Anjos & insetos. VIII. O tamanho efetivo de populações

Anjos & insetos. VIII. O tamanho efetivo de populações

Por Felipe A. P. L. Costa [1]

Professor, mentor e cientista dos mais renomados, James F. Crow foi um dos principais nomes da genética ao longo do século 20. O biólogo estadunidense faleceu em 4/1/2012, dias antes de completar 96 anos.

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O mais velho dos dois filhos de Hollie Ernest Crow e Lena ‘Betsy’ Whitaker – ele um professor de biologia, ela uma dona de casa –, James Franklin Crow nasceu em Phoenixville, uma pequena cidade próxima a Filadélfia (Pensilvânia), em 18/1/1916. (O irmão caçula, Ernest, nasceu em 1920.)

Seu interesse pela ciência – e pela música – começou ainda na infância. Iniciou os estudos universitários na Universidade Friends, em Wichita (Kansas), onde o pai lecionava. Concluída a graduação (1937), foi para a Universidade do Texas, em Austin, onde fez o doutorado (1941). Pretendia trabalhar com Hermann J. Muller (1890-1967), mas trabalhou sob orientação de John T. Patterson (1878-1960) e Wilson S. Stone (1907-1968) [2]. Paralelamente, integrou a orquestra da universidade. Lá conheceu Ann Crockett – ele tocava violino e ela, clarinete. Os dois se casaram em 1941 e viveram juntos até o falecimento dela, em 2001; o casal teve três filhos, Franklin, Laura e Catherine.

Planejava fazer um pós-doutorado com Sewall Wright, na Universidade de Chicago [3]. Todavia, a conjuntura sombria da época terminou fazendo com que ele alterasse os planos: em vez de se candidatar a uma bolsa de estudos, foi atrás de um emprego. Iniciou a carreira na Faculdade de Dartmouth, em Hanover (New Hampshire), onde lecionou de 1941 a 1948. Em virtude da guerra, como o corpo docente era reduzido, ele passou a ministrar várias disciplinas (e.g., genética, estatística, parasitologia, anatomia comparada, endocrinologia). A experiência reforçou o seu gosto pelo trabalho em sala de aula.

Em 1948, por sugestão do microbiologista Joshua Lederberg (1925-2008), recebeu uma oferta de emprego da Universidade de Wisconsin, em Madison (Hartl & Temin 2014). (Lederberg – agraciado com o Nobel em 1958 – e ele haviam se conhecido em um encontro científico, no ano anterior. A partir de então, os dois se tornaram grandes amigos.) Em Madison, onde permaneceria até o fim da vida, sua carreira de pesquisador decolou. Mas continuou sendo um professor dedicado. Entre 1948 e 1986, quase sem exceção, ministrou uma disciplina de genética básica (‘General Genetics 560’).

Lynn Margulis (ver ‘Um modelo para a origem das células mitóticas’) foi aluna dele (Margulis 2001, p. 24; grafia original):

Aprendi genética geral e depois genética de populações com meu principal professor, James F. Crow. Adorei o curso de genética geral de Crow; ele mudou a minha vida. Eu sabia, ao deixar a Universidade de Chicago, que queria estudar genética, mas após as aulas de Crow eu sabia que queria estudar genética.

Crow se aposentou em 1986, mas continuou ativo. Mesmo aos 95 anos, ia ao campus quase todo dia – dias antes de falecer, por conta de um manuscrito, esteve em sua sala. Ex-alunos (e.g., Hartl 2011; Otto 2012) o descreveram como um professor notável, além de um sujeito extremamente gentil e atencioso.

Alguns exemplos

Ao longo de sua extensa carreira, Cow publicou livros, capítulos de livros e um sem-número de artigos – começando em 1939 (para uma relação, ver Otto 2012). Manteve o costume de só assinar um artigo quando tivesse efetivamente participado do trabalho, mesmo quando o coautor ou coautores eram alunos seus – um critério aparentemente óbvio, mas que está longe de ser universal.

Dos livros que publicou, Fundamentos de genética (RJ, LTC, 1978) talvez seja o que se tornou mais popular. A versão brasileira, fora de catálogo há muitos anos, é uma tradução da 7ª edição (1976), intitulada Genetic notes (ou Crow’s notes, como os alunos chamavam) – a 8ª e última apareceria em 1983.

