A narrativa arquetipal e mitológica como política, por Gabriel Muricca Galípolo

A estratégia se apoia na construção de imagens simplificadas para descrever o mal (problema) e o bem (solução), que apelem a arquétipos óbvios estabelecidos há muito tempo em nosso sistema cognitivo.

A narrativa arquetipal e mitológica como política

por Gabriel Muricca Galípolo

A narrativa e a simbologia são mais importantes que os fatos. Os campos progressistas estão se comunicando e fazendo política de forma errada, especialmente para os dias atuais.

O marketing sempre recorreu a arquétipos para ampliar os desejos pelo consumo de um produto, mas os esforços comerciais apoiados nas redes sociais conferiram nova dimensão a esse apelo. A tecnologia se volta para a colheita e sistematização de dados, buscando definir suas preferências em função dos traços da personalidade.

O nosso meio ambiente é a sociedade. A sensação de sucesso e ascensão na hierarquia social está altamente relacionada com a ideia de validação dos nossos interlocutores, pelo nosso meio ambiente. Isso faz parte do que nos forma, está introjetado em nossa estrutura pela própria dinâmica do processo evolutivo. Se manifesta inclusive quimicamente, aumentando os níveis de serotonina, dopamina e noradrenalina em nosso corpo.

É para esse primitivo sistema de recompensas que o chamado marketing digital apela. Como se cada consumidor tivesse se tornado uma personalidade, uma celebridade, cercada por sicofantas que sequestram seu ID e pedem seu consumo (dinheiro ou tempo) como resgate.

Minha hipótese é que o avanço da direita pode, ao menos parcialmente, ser explicado pela adoção dessa estratégia, enquanto a esquerda segue na narrativa de demonstrar e explicar as vantagens e características do seu “produto”.

Vamos tomar os EUA como exemplo. O debate político se estabelece em um campo conflagrado pela insegurança, promovida pela decadência econômica e ameaça à posição hegemônica norte-americana. Na vida cotidiana das pessoas esse fenômeno se manifesta na forma de precarização das condições de trabalho, achatamento dos salários e elevação do receio de perda do emprego, renda, patrimônio e status socioeconômico.

A narrativa que tenta intelectual e logicamente propor saídas para essa economia e sociedade, parte da pesquisa de suas causas, o que demanda uma série de abstrações e interrelações entre categorias complexas.

Explicar a metástase do capital para a Ásia, por exemplo, como continuidade do processo de globalização, deslocando a manufatura para a China e sua periferia. Movimento capitaneado pelas próprias empresas norte-americanas, que patrocinaram a entrada da China na OMC em 2001, sobre o pretexto de acessar o mais populoso mercado consumidor do mundo. O que desemboca na necessidade de explicar a ideia de que a lógica do capital, e dessas empresas, transcende aos interesses nacionais.

Passemos a analisar a narrativa que conduziu uma figura como Donald Trump à presidência dos EUA, tendo como base a proposta, simbolicamente, mais representativa da sua campanha: a construção de um muro na fronteira com o México.

Qual seria a solução mais óbvia para combater o medo e a insegurança, em uma sociedade culturalmente exposta à narrativa de que o mal é estrangeiro? Borders para conter o perigo que vem de fora, ameaça empregos e põe em risco o ideal de américa que habita o imaginário do americano médio.

Não só o diagnóstico é pouco lógico, como a proposta política parece surreal: “construir um muro”. Trump apelava de forma recorrente ao seu histórico de empresário no ramo da construção, como comprovação da sua competência em construir um muro sólido e instransponível.

A rocha representa tradição, nossos ancestrais escreviam suas tradições em rocha, ou a usavam para construir seus símbolos, como as pirâmides. Sua solidez representa segurança, preservação da tradição. Um muro feito deste material representa um bom símbolo, autoexplicativo, contra a ameaça que vem de fora.

A narrativa política não busca endereçar a complexa tarefa de explicar a realidade e oferecer soluções plausíveis ao tema. Isso demanda uma capacidade de raciocínio lógico e abstrato, pouco acessível para a grande maioria da população, e na contramão dos estímulos e formas de interação oferecidos pelas redes sociais.

A estratégia se apoia na construção de imagens simplificadas para descrever o mal (problema) e o bem (solução), que apelem a arquétipos óbvios estabelecidos há muito tempo em nosso sistema cognitivo.

