Vitória de Boric, jantar Lula-Alckmin, fundo eleitoral: eventos sincrônicos da despolitização, por Wilson Ferreira

Esses três eventos dessa semana podem estar distantes no tempo ou no espaço. Mas são significativamente sincrônicos

Vitória de Boric, jantar Lula-Alckmin, fundo eleitoral: eventos sincrônicos da despolitização

por Wilson Ferreira

Lula e Alckmin se reúnem em jantar de fim de ano do Grupo Prerrogativas em São Paulo; o ex-líder estudantil Gabriel Boric vence eleições no Chile, dois anos depois da onda de protestos que varreu o país e abriu as portas para uma nova Constituição; sob escândalo moralista da grande mídia, Congresso aprova o bilionário Fundo Eleitoral. Esses três eventos dessa semana podem estar distantes no tempo ou no espaço. Mas são significativamente sincrônicos: a vitória de Boric no Chile é o contraste com o desenrolar dos efeitos da guerra híbrida no Brasil – judicialização e despolitização do sistema partidário com a crise da representação política e a emergência dos “partidos-Estado” mantidos por fundões partidários e eleitorais. Desconectados da sociedade que, bestificada, assiste às “concertações” e “freios de arrumação”.  Enquanto isso, a estratégia comunicacional vitoriosa de Boric no segundo turno “Un millón de puertas” ecoa divisores de água da história das teorias de comunicação… algo fora dos propósitos dos partidos-Estado brasileiros. 

Essa semana de Natal foi marcada por três acontecimentos: 

(a) O jantar de fim de ano do Grupo Prerrogativas, na noite de domingo (19) em um restaurante em São Paulo, foi marcado pelo primeiro encontro público do ex-governador Gerando Alckmin (cogitado para ocupar o posto de vice na chapa com Lula para 2022) com o candidato petista. Contou com a presença de presidentes de partidos, senadores, governadores, prefeitos e deputados. Custou 500 reais por pessoa, cujo montante foi destinado à campanha “Tem Gente com Fome” da Coalizão Negra por Direitos;

(b) No mesmo domingo, o político de esquerda Gabriel Boric foi eleito presidente do Chile. Venceu, no Segundo Turno, o candidato da direita José Antonio Kast. O presidente mais jovem da história do Chile, 35 anos, teve uma vantagem maior do que esperada. A vitória de Boric ocorreu dois anos depois de uma grande onda de protestos, o que abriu as portas para uma nova Constituição do Chile;

(c) O Congresso Nacional concluiu a votação e aprovou nesta terça (21) a proposta de Orçamento da União para 2022. O valor aprovado para o Fundo Eleitoral (que irá custear as campanhas dos partidos às eleições do próximo ano) foi fechado em R$ 4,93 bilhões. A notícia mereceu o escândalo da grande mídia que criticou duramente o valor exorbitante para políticos fazerem campanha eleitoral num país que afunda no na inflação, desemprego e fome.

A polêmica da formação da chapa de Lula com o direitista Alckmin, a vitória do jovem ex-líder estudantil chileno Boric e os bilhões de reais aprovados para o fundão eleitoral não foram acontecimentos distantes no espaço ou no tempo. Estão intimamente conectados. Portanto, não é à toa que sucederam na mesma semana, quase no apagar das luzes de 2021. Foram eventos sincrônicos.

Para compreender essa sincronia, vamos inverter a linha do tempo e começar pelo meio da semana, pela escandalização midiática em torno da aprovação do fundão bilionário.

“É um escárnio aumentar o fundo eleitoral”, “Vamos concordar com isso?”, “Em plena fome e desemprego de milhões, os sacripantas do Congresso multiplicam suas benesses”… esse foi o tom de escândalo moral da grande mídia diante dos bilhões aprovados para o fundo eleitoral.

Da Lava Jato ao partido-Estado

Toda essa escandalização apenas omite um pequeno detalhe: a criação do Fundo Eleitoral foi um efeito colateral da Operação Lava Jato. Em 2015 a grande mídia recebeu com aplausos a iniciativa de ministros lavajatistas como Luís Roberto Barroso e Edson Fachin de proibir a doação de recursos para campanhas eleitorais por parte de pessoas jurídicas. “O poder econômico está capturando de maneira ilícita o poder político”, condenava analistas da grande mídia, na esteira das delações de que, por exemplo, a Odebrecht teria doado R$ 150 milhões para a campanha de Dilma Rousseff em 2014.

Claro que também era omitido ou deixado em segundo plano a informação de que construtoras como Odebrecht faziam doações não só para o PT, mas também para outros partidos em todo espectro partidário.

