A política institucional e a espiral do silêncio, por Rogério Mattos

Por que se acredita nesse atual estado de "normalidade"? Desde então, a discussão pública sobre o fim da Previdência Social jamais ocorreu com tão baixo nível de ruído desde o governo Temer.

A política institucional e a espiral do silêncio, por Rogério Mattos

Tento escrever direito…
É curioso publicar em blogs de esquerda e aqui e ali ser questionado sobre os motivos de eu não “escrever direito”. Não é por escrever mal: não se trata disso. O problema não é de linguagem: não há linguagem rebuscada nem linguagem mal articulada. Seria (talvez em resumo) um acúmulo grande de ideias que “esquerdizam” a cabeça do leitor. Seria, talvez, o contrapelo da informação objetiva e até das metas da boa consciência crítica, sempre calcada num determinado ideal de objetividade, que se quer chegar com – por favor – um não acúmulo, em demasia, de ideias. Para se ser “bem pensante” tem que se “escrever direito”, mesmo se você é de “esquerda”. Machado e não Lima Barreto, é o que penso. Ou José de Alencar (o “intelectual contente”, segundo Joel Rufino) e não Sousândrade (o “terremoto clandestino”, segundo os irmãos Campos). Não se vai muito longe assim…
Uma princesa apareceu ao meu lado no meio do 30M
Num texto recente, disse que a manifestação bolsonarista de 26 de maio não deveria ser comparada com a de 15 de maio. Nem mesmo essa comparação deveria ser estendida ao 30 de maio. Não é em absoluto um confronto nas ruas. O jogo de escalas que sugeri é a comparação entre as manifestações bolsonaristas anteriores e a de agora, como também a percepção de que, finalmente, talvez desde o inimputável organizador do Cebrap procurou criar uma nova Paris brasiliana, com seus ares de modernidade e de criação de subalternidade, com sua invenção do real. Quem caiu nessa tolice que a abrace até o fim: sem controle de câmbio, moeda supervalorizada e metas inflacionárias. Fora o baile da dívida pública, tão real quanto inexistente no debate público. Achei curioso um texto recente de Jeferson Miola onde diz que nenhuma comparação é válida entre as recentes manifestações. ” O comparativo numérico/quantitativo não permite captar o significado da jornada bolsonarista na sua essência e na sua complexidade”. Ele levanta a tese também defendida por Breno Altman da “Marcha sobre Roma”. O dia 26 seria a emulação do gesto de Mussolini. O problema de focar muito nos números de manifestantes é acabar no papel infame de “termômetro de Viagra”: foi maior!, está menor!, etc. Esse papel, do meu ponto de vista, tem que ser deixado aos comentaristas econômicos ao analisarem gráficos duvidosos para corroborar ideias pré-concebidas. A ideia preconcebida sempre presente é a da recuperação econômica dos EUA. Desde o segundo mandato de Obama é um refrão permanente, sem que se dissolva a percepção da decadência social e econômica do país, ainda mais dramática depois da crise de 2008. A tese da “Marcha sobre Roma” é ineficaz por não atentar para um fato incontornável do que foi a manifestação de 26 de maio: ela não aconteceu. No mais, apareceu ao telespectador como um vídeo-clipe metalinguístico e tautológico, assim como o da música Despacito, como analisado num texto do Cinegnose, de Wilson Ferreira. O inacreditável monólogo machista do bolsonarismo parece que virou uma mera masturbação sem mão amiga, ou seja, o autêntico monólogo machista. Assim, ela não pode ser considerada como o “batismo de sangue” (nome dado por Miola ao mussolinismo tupiniquim) das falanges bolsonaristas. Ela não aconteceu não só porque teve uma presença de pessoas risível por si só, como também são incomparáveis em ímpeto e fúria a, por exemplo, resposta das massas verde-amarelistas na av. Paulista quando Bolsonaro, às vésperas do dia das eleições, disse que iria “despetetizar o país”. Mas isso é só um exemplo. Objetivamente, o 26 de maio não aconteceu (para além das considerações termométricas viagrinas) porque elas foram montadas para atender a um objetivo previamente estipulado. Enquanto no dia 15 de maio todos se surpreenderam com a quantidade de pessoas, por sua qualidade (arrisco a dizer que cerca de 3/4 era composta por adolescente e jovens de no máximo 30 anos), e por não ter sido encampada por nenhuma organização social de maior relevo como a CUT e a UNE. Essas foram presentes, junto a inumeráveis outras organizações sociais, nas do dia 30 de maio, com o perfil de pessoas mais velhas, não necessariamente “velhos”, mas que não permitiram (pelo menos no Rio de Janeiro) as cantorias dos estudantes do Colégio Pedro II, praticamente o único a gritar palavras de ordem no dia 15. Com a não-manifestação do dia 26, o que se quis criar foi o que Wilson Ferreira, no mesmo texto sobre o Despacito no Cinegnose, chamou de “espiral do silêncio”: “o fenômeno partiria de uma percepção equivocada do indivíduo do que ele acredita ser um ‘clima de opinião’. Sempre podemos ter uma opinião que pode ser modificada frente a uma posição que achamos ser majoritária. Algo assim: se todos veem a coisa de uma maneira diferente do que penso, só posso estar errado”. Tentou se criar um “clima de opinião” tanto de que foi significativo o número de pessoas a se posicionar a favor de Bolsonaro, quanto que todos eles estão em uníssono a favor dos pacotes do Moro e do Paulo Guedes. Ora, se tinham bolsonaristas convictos (por isso que digo que não passam de 10% da população, quando muito, em situações de menos descontrole social como atualmente), eles defendiam bandeiras bastante distintas: em resumo, o projeto miliciano-ditatorial-evangélico-olavista que só com perpetração de um crime capaz de comover largamente a opinião pública (como outrora o caso Marielle, que serviu, através do assassinato, como símbolo catalizador das falanges bozo-milicianas) teria alguma chance de colar. Mas ainda assim estaríamos na instância das probabilidades mais remotas.

Mas eu resolvi falar em árabe

Se for para falar direito, portanto, melhor falar em árabe, ou seja, de trás para frente, de acordo com nossos padrões de escrita. Nesse sentido, queria ressaltar porque, segundo Lula, não se governa sem um partido político. Alguns podem compreender isso como uma mera proposição formalista ou até como um resquício de “desejo de poder” por parte do Lula. É como se ele estivesse sendo narcisista ao dizer que sem a construção de um grande partido de massas como o PT não se consegue governar com a mínima estabilidade. Me veio à memória agora esse posicionamento do Lula, porque parece que toda a torcida a favor da deposição do Bolsonaro se arrefeceu depois dos acordões que ele fez com Maia e Toffoli e, antes, à portas fechadas, com a Globo.
Só que ele não falou apenas sobre a necessidade de se governar com um partido político bem estruturado, mas também de, mais do que ser ouvido, ouvir o mais que puder todas as forças políticas em disputa. Para proteger o filho, Bolsonaro se aproximou da Globo. Flavio Bolsonaro saiu das manchetes rapidamente. Corroborando a narrativa da mídia a respeito da mini micareta fascista de 26 de maio, ele se juntou à elite política a favor do fim da Previdência Social. Aí, de uma hora para outra, houve uma acomodação geral, como se a ordem do dia, pelo menos entre uma parte mais do que significativa da população, não continuasse a ser o Fora Bolsonaro. A política de se criar uma “espiral do silêncio” teria surtido efeito? A capacidade de estabelecer relações com forças políticas antagônicas e de ter uma sustentação institucional e dos movimentos da sociedade civil (entenda-se: um partido forte), foi a marca do governo do Lula. Para implantar os projetos do governo federal, ele não fazia distinção de partido. Por exemplo, o Minha Casa Minha Vida foi implantada com relativo atraso em São Paulo, como também o projeto das UPAS. Isso não ocorreu por beligerância do chefe do executivo, mas porque os tucanos não queriam programas exitosos de oponentes políticos fazendo sucesso em seu curral eleitoral. Isso é um mero exemplo, mas mostra a distância de Lula da capacidade de articulação de um Bolsonaro. Somando essa leitura de Lula, a capacidade de compor, de aglutinar forças, que pela primeira vez Bolsonaro expôs nesses primeiros cinco meses completos de governo – tanto pela via do diálogo quanto pela via institucional – se mostram muito mais do que fracas para o que, nos padrões da leitura política de Lula, é necessário para se governar com estabilidade. Por si, esse arranjo, com o primeiro vento, tende a se desfazer… E o outro aspecto não considerado é que a economia do país não enfrenta há anos dificuldades tão grandes. Não há no horizonte a mínima expectativa de que alguma medida anti-cíclica possa ser tomada para dar conta da recessão. Sem a melhoria significativa da queda constante dos índices econômicos que enfrentamos desde que se iniciou a crise política, ou seja, com o início da Lava-Jato, do Não Vai Ter Copa e da eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara (lá sem vão quatro ou cinco anos), não há possibilidade alguma desse e de qualquer outro governo (Até do “temível” Mourão) pactuar e conseguir uma estabilidade mínima suficiente para poder se manter alguns meses sem enfrentar crises importantes. Com a suposta vitória de Bolsonaro nas últimas articulações (de mediana a baixa tendo em vista o conjunto de medidas propostas), não se justifica a queda generalizada do ânimo público contra sua permanência no governo. Não custa lembrar que uma presidência de Mourão também tende a ser altamente instável e questionada por várias frentes. A proposta neoliberal, mais do que as “trapalhadas” do Bozo, é o que trazem descontentamento à população. Os milicos estão prontos para engolir mais esse sapo, depois de acariciarem o capitão expulso? Será a total desmoralização das Forças Armadas, já bastante queimadas por seus últimos movimentos, todos Temerários. No mais, somente solapando toda e qualquer base não do “governo Bolsonaro”, mas do estado de exceção como um todo, dos golpista de uma maneira geral, é que se poderá restabelecer o estado democrático de direito novamente. Não é por outro motivo que o #forabolsonaro e o #lulalivre são as palavras de ordem mais populares do momento. Luís Nassif, em vídeo recente, disse existir um grupo considerável de “progressistas” apostando na estabilidade de Bolsonaro até 2022 e apostando todas as fichas nas próximas eleições. Isso é óbvio, mas o interessante é que Nassif tinha acabado de falar com eles e veio nos dizer da posição desses varões de Plutarco como que de primeira mão. Não deixa de ser estarrecedor. O questionamento básico é o seguinte: e as perdas que podemos ter até lá se essa hipótese utópica porventura vingar? Não tem como lutar dessa maneira. Se governa com partidos políticos e com articulações políticas. Se derruba o estado de exceção com as bases que constituem os partidos políticos e com articulações que não envolvem nenhum acordão entre membros permanentes do atual golpe de estado. Parece que os ânimos de muitos estão relaxados somente pelo acordo do Bozo com a Globo… Por que se acredita nesse atual estado de “normalidade”? Desde então, a discussão pública sobre o fim da Previdência Social jamais ocorreu com tão baixo nível de ruído desde o governo Temer. É impossível Bolsonaro não fazer ruído. Isso é algo que ele carrega durante toda sua existência. Afinal, elegeram tudo o que a classe-média mais abominava: um político do centrão cheio de maracutaias (derivada da antiga tese do mensalão), colocaram no poder uma verdadeira quadrilha (miliciana e não “petista) e, além do mais, podemos ver agora ao vivo um verdadeiro blackbloc com a faixa presidencial. Ele reúne tudo de bom que a classe média cultivou, com ódio, nos últimos anos. Para não derivar esse breve texto numa sociologia nem muito menos conspurcar meu javanês, termino com a imagem inicial dessa primeira entrevista do Lula. Claro que ele tinha um discurso para fazer, apesar de qualquer pergunta que os jornalista fizessem. Ele afirmou as necessidades necessidades institucionais acima mencionadas, como também não escondeu o sorriso ao constatar que o PSDB acabou. Talvez essa tenha sido a tarefa institucional ou partidária mais importante realizada pelo PT. Acabar com o PSDB é demolir o consenso pós-democrático estabelecido pela onda ultra-direitista da década de 1980 e consagrada com a queda do muro de Berlim. Para mim, sem sombra de dúvida, esse pequeno trecho – com seu indisfarçável sorriso – é o de mais significativo de tudo que Lula veio a falar depois que pôde se comunicar enquanto mantido em sequestro pelo aparelho de Estado.