Essa abordagem apela à porção conservadora de nossas personalidades, que tendem a ganhar relevância em momentos de elevação da insegurança e caos, como os de destruição de velhas ordens. Nesse ambiente, cresce a inclinação a demandar mais ordem, ainda que a custa de liberdade.

Esses elementos de nacionalismo, xenofobia e segregação desempenham papel relevante em diversos regimes autoritários. No nazismo isso transcende a questão geográfica, econômica e social, alcançando uma dimensão genética, com a ideia de confinamento étnico daquilo que é entendido como puro, contra aquilo que se mistura, desorganiza e macula (pelas lógicas dessa doença mental chamada supremacia étnica).

No Brasil é possível estabelecer o mesmo tipo de paralelo. De um lado temos o esforço em interpretar como o inóspito ambiente para o desenvolvimento econômico, estabelecido pela política macroeconômica vigente desde o programa de estabilização monetária, retroalimentou a inserção primário-exportadora.

O processo de crescimento econômico por estímulo do consumo interno, que já vinha apresentando sinais de fadiga, sofre com a brutal queda no preço das commodities a partir de 2013. Com a perda de dinamismo, cai a arrecadação e piora o resultado primário do governo.

Acuado pelas críticas à política econômica, o governo Dilma opta por uma guinada, iniciando um processo de choque de juros, preços administrados e arrocho fiscal (todas medidas pro-cíclicas). A ausência de sustentação econômica e política se alimentam numa espiral que culmina com o impeachment.

A narrativa vencedora, patrocinada pela mídia (com raras exceções) apela para uma “lógica” absolutamente mais pedestre: “o Brasil quebrou”. Quebrou porque gastou demais. Há aí uma dimensão de reclamar a fatia do PIB que passou a ser destinada à proteção social, mas a parte mais atrativa do discurso repousa no conto de que a corrupção e o roubo são os responsáveis pela falta de dinheiro (no plano individual, empresarial e nacional).

Vários personagens são importantes na construção dessa cena. O protagonismo de um juiz justiceiro, a imagem de dutos sujos jorrando dinheiro, como cenário no noticiário todas as vezes que se mencionam as palavras governo, partido e esquerda, as colunas de economia gritando o prédio está em chamas e não há alternativa.

O caos emerge como resultado do naufrágio daquele projeto de Brasil.  Mais uma vez, em um cenário de destruição da ordem estabelecida, aumenta a inclinação da personalidade humana que anseia por ordem, mesmo que em troca de liberdade.

A austeridade se transforma em um símbolo da ordem, em contraposição a ideia de gasto, identificada com o desarranjo econômico pela “mídia especializada”. Assim como um juiz e o militarismo representam a autoridade, ainda que tirânica, para limpar o país da desordem, enfrentando as estruturas de tudo que está aí, responsável por esse estado de coisas.

Bolsonaro foi eleito praticamente sem tempo de televisão, ou comparecer aos debates. Sua campanha se apoiou quase exclusivamente nas redes sociais, com mensagens e narrativas que buscaram associar sua imagem e história com símbolos arquetipais de tradição a um passado ordeiro (sua realidade é irrelevante). Ainda mais importante, como símbolo de tradição ao combate e oposição à desordem e, consequentemente, a esse sistema corrompido.

A publicidade pela negação tem se revelado muito mais eficiente do que a pela afirmação. Ser algo envolve a exclusão de tudo que não é aquilo, e de todos que não concordam com o proposto. Não ser algo abrange tudo que não é aquilo, ou quem rejeita o contraponto estabelecido.

As diversas plataformas digitais que surgiram nos últimos anos no mundo dos negócios, antes de serem algo, não são a forma antiga de fazer algo. As corretoras digitais não são os bancos, os aplicativos para pedido de comida em casa não são os antigos pedidos por telefone, aplicativos para solicitação de carros com motoristas não são o antiquado serviço de taxi. A maior parte dos eleitores que manifestarem publicamente seu voto em Bolsonaro, apresentavam a negação ao PT como sua principal justificativa.

A provocação deste texto pretende propor uma nova categorização e abordagem do eleitor, em contraposição a hipótese que alguém manifesta identificação com a esquerda ou direita por meio de um processo de dedução axiomático.

A ideia de que nossas personalidades são compostas e guiadas por emoções, valores e sentimentos muito voláteis em circunstâncias diversas, nos oferece melhor explicação dos resultados de preferência revelados em pesquisas e eleições, muitas vezes aparentemente contraditórios sobre uma lógica teórica tradicional.

