O trabalho remoto e as condições das mulheres no contexto da pandemia covid-19

Os dados, de modo geral, salientam que mulheres e homens vivenciam o trabalho remoto de formas distintas e que as desigualdades entre homens e mulheres persistem no contexto do trabalho remoto

O trabalho remoto e as condições das mulheres no contexto da pandemia covid-19

por Maria Aparecida Bridi, Giovana Uehara Bezerra e Alexandre Pilan Zanoni

A pandemia da COVID-19 alterou bruscamente o cotidiano da sociedade como um todo, pois o isolamento/distanciamento social tornou-se a diretriz principal da Organização Mundial da Saúde (OMS) para minimizar a transmissão do vírus. Devido à surpresa e urgência da situação, milhões de trabalhadores passaram a executar suas atividades laborais na modalidade remota, muitos sem planejamento algum quanto à infraestrutura do local de trabalho – que para a maioria é a própria casa –, quanto ao material e tecnologias, quanto à duração da jornada de trabalho, salários, entre outros. Somado a esse contexto, também foi necessário interromper o funcionamento presencial de instituições fundamentais para o cuidado, como creches e escolas. O presente artigo traz os resultados da pesquisa “O trabalho remoto/ home office no contexto da COVID-19”, realizado por estudiosos do Grupo de Estudo Trabalho e Sociedade (GETS) e da Rede de Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (REMIR), que se debruçaram sobre o trabalho remoto, suas condições no período da crise sanitaria da Covid-19. Participaram dessa pesquisa, 906 pessoas que tiveram que trabalhar na modalidade remota (a partir de casa), e o questionário foi respondido por 614 mulheres (67,77%) e 292 homens (32,23%).

Os dados, de modo geral, salientam que mulheres e homens vivenciam o trabalho remoto de formas distintas e que as desigualdades entre homens e mulheres persistem no contexto do trabalho remoto, uma vez que tarefas domésticas e de cuidado dos filhos permanecerem atribuídas assimetricamente às mulheres.

O trabalho remoto se configura em razão da assimetria entre os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres e que ainda prevalecem bem demarcados na sociedade, apesar dos mudanças culturais e políticas resultantes de  lutas sociais em torno da igualdade entre os sexos. Isso porque, historicamente, as mulheres são incumbidas do trabalho reprodutivo e de cuidados no mundo doméstico, e, nesse momento em que o trabalho produtivo passa também  a ocorrer nos domicílios, as mulheres ficaram ainda mais sobrecarregadas. As atividades domésticas (remuneradas e não remuneradas) se sobrepõem, fazendo com que as mulheres trabalhem mais, pois as tarefas domésticas permanecem distribuídas desigualmente entre os sexos.

Em relação ao perfil dos respondentes, a maior parte de trabalhadores concentra-se na faixa etária entre 31 a 50 anos, correspondendo respectivamente 65,07% do total de respondentes homens e 70,15% do total de respondentes mulheres. Quanto ao estado civil,  52,05%  dos homens e 43% das mulheres são casados/as. Quase metade dos entrevistados declararam-se sem filhos, sendo 43,49% dos homens e 41,69% das mulheres. Declararam ter 1 filho, 23,63% dos homens e 26,38% das mulheres e os que declaram ter 2 filhos são 22,95% dos respondentes homens e 25,08% das mulheres. Quanto à escolaridade, a maioria (93,66%) dos entrevistados e entrevistadas possuem elevada escolarização. Trata-se de um perfil semelhante aos dados do IBGE PNAD Covid-19, que indentificou a maioria dos trabalhadores em home office sendo de mulheres, brancas e de elevada escolaridade.

Na pandemia o trabalho está mais intensificado devido à ampliação das  jornadas de trabalho e de dias trabalhados. Essa intensificação tem relação com ter ou não filhos.  Para as mulheres com dois filhos, há tendência crescente de trabalhar mais dias por semana, e decrescente nas mulheres sem filhos. O mesmo não se observa em relação aos homens com filhos. Entre as mulheres que trabalham sete dias por semana, as que possuem dois filhos representam a maioria, com 35,51%. Devido ao acúmulo de tarefas domésticas e de cuidado dos filhos, as mulheres são mais interrompidas durante suas jornadas de trabalho e necessitam de mais dias para realizarem as mesmas atividades que os homens.

