis Arce (Bolívia), Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil) e Javier Milei (Argentina), que assumirá a presidência rotativa do Mercosul.
O encontro foi marcado pela conclusão, amplamente aguardada, das negociações do acordo de associação entre a União Europeia e o Mercosul. Apesar de ainda haver um longo processo para que o texto entre efetivamente em vigor, sua assinatura representa um marco político e econômico de grande relevância, considerando o extenso período de negociações entre os dois blocos. O processo, iniciado em 1999, chegou a ser declarado encerrado em 2019, quando um “acordo em princípio” foi anunciado. No entanto, o texto enfrentou críticas, especialmente da França, que apontava falhas na inclusão de garantias contra a destruição ambiental em territórios sul-americanos, especialmente no Brasil. Como resposta, novas rodadas de negociações foram realizadas, culminando com o anúncio do acordo revisado na última sexta-feira.
Outro ponto relevante da cúpula, embora tenha recebido menos atenção da imprensa brasileira, foi a transição da presidência pró-tempore do Mercosul, do Uruguai para a Argentina. A presidência, que é exercida rotativamente a cada seis meses pelos chefes de Estado dos países membros, passou das mãos de Lacalle Pou para Javier Milei, recém-eleito presidente argentino. Contudo, em vez de destacar os avanços históricos no acordo com a União Europeia, Milei aproveitou a ocasião para criticar duramente a atual estrutura do Mercosul, referindo-se a ele como um “entrave” e uma “prisão”. Para o líder argentino, a conformação do bloco como uma união aduaneira, mesmo que imperfeita, impede os países membros de negociar livremente com terceiros e explorar suas vantagens comparativas.
Milei defende a flexibilização das exigências do bloco, especialmente no que se refere à tarifa externa comum (TEC), que obriga os membros a negociarem conjuntamente acordos comerciais com países fora do Mercosul. Essa posição é igualmente respaldada por dispositivos legais do Protocolo de Ouro Preto e pela Resolução 32/00 do Conselho do Mercado Comum. O novo governo argentino também busca aproximar-se dos Estados Unidos, vislumbrando negociações bilaterais de livre comércio e uma renovação das “relações carnais” dos anos 1990 entre os dois países.
A implementação dessa agenda, porém, enfrenta sérios obstáculos. Uma flexibilização dependeria de um acordo com os demais países membros, algo pouco provável, especialmente com a mudança na liderança uruguaia, que passa a ser exercida por Yamandú Orsi, menos favorável a tal proposta. Além disso, há forte oposição por parte do Brasil, cuja política externa atual é contrária a alterações que enfraqueçam a união aduaneira. Sem apoio de outros membros, restaria a Milei a opção de agir unilateralmente, rompendo com as obrigações do Mercosul e negociando diretamente com parceiros externos.
Essa abordagem, contudo, implicaria custos significativos para a Argentina. O Mercosul é fundamental para o comércio de seus membros, especialmente para o Paraguai, onde 75,8% das exportações têm como destino o bloco. A própria Argentina, que enfrenta uma grave escassez de dólares, depende de mercados como o Brasil, que absorveu 14,31% de suas exportações em 2022, superando a União Europeia, a China e os Estados Unidos. Um rompimento unilateral poderia levar a retaliações comerciais brasileiras, agravando ainda mais a situação econômica argentina.
Ainda assim, a possibilidade de Milei avançar com sua agenda disruptiva não pode ser descartada, dado seu perfil político, marcado por atitudes radicais e grande disposição para confrontos. Seu discurso encontra ressonância em setores da elite econômica e da imprensa argentina, sugerindo que o futuro do Mercosul pode enfrentar turbulências significativas sob sua liderança.
José Victor Ferro – Mestre em Estudos Latino-americanos pelas universidades de Salamanca (USAL), Estocolmo e Paris 3-Sorbonne-Nouvelle e bolsista da União Europeia através do programa Erasmus Mundus Joint Master’s Degree. Pesquisador do Observatório do Regionalismo (ODR). Dedicou-se à análise de modelos de desenvolvimento e política externa de Brasil e Argentina vis-à-vis o acordo de associação Mercosul-UE. Com experiência profissional em instituições diplomáticas (Embajada de Uruguay para Suecia, Dinamarca, Noruega e Islandia) e multilaterais (Fundación EU-LAC). Graduado e licenciado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo(USP).

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