Ao longo da minha vida profissional passei por experiências que oferecem evidências empíricas, sem validade científica, à essa abordagem. Ao debater conceitos complexos e abstratos, a grande maioria dos meus interlocutores eram expressamente antipáticos aos valores expressos nas teorias qual minha visão de mundo é tributária. Apresentavam expressões de rejeição e repulsa a palavras e termos específicos, usualmente criticados pelo senso comum da mídia especializada.

No entanto, a recomendação prática era bem aceita e celebrada, ainda que fundamentada em teorias qual o interlocutor desconhecia ou se declarava antipático.

O construtivismo de Piaget busca explicar como é construído o conhecimento, tomando como experiência o processo de aprendizado e desenvolvimento da criança.

Inicialmente, para uma criança pequena é impossível compreender conceitos abstratos, universais como: “seja uma boa criança” ou até mesmo “arrume seu quarto”. Você terá de descer para um nível mais prático e particular: pegue o seu ursinho e guarde na prateleira. Diga “muito bem!” e “agora pegue seu lego e guarde no balde”. Ao final o quarto estará arrumado e, com o tempo, ele aprenderá o conceito do que é um quarto arrumado.

Nietzschianamente, é preciso reconhecer algo incômodo ao campo progressistas, pois é elitista intelectualmente. A limitação intelectual não permitirá o engajamento em um diálogo abordando como Hegel explicou as interrelações entre o fenômeno particular e a estrutura universal. Tampouco que a relação entre Senhor e Escravo não é apenas antagônica, mas dialética, e esse última é o motor que leva a superação.

Os movimentos terraplanista e antivacina, os que negam que o homem foi à lua ou a teoria da evolução, ou ainda “fãs” revoltados com artistas por terem se manifestado politicamente nas redes sociais, ainda que toda sua obra seja uma manifestação política, demonstram que não podemos sequer esperar das pessoas a compreensão do que lhes foi ensinado nas aulas do ensino fundamental, em um livro, filme, música ou peça de teatro. A mensagem deve ser endereçada como pais dizendo: guarde seu ursinho na prateleira.

Como explica o curto e espetacular conto sobre o rigor na ciência de Jorge Luiz Borges, empobrecer a realidade é o expediente empregado pelas abstrações teóricas para compreende-la.

No entanto, frente a problemas que podem parecer muito complexos para o público, como questões econômicas, a ansiedade e neurose provocadas pela incompreensão daquilo que nos aflige, pode levar a busca de conforto em explicações fáceis, ainda que incapazes de endereçar a questão.

No processo seletivo e concorrencial das explicações, a facilidade de apreensão pelo senso comum pode ser a característica definitiva para a hegemonia de uma narrativa, como demonstra a longevidade e popularidade de interpretações religiosas e teorias negacionistas.

Na evolução do conhecimento humano, a mitologia se apresenta como uma das formas iniciais de formulação de conceitos abstratos, buscando por meio de uma história ou mito dar conta de explicar uma questão universal. A abstração do mal, por exemplo, assumiu diversas formas de animais e monstros nessas narrativas.

A Hidra habitava um pântano junto ao lago de Lerna, tinha um corpo de dragão e várias cabeças de serpente. Segundo a lenda, as cabeças da Hidra podiam se regenerar; algumas versões mais pessimistas (sobre a vida) diziam que quando se cortava uma cabeça, cresciam duas em seu lugar.

Do ponto de vista evolutivo a convivência com as cobras e serpentes desempenharam um papel relevante para a humanidade. A coevolução de primatas e serpentes cunhou a ideia destas como um perigo permanente. Não havia a opção para nossos antepassados de eliminar a cobra em abstrato, enquanto conceito, espécie e ameaça, só era possível matar ou fugir de cada cobra conforme elas surgiam (em nossas vidas).

Talvez seja isso que Hidra represente. Elimina-la foi um trabalho sobre-humano, que demandou a força de Hércules. Para nós humanos, a vida envolve cortar suas cabeças diariamente, ainda que isso não elimine a Hidra ou impeça o nascimento de novas cabeças. Permitir que elas se multipliquem só deixará o monstro maior na hora que decidirmos enfrenta-lo, ou pior, na hora que ele decidir nos enfrentar.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador