A nudez dos vossos deuses, por Eliseu Raphael Venturi

A nudez dos vossos deuses

por Eliseu Raphael Venturi

“As clear as an azure sky of deepest summer “. (Anthony Burgees).

A Conferência dos Mortos se reuniu, incontinenti, em assembleia extraordinária, embora todos os seus encontros costumeiramente fossem ordinários, tamanho o número de mortes e a formação de novos conselhos, colegiados, associações da carne em putrefação e fundações dos ossos.

“Quebraram-se as criptografias do futuro”, pensaram, posto que da inscrição na pedra às telas lavadas do silício os homens estavam em torno aos mesmos dramas, presos na repetição, incautos à diferenciação que lhes seria salvação.

Perguntaram, então, como que em mistura de abismamento com satisfação pela busca daquela justiça que desenharam com afinco: quem indenizará os nossos vivos? Quem indenizará o nosso condado? Quem indenizará o nosso ordenamento?

Foi quando um jovem deus bradou, de longe, como último ato de piedade suprema, aos homens cujas carranca gaguejavam em vozes fracas e desafinadas, de longe, justificativas estapafúrdias: “Aleguem fraude! Invenção! Digam que a literatura nunca foi tão bem representada! Mas não assumam o conteúdo. Não bebam do veneno que inventaram: veremos sua vivissecção doravante!”.

Recebemos a mensagem, a notícia, com profundo amargor, mas sem surpresa. Ela era, àquele tempo, nada menos um retrato explícito e sem pudores de tudo aquilo que havíamos nos tornado, em uma mistura de pragmatismo indiferente aos nossos regulamentos com uma cedência gratuita de todo o nosso pudor, a nossa discrição, mas não era uma atitude libertária, era apenas mais um capítulo de um mesmo jogo de poder indiferente à fé, que se chamava, lá pelas tantas, de “juridicidade”. Uma maculada juridicidade do sagrado cívico.

Vivíamos os efeitos daquela máquina em que morávamos dentro. Aquele dia todos os mortais acordaram com uma missão moral indeclinável: o que fazer com todas as evidências da falência do seu julgamento? Era inverno e o céu era de um azul insuportável, mas aquele dia certamente amanheceria e todos sedentos pelos relatos no jornal que chegaria um tanto fresco e quente.

Os sábios se reuniram e insistiram em perguntas que lhes pesava o coração, que lhes dava uma densidade desnecessária à vida, cuja condição humana já gravava de ardores toda a trajetória, como que com incisões de uma gravura desconfortável na pele, sulcos em sua consciência, em seu discernimento.

Havia tanto mal, simplesmente criado, para se combater no mundo, e agora todos os nossos esforços se voltam contra recônditos de conforto que insistem na sua ilimitada vontade de potência? Soava um tanto absurdo diante de tanta dor e privação que nossos estamentos nos obrigavam a agir contra.

Restou uma pergunta, diante da evidência, mas que marcava nosso sentimento ab ovo: como pode alguém indenizar o incomensurável, reparar o incontinente nos manuais de Direito, retratar-se quando sequer forma a culpa? Não que houvera fórmula pretérita certeira, mas, e agora, vejam o tamanho do estrago que menos de cem sujeitos criou com seus nomes e estandartes. Qual a pena aplicável?

Não podemos esperar nada, embora a dromologia evidencie que nossa mais sincera espera será letárgica diante da velocidade da consumação. Podemos, então, apenas agradecer por estar “do lado de cá” – por todos estes “lados de cá”.

Enquanto não sabemos se estamos mais na Conferência dos Mortos ou na Conferência dos Vivos, pode-se agradecer o brinde como satisfação, como quem fita a nudez dos vossos deuses e se espanta em como os vincos do tecido eram indícios reais da anatomia que supomos, um dia, haver. Como ocorre com as palavras.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Advogado.

(1) Disponível em: < http://www.jean-michel-basquiat.org/god-law/>. Acesso em: 10 junho 2019.

Redação

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