Segundo os dados da pesquisa, com relação aos dias de trabalho durante a semana antes da pandemia, a maioria dos homens (78,42%) e mulheres (82,57%) respondeu que trabalhavam cinco dias por semana. 7,65% dos homens e 9,93% das mulheres trabalhavam seis dias por semana. 1,47% das mulheres e 4,11% dos homens trabalhavam sete dias por semana. Já durante a pandemia, o percentual de trabalho cinco dias por semana caiu para 56,84% das mulheres e 55,48% dos homens, o que, por outro lado, fez subir o percentual dos que trabalham seis dias (18,89% mulheres e 16,44% homens) e sete dias (17,43% mulheres e 18,49% homens) por semana. No que tange ao ritmo de trabalho, 50,98% das mulheres e 43,15% dos homens passaram a laborar em um ritmo mais acelerado na modalidade remota em razão da pandemia.

A análise sistemática dos depoimentos dos trabalhadores e trabalhadoras evidenciaram uma assimetria quanto às atividades de cuidado dos filhos e da casa. Utilizando a técnica de diagramação de redes de coocorrência de palavras, pudemos identificar os termos centrais e mais frequentes em cada conjunto de respostas. Para os homens são centrais os termos “tempo”, “contato”, “pandemia” e “casa”, sendo que o termo “casa” se associa à questão de gestão do tempo de trabalho e não a do cuidado com filhos e ao trabalho doméstico. Já para as mulheres, apareceu com centralidade e frequência expressiva termos relacionados ao cuidado dos filhos e da casa, arranjo que implica em dificuldade de concentração e em interrupções durante a atividade laboral. As mulheres, portanto, expressam em seus relatos de experiência do trabalho remoto o encargo exclusivo do trabalho de cuidado da casa e dos filhos. De fato, na análise dos dados quantitativos, entre todas as categorias, foram as mulhres com filhos as que mais apresentaram acréscimo nas suas jornadas diárias e semanais de trabalho. Ou seja, devido às interrupções acarretadas pelo trabalho doméstico, necessitam de mais tempo para a execução da mesma carga de trabalho que seus colegas.

A pesquisa revelou uma acentuada divisão sexual do trabalho, embora não correspondendo exatamente a um modelo tradicional, onde o papel do trabalho doméstico era assumido inteiramente pelas mulheres, e o papel de provedor pelos homens. No modelo atual, cabe quase que exclusivamente às mulheres conciliarem vida familiar e vida profissional, sobretudo quando estes âmbitos confluem no mesmo espaço doméstico. Portanto, a modalidade do trabalho realizada no âmbito doméstico que apresenta tanto aspectos positivos, tais como a flexibilidade de horário, não deslocamentos e gastos de tempo no trânsito, quanto negativos, como a extensão de jornadas, a dificuldade da separação da vida familiar do trabalho, mais interrupções e  demandas a qualquer horário, por exemplo, atingem ambos os sexos, mas não de forma igual.  Prevalece a desigualdade na divisão do trabalho doméstico e de cuidados, levando as mulheres a jornadas superextensas de trabalho, o que sugere a necessidade de repensarmos o trabalho remoto, que provavelmente será uma tendência nos próximos anos, e de propormos formas alternativas e mais justas de reorganizar a sociedade, o trabalho e a economia.

BRIDI, Maria Aparecida; BOHLER Fernanda R.; ZANONI, Alexandre P. Relatório técnico da pesquisa: Trabalho remoto/home office no contexto da pandemia COVID-19. Curitiba: GETS/UFPR; REMIR, 2020.

ZANONI, Alexandre Pilan; BEZERRA, Giovana Uehara; BRIDI, Maria Aparecida. Parte II – Banco de dados gênero: “Trabalho remoto/home-office no contexto da pandemia COVID-19”. Curitiba: GETS/UFPR; REMIR, 2020.

Maria Aparecida Bridi – Socióloga, professora do Despartamento de Sociologia (DECISO) e do Programa de Pós Graduação em Sociologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Giovana Uehara Bezerra – Advogada, mestranda em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP. Cursa a Especialização: “Políticas de cuidado com perspectiva de gênero, realizada pelo Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e pela FLACSO Brasil com o apoio da CEPAL.

Alexandre Pilan Zanoni – Graduado em Ciências Sociais pela UFPR. Mestre e doutorando em Sociologia pela mesma instituição.

 

Redação

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