A crise de 2008 e a política do Vale do Silício, por Rogério Mattos

Uma das falhas da análise econômica de um modo geral é compreender o fenômeno da inflação e ignorar um outro bem mais prosaico e recorrente, o da carestia.

A crise de 2008 e a política do Vale do Silício, por Rogério Mattos

Uma pergunta pertinente, porém pouco levantada

Era um fator preocupante a política econômica do Fed e de Bruxelas após 2008, a chamada “flexibilização quantitativa”. No entendimento econômico clássico, a impressão descontrolada de dinheiro para resgatar o sistema financeiro falido poderia lançar uma onda hiperinflacionária global. Contudo, os “mercados” ou quem os controlam parece que tinham planos mais sofisticados do que substituir num curto período de tempo uma tempestade financeira por outra.

O economista Paulo Gala se referiu com perplexidade ao tripé base monetária/juros/dívida pública em países da zona do euro, nos EUA e Japão: como conseguiram aumentar a base monetária e o endividamento público, diminuir os juros, e manter taxas de inflação extremamente baixas? Concordo que essa não é uma resposta simples, porque inflação não condiz com carestia, como é óbvio, como também não está submetida diretamente às chamadas políticas de Estado. Em excelente artigo, Fernando Nogueira da Costa responde “por que o excesso de oferta de moeda, face à demanda agregada, não resultou em inflação corrente?”, mas acredito que podemos ir um pouco mais além.

A crise de 2008 e a transferência massiva de recursos

Com a crise de 2008, o dilema da recuperação da economia do chamado “setor avançado” passou a ser o seguinte : sem a flexibilização quantitativa, a economia internacional declara oficialmente sua falência; com sua continuidade, não há meio de se desenvolver a economia física dos países do setor transatlântico. Ela só consegue sobreviver através de taxas negativas de juros e a impressão descontrolada de dinheiro.

Existe a ilusão de que isso não traz implicações maiores para a política internacional, já que práticas de estímulo econômico são bem vindas para que a situação social dos países não se torne catastrófica. Não haveria, inclusive, mesmo com a impressão generalizada de dinheiro, nenhum efeito hiperinflacionário. Vamos mostrar algumas consequências da política de “flexibilização quantitativa”:

O economista Paulo Gala alerta inúmeras vezes para o paradoxo ignorado por boa parte dos economistas: como hoje se imprime tanto dinheiro e, aparentemente, não se gera nenhuma inflação?

Caso for averiguado o preço dos imóveis em todo o setor transatlântico, a carestia é incontestável. Nos EUA, cresce sem parar o número de sem tetos. No Brasil, mesmo com a persistente recessão econômica, os preços oscilam levemente para baixo, ainda estando muito além do valor médio de antes do aumento súbito e generalizado dos preços ocorrido pouco de pois do crash de 2008. Isso é um efeito claro da sobra de recursos nos bancos de outra forma falidos (os “too big to fail”), e que exportam seus ativos para especular com a moradia em diversos países através dos cada vez mais célebres “fundos imobiliários”.

Um outro ponto foi a impostura da invenção do gás de xisto como substituto do petróleo. Essa invenção serviu de desculpa para a derrubada generalizada dos preços do barril de petróleo e praticamente foi o clarim da guerra que deu início aos golpes contra o Brasil e a Venezuela, além de terem servido como uma afronta direta a Rússia, na época envolta com os problemas na Ucrânia e a expansão descontrolada da OTAN em suas fronteiras.

Um terceiro fator foi a criação da própria Primavera Árabe mundo afora. São os Irmãos Koch e tantos outros mega ricos que servem apenas como símbolos de como o capital apátrida e imperial foi usado no financiamento de movimentos contra-insurgentes em inúmeros países. Na ocasião, em reunião das Forças Armadas dos países asiáticos, Rússia, China e diversos outros países consideraram toda revolução colorida como guerra irregular de Estados estrangeiros em seu território.

A política do Vale do Silício

Um quarto e não menos importante fator é a política do Vale do Silício. Sim, porque os incensados yahoos da indústria de softwares fazem política e formam uma perversa cultura. A parte da produção física dos aparelhos, pelo contrário, pode ficar com a Ásia… O principal para a economia imperial é produzir absurdos como a Apple, que pega dinheiro a preço baixo e aplica em si própria. Um gigante de papel que, sem aumentar as vendas ou apresentar planos de inovação, ainda assim cresce de tamanho como um câncer voraz (ler Apple e a multiplicação de homicídios). A indústria do software, cujos valores em termos de mão-de-obra e maquinário é risível frente a riqueza que movimentam, tem ainda um outro componente devastador: servir ao sistema de vigilância total e de mineração de dados dos cidadãos com seus sistemas de “fundo falso”.

Um outro problema mais visível para a população de um modo geral da política do Vale do Silício, da indústria dos softwares, é que sem ela, sem os megainvestimentos feitos nesse setor a partir da injeção massiva de recursos nas grandes corporações depois da criação das medidas de flexibilização quantitativa, não haveria a nova precarização do trabalho no mundo todo: Uber e tantos outros similares. Sim, a espiral hiperinflacionária não se reflete no índice nominal de preços, mas foi usada por quem controla os mercados para deslanchar um guerra total (como disse outra vez, conceito mais amplo e adequado do que o de guerra híbrida)

Entregador faz delivery de restaurante no Centro do Rio, usando uma bicicleta do Itaú – Fonte: outraspalavras.net

Uma das falhas da análise econômica de um modo geral é compreender o fenômeno da inflação e ignorar um outro bem mais prosaico e recorrente, o da carestia. Igualmente, pensa-se muito em como estão agindo as “políticas de Estado”, sem se dar conta das inúmeras formas – monstruosas – através das quais o capital financeiro se articula, seja no patrocínio de guerras irregulares, na construção de empresas voltadas para a precarização do trabalho (uberização), na manipulação dos preços das moradias e no das commodities, como acima mencionado. Além disso, mantém com ainda mais força sua empresa principal, a Narcóticos S.A., como indica, entre inúmeros outros exemplos, a atual epidemia de opioides nos EUA.

Parte mais do que relevante dos efeitos da guerra total que vivemos agora é resultado das medidas “keynesianas” tomadas para, supostamente, se livrar de uma nova recessão ao estilo da de 1929, e Bolsonaros e outros extremismos globais compõem essa conjuntura. Sim, existe “inflação” em razão das causas evocadas pelos economistas, mas não é pela análise dos índices nominais de preço que podemos ver seus efeitos tão perversos. Genocídio e liberalismo.

 

* Texto ligeiramente modificado depois de resposta do economista Paulo Gala à versão original (ainda disponível em meu blog)

Redação

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