Conclusão

Se O PSDB acabou, sobra Bolsonaro, Mourão, Dória, Huck… Não sobra nada. Daí a profunda crise de imagem das elites do país que não conseguem encontrar um líder para chamar. Saudosos tempos em que um príncipe francês, com seu selo real, imprimiu o governo dos sonhos – ao estilo República Velha – das classes dominantes. Como diz Paulo Henrique Amorim, FHC virou um personagem mitológico de Borges que só sobrevive das páginas do PIG. Se Lula acabou com esse partido, não derrubou o seu Real. Tarefa para os próximos anos, quando Bolsonaro, Trump e sei lá mais quem – todos eles – entrarem num caixão, numa caixa bem grande, e forem lançados definitivamente ao mar. Tarefa para uma sociedade não mais neomacartista, como a que ainda vivemos hoje, e a que Lula, com seus inúmeros “acordos”, soube muito bem negociar. Afinal, não importa qual tipo de Guerra Fria se viva, só com exaustivas negociações se consegue estabelecer pactos, ainda que provisórios. Sob essa égide pós-democrática ou de vigência do estado de exceção, não há paz duradoura. No caso específico do governo Lula, numa Nova Guerra Fria iniciada com o 11/09 e seu infame Ato Patriota, diretriz fundadora de todas as infrações à soberania dos Estados-nacionais cometidas de maneira recorrente nos últimos anos, como atesta seu episódio mais infame, a vigilância e a mineração massiva de dados. Que venha logo esse caixão, essa caixa bem grande, para depositarmos todos esses que jazem mortos por aí e fingem governar. A guerra acabou, agora se colhe seus amargos frutos. Vamos para os preparativos do pós-guerra. Afinal, o PSDB acabou… Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.
Redação

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