Letícia Sallorenzo
Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.
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Narrativa é o escambau, o que existe é o discurso do golpe, por Letícia Sallorenzo

O que está acontecendo no país hoje é o discurso do golpe. Não tem narrativa, tem construção de discurso, que é um processo muito mais robusto e estruturado.

Narrativa é o escambau, o que existe é o discurso do golpe

por Letícia Sallorenzo

Bolsonaro tá pouco se lixando pro processo eleitoral brasileiro.
A ele só interessa dizer “eu desconfio, logo não presta”. É a antessala do golpe.

Pra gente entender o que tá se enunciando hoje com relação a urnas eletrônicas e eleições no Brasil, temos que voltar a 2020 nos Estados Unidos.

Há dois anos, quando viu que não teria sucesso ao tentar a reeleição, Trump mandou o caô da fraude eleitoral. “Ah, os votos por correio pipipi popopó”.

A despeito de o processo eleitoral americano ser uma peneira cheia de possibilidades de fraude pedindo pelo amor de Deus pra ganhar alguma atualização operacional, o que o Trump queria era confusão. E conseguiu, com a invasão do Capitólio no dia da proclamação do resultado das eleições americanas pelo Senado. Nesse dia, Trump patrocinou, com seu discursinho golpista e promotor de caos, um dos episódios mais tristes da história da Democracia Ocidental.

Foi uma confusão institucional, é bom que se enfatize isso. Trump promoveu o caos institucional, e queria insuflar toda a população americana para a guerra civil. Mas quem lidou com a situação foram as instituições. Sozinhas, sem o povo (esse estava sendo manipulado pelo fígado para atacar o Capitólio). Quem deveria ter ido às ruas (os eleitores americanos) ficou quietinho em casa, e não deu mote pra nenhuma alegação insana do tipo “os comunistas querem tomar a América”. As instituições fizeram o que deveriam fazer, dentro do previsto na Constituição.

Trump agiu sob instruções de Steve Bannon, que raciocinou o seguinte discurso golpista: “Se eu não ganhar, é porque foi marmelada. Vou acusar a marmelada, e vou levar no grito!” Ele tentou, mas não levou no grito.

Daí que o Bannon acredita que o discurso golpista pra levar no grito é um discurso turn-key, e quer aplicá-lo no Brasil porque sim. Pra quem não conhece essa expressão, contrato turn-key é quando você contrata uma “solução” igual à do vizinho. É uma ideia legal quando o objetivo é instalar uma central telefônica numa metrópole de tamanho médio, mas se mostra meio inviável quando você pensa, por exemplo, em sociedades (já que cada uma tem suas particularidades), democracias e estados democráticos de direito.

No Brasil, esse discurso turn-key do Bannon não cola, porque aqui estamos há 25 anos desenvolvendo uma tecnologia eleitoral à prova de jeitinho brasileiro. E, principalmente, um sistema eleitoral que vem sendo usado de maneira inquestionável e inquestionada nos últimos 25 anos por toda a sociedade brasileira, incluindo um sujeitinho específico que tantas vezes se elegeu deputado federal por essa urna eletrônica, e agora resolveu achar que  essa urna não tem transparência.

Entendam de uma vez por todas: Bolsonaro não quer transparência nem lisura no processo eleitoral. Tampouco pensa em correção do processo eleitoral. Tal qual Trump contra o Capitólio, Bolsonaro só quer saber de confusão do processo eleitoral – processo no qual, ao contrário do Trump, Bolsonaro vem confiando há 30 anos, e do qual vem se beneficiando, é sempre importante bater nessa tecla.

Então, aqui do lado racional e real da vida, nós estamos carecas de saber que as urnas são confiáveis, que o processo eleitoral é confiável, que a justiça eleitoral é confiável.

Mas do lado mitológico, mitomaníaco e irracional do gabinete do ódio, não adianta o TSE emitir um parecer magistral, com uma aula de segurança de processo, estatística, amostragem e o escambau. Pra Bolsonaro (e seus prepostos, um grupo de generais que não honram – tampouco orgulham – a Instituição do Exército), está errado e ponto.

Se Jesus Cristo e Deus descerem à Terra e declararem: “Bolsonaro, as urnas eletrônicas são confiáveis, pare de desconfiar!”, Bolsonaro vai dizer que não confia e que eles são Fake News, na verdade são emissários do demônio. É esse o discurso a ser enunciado pelo golpista.