Dentro da guerra híbrida, na qual a Lava Jato foi a grande arma político-ideológica, essa decisão do STF foi calculada dentro do amplo arco de iniciativas antipolíticas e estratégias para esvaziamento e despolitização das campanhas eleitorais: através dos fundos partidários e eleitorais cria a dependência acentuada dos partidos ao Estado e estruturas de governo – o surgimento do “partido-Estado”. Ao invés de fundir com os interesses da sociedade, passam a se amalgamar com interesses do Estado e governos – os partidos viram uma elite pública que passa a viver de cargos e privilégios do Estado.

Dessa maneira, os partidos-Estado distanciam-se das mobilizações populares (que no passado sempre eram convocadas pelos partidos) fazendo a sociedade perder sua qualidade cívica. Na medida em que os partidos se distanciam da base social, mais e mais cresce a influência de grupos religiosos e fragmentação das pautas reivindicatórias. 

 Tamanha despolitização e desorganização cai como uma luva para a extrema-direita com o seu apelo antissistema e antipolítica, dando a tradução política ao ressentimento e ódio nesse ambiente difuso.

Neste jogo de morde assopra que caracteriza a grande mídia (sócia do golpe e da guerra híbrida brasileira), as lágrimas e indignação da grande mídia pelos bilhões do fundão num cenário de fome são como aquelas lágrimas de crocodilo quando abocanha a vítima. Faz parte do seu jogo semiótico fazer de conta que não tem nada a ver com aquilo que noticia.

Como, por exemplo, as críticas à nomeação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça ao STF como uma ameaça à laicidade do Estado. Ora, quando era advogado, em 2011, ganhou prêmio do Instituto Innovare, o “Prêmio Innovare” (que premia “práticas que contribuem para o aprimoramento da Justiça no Brasil”), evento que conta com patrocínio e grande visibilidade do Grupo Globo. E na época do jornalismo de guerra, dispositivo estratégico para a Globo manter as boas relações com o Judiciário e garantir suas habituais fontes dos vazamentos de informações processuais. 

De resto, foi mais um exemplo de como a grande mídia resgatou espécimes de um Brasil Profundo (fundamentalistas religiosos, pequenos escroques e oportunistas de toda sorte) para engrossar a lama psíquica que apoiaria o golpe de 2016 e a extrema-direita no Poder.

Modus operandi do partido-Estado

Para além desse humilde blogueiro considerar a chapa Lula-Alckmin uma levantada na bola na rede para o ex-juiz Moro dar a cortada (que, aliás, já começou a acionar sua arma semiótica de campanha com um tuite: “impressão minha ou ontem assistimos a um jantar comemorativo da impunidade?” – um é ex-condenado e o outro ex-indiciado pela Lava Jato), no jantar de domingo acompanhamos o modus operandi dos partidos-Estado: negociações e rapapés entre partidos em busca de alianças e… governabilidade.

Claro! Tudo azeitado pelos números das pesquisas Ipec e DataFolha dando conta de que Lula liquidaria as eleições já no primeiro turno. Ok! A política se faz com soluções políticas. Por que então não buscar coalizões com uma personalidade política Opus Dei de direita?

O que chama a atenção é que Lula tem o recall do “melhor presidente da história do País”, segundo DataFolha. Sabendo-se que as últimas grandes manifestações no Brasil que levaram milhões de pessoas para as ruas foram aquelas promovidas pelas psyOps da guerra híbrida e que desembocaram na Lava Jato e na deterioração cívica dos partidos-Estado, temos no jantar de domingo a celebração não da impunidade, como quer Sérgio Moro. Mas das estratégias de articulações regionais e nacionais, namoros e matchs em um badalado restaurante de São Paulo. 

Modus operandi do fim de partidos militantes e a ascensão de partidos-Estado, cuja relação com a sociedade não se define mais pela representação, mas por recall de pesquisas – o mais importante não é promover conscientização político-ideológica das bases ou promover mobilizações sociais (essas são consideradas apenas “prioridades oportunísticas”) que sirvam de âncoras a um movimento políticos, mas vencer as eleições e garantir governabilidade.  

E que a mídia progressista considera o “palco de um dos movimentos mais amplos da política brasileira desde as Diretas Já, em 1984”. Se lá no passado tínhamos um milhão de manifestantes na Praça da Sé, agora temos um jantar em Petit comité embalado por pesquisas que confirmam na massa amorfa a recordação “do melhor presidente da História”.  

Há um sintomático relato dos bastidores desse jantar do domingo: “Aliás, o papo era 100% de política nacional. Mesmo a vitória de Boric no Chile não rendeu muita conversa. Só houve algum comentário naqueles minutos mais próximo do anúncio dos resultados. Depois, só articulações e previsões sobre o cenário nacional” –clique aqui.

Não é para menos: o que aconteceu no Chile é a antítese do nosso sistema político ocupado pelos partidos-Estado. 

Continue lendo no Cinegnose.

Redação

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