Vejam vocês: sou analista do discurso. Estudo narrativas. E tomei um ranço descomunal com o uso indiscriminado da palavra “narrativa”. Porque os bolsonaristas a usam como sinônimo de mentira – e não é. O que está acontecendo no país hoje é o discurso do golpe. Não tem narrativa, tem construção de discurso, que é um processo muito mais robusto e estruturado. Discurso é uma ação combinada de atos verbais e não verbais, que engloba narrativa, enunciador, texto e contexto, pra deixar a definição bem simplória.

Ferramentas, instituições e pessoas: inimigos a serem abatidos no discurso populista de Bolsonaro

O discurso do Bolsonaro é claríssimo. Ele ataca em três frentes: a ferramenta, a instituição e as pessoas que cuidam das eleições brasileiras. Com objetivos bem claros e populistas: desacreditar o sistema, apresentar-se como antissistema e triunfar sobre o sistema. O problema é que triunfar sobre o sistema significa derrotar a Democracia e o Estado Democrático de Direito (e não tô nem considerando o desastre social, político, econômico e institucional que serão mais quatro anos de bozo no poder).

Bolsonaro ataca a urna porque precisa. Se ele confiar na urna e esta indicar sua derrota, ele vai ter que aceitar.  Então, desconfiar de uma ferramenta 100% confiável faz parte da ceninha republiqueta de banana que Bannon disse pra ele armar.

Bolsonaro ataca a justiça eleitoral porque, no discursinho populista barato e rastaquera que ele enuncia, não cabe confiança em instituições sólidas – pelo contrário,  é necessário bater nessas instituições para que elas se enfraqueçam e derretam feito gelatina, e ele se mostre mais forte e poderoso do que elas. Observe: matam-se instituições e elas são substituídas por uma PESSOA. O princípio da impessoalidade vai pras cucuias.

E, finalmente, já que Bolsonaro deve ser a única PESSOA a triunfar sobre o sistema, a se tomar como verdadeiro seu “projeto” de “poder”, para isso ele deve levantar suspeição sobre as pessoas a cargo do processo eleitoral. E pra gente pensar nesse ponto, é interessante voltarmos uns dez meses no tempo.

Lá em agosto, eram representantes do STF no TSE Luiz Roberto Barroso, como presidente, Edson Fachin de vice e Alexandre de Moraes “na de fora” do TSE – mas Moraes comandava os inquéritos das Fake News e dos atos antidemocráticos, o que é um problema para o projeto de Bolsonaro. Em agosto, então, Barroso e Moraes eram atacados a torto e a direito por Bolsonaro. Ninguém nem lembrava que o Fachin existia. E, desde então, o Brasil já sabia que (e estava na expectativa de) Alexandre de Moraes assumir a presidência do TSE “em 2022”.

Ocorre que a sucessão da presidência do TSE é bem tradicional, e acessível apenas a ministros “emprestados” do STF. Determina que o vice-presidente de hoje será o presidente na próxima gestão, e o presidente de saída volta para o STF.

Chegou o fevereiro de 2022, e veio a troca de gestão no TSE. O vice Fachin ascendeu à presidência, e Moraes, que “tava na de fora”, “entrou” na vice-presidência. Quem ascendeu à posição “de fora” foi Ricardo Lewandowski (que será o vice de Moraes no TSE a partir de agosto). Em fevereiro último, portanto, Barroso voltou a se dedicar exclusivamente ao STF. Não está mais no TSE.

De repente, Fachin deixou de ser o “quem?” do trio e virou um ser nefasto, no discurso do Gabinete do Ódio. Foi de repente, mesmo. Quem acompanha o ataque institucional promovido pelo Gabinete do Ódio percebeu isso. Sabe quando aconteceu? 15 de dezembro de 2021. Nesse dia, Jair Bolsonaro foi à Fiesp falar aos empresários. Na ocasião, ele meteu essa: “O Fachin votou pelo novo marco temporal, não é novidade. Trotskista, leninista. Kassio empatou.”

Esqueçam que Bolsonaro está falando do marco temporal da demarcação das terras indígenas. Isso é o que menos interessa aqui – pro próprio Bolsonaro, inclusive. (A única coisa que interessa daqui é a data em que a votação do marco temporal ocorreu: 16 de setembro de 2021.) Observem apenas como Bolsonaro qualificou Fachin: “trotskista, leninista”. E pensem: por que palavras tão específicas e de difícil pronúncia pra qualificar Fachin? Por que não simplesmente “comunista”, que serve pra tudo e qualquer coisa de qualquer jeito? Por que Bolsonaro fez questão de ser tão específico?

Resposta: porque isso é UMA SENHA. A partir desse discurso do Bolsonaro, enunciado em dezembro – e não a partir de 16 de setembro de 2021 – Fachin começou a ser atacado pelas hordas bolsonaristas. Se isso não é prova de ataque orquestrado e com a participação do Presidente da República, eu não sei o que pode ser. (fica a dica pro ministro Alexandre. E se espirrar, ministro, saúde!).

Fato é que Bolsonaro faz parte, sim, de uma rede organizada e articulada de ataque às instituições. Ele sabe do que ele está fazendo, sabe que o que está fazendo é errado, sabe que o Xandão (porque, nessa hora, o ministro Alexandre de Moraes vira Xandão) tá no pé dele pelo inquérito das Fake News e dos atos antidemocráticos, e sabe o que Xandão tá descobrindo dele.

Então, Bolsonaro ataca em três direções: ferramenta, instituição, pessoas. Com um único objetivo: desacreditar TUDO o que diz respeito a voto. Felizmente, esse discurso não está colando e estamos vendo as pesquisas de opinião apontando para a defesa e a confiança das instituições.

Ainda assim, é possível observar o discurso do Bolsonaro por dois vieses: um é esse planinho nefasto de violãozinho de história em quadrinhos, de destruir o país e reinar absoluto. Desse plano ele não pode recuar de forma alguma. Se recuar, ou ele morre ou é preso.

O outro viés é o nível de desespero do Bolsonaro ao atacar as instituições. Quanto mais desesperado, mais próximo está Xandão do encalço dele e dos filhos.

Bozo x Xandão

Com isso em mente, fica mais fácil entender por que o bozo resolveu “mandar” Xandão levantar na cerimônia do TST pra cumprimentá-lo, na quinta-feira 19 de maio. Pra mostrar “quem manda em quem”. Encenar uma força e um poder que ele tem cada vez menos.

As redes bolsonaristas foram ao delírio com esse detalhe, e ocultaram o fato de que, instantes depois, ao ser anunciado pela mestra de cerimônias do evento, Moraes foi efusivamente ovacionado por todos os presentes durante longos 30 segundos – diante da cara de [insira aqui aquele monossílabo malcriado que começa com c, seguido da última vogal] do presidente, que não o aplaudiu nem um instante.

No dia seguinte, em evento na OAB-SP, Moraes voltou a ser aplaudido – desta vez, de pé – também por cerca de 30 segundos, ao final do evento (quem quiser acompanhar, só clicar no link e avançar direto pra 8h 46 min).

A falha do discursinho populista barato de Bolsonaro é que ele precisa de inimigos para funcionar. Para isso, construiu discursivamente como seu inimigo Alexandre de Moraes. Escolher os inimigos é muito importante. E Bolsonaro escolheu mal os inimigos.

Então, “abiguinhos”, será esse o teor e o contexto do discurso do bozo, até outubro. Lembrem-se: quanto mais histérico Bolsonaro ficar, mas perto dele e dos filhos está o Xandão. Pipocas acompanham.

Recomendo a suspensão de bebidas alcoólicas até outubro, pelo menos, em respeito aos nossos respectivos fígados. Não sei vocês, mas eu escolhi não usar o fígado pra odiar, mas pra processar álcool. Mais útil.

E, por favor, avisem ao Bannon que se o plano infalível dele não funcionou nos EUA, e não vai ser aqui que vai funcionar. Larga de ser Cebolinha porque aqui é Xandão, mofí!

Leticia Sallorenzo – Mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (2018). Jornalista graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Graduaçao em Letras Português e respectivas Literaturas pela UnB (2019). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Editoração. Autora do livro Gramática da Manipulação, publicado pela Quintal Edições.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Letícia Sallorenzo

Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.

4 Comentários

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  1. O discurso do bozo, tanto quanto suas diatribes contra as eleições são absolutamente irrelevantes diante da realidade da segurança das urnas.
    Se não fossem repetidos nem tomariam corpo.
    As instâncias responsáveis pela repercussão, se quisessem, encerrariam essa “discussão” pelo simples emudecer.
    Não caiamos no mesmo ardil.
    Alguém tem que ficar acordado.
    Tudo o que o bozo precisa é ser ignorado.

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