Escrito em coautoria com o biólogo japonês Motoo Kimura (1924-1994), o livro An introduction to population genetics theory (Crow & Kimura 1970), talvez seja a mais citada de suas obras. Kimura, um ex-orientando de Crow, tornou-se conhecido como o proponente da teoria neutra da evolução molecular (Kimura 1968, 1983). Além do livro, hoje um clássico, os dois publicaram vários artigos juntos, muitos deles inovadores e marcantes. Um exemplo seria Kimura & Crow (1963) [4], artigo no qual eles tratam do tamanho populacional efetivo, um conceito originalmente formulado por Wright (1931).

O tamanho populacional efetivo (Ne) costuma ser definido como o número de indivíduos que, sob condições ideais, teria o seu fundo gênico exposto aos mesmos riscos de mudança aleatória (deriva) que uma população real. O conceito parte do princípio de que a estrutura reprodutiva de populações naturais nem sempre se ajusta com facilidade aos pressupostos dos modelos teóricos. Diversos fatores podem levar a desajustes, incluindo flutuações bruscas no tamanho da população, razão se-xual aberrante e variações na estrutura demográfica.

Diz-se que há deriva ou deriva genética aleatória – do inglês random genetic drift, expressão às vezes erradamente traduzida como ‘oscilação genética casual’ – quando o fundo gênico de uma população é afetado por ‘erros de amostragem’ (ver Freeman & Herron 2009; para detalhes técnicos, ver Hartl & Clark 2010). O impacto do processo é inversamente proporcional ao tamanho da população, de sorte que a sua relevância tende a ser mais significativa em populações pequenas.

O valor de Ne costuma ser inferior ao número de indivíduos presentes na população (N), ainda que a magnitude da diferença varie de acordo com as circunstâncias. Por exemplo, quando o número de machos e fêmeas é muito desigual, Ne < N, e essa diferença cresce à medida que a razão sexual se torna ainda mais desigual. Vejamos um exemplo.

Seja uma população constituída de 100 fêmeas e 10 machos adultos. Assim, embora N = 110, o valor de Ne é de apenas 36 indivíduos, em virtude da assimetria na razão sexual [5]. Caso fossem 100 fêmeas e 1 único macho, o valor seria ainda menor (Ne < 4). Em outras palavras, essas duas populações, cujas razões sexuais são tão aberrantes (10:1 e 100:1), estão sujeitas a mudanças aleatórias de magnitude equivalente às mudanças esperadas em duas populações (ambas com uma razão sexual de 1:1) constituídas por apenas 36 e 4 indivíduos, respectivamente. Em ambos os casos, o risco e o impacto de mudanças aleatórias – uma preocupação de quem lida com populações ameaçadas de extinção, por exemplo – poderiam ser minimizados por meio da introdução deliberada de machos, tornando assim a razão sexual menos desigual.

“Por que reverenciar o Jim?”

Crow transitou por diversas áreas da genética, acompanhando as transformações experimentadas pela disciplina ao longo do século 20, além de ajudar a sedimentar os seus alicer-ces. Lidou com questões teóricas da maior relevância, sem deixar de lado demandas e problemas imediatos. Mutação, carga genética, deriva e endogamia eram temas frequentes em seus escritos; mas ele escreveu também sobre a resistência a inseticidas, os efeitos biológicos das radiações e a presença de alelos deletérios em populações humanas [6].

Nos últimos anos, vinha publicando artigos de revisão e relatos históricos, em geral a partir de situações que ele próprio vivenciou. A leitura desses artigos é instrutiva. Eis alguns exemplos (Crow 1999, 2003, 2008, 2009): (i) ‘Hardy, Weinberg and language impediments’, sobre a formu-lação do princípio de Hardy-Weinberg, um tipo de ‘hipótese nula’ do processo evolutivo; (ii) ‘Was there life before 1953?’, sobre a genética, antes e depois do surgimento da ‘era molecular’; (iii) ‘Maintaining evol-vability’, sobre a persistência de variabilidade genética (e, portanto, do potencial evolutivo) em populações naturais; e (iv) ‘Mayr, mathematics and the study of evolution’, sobre um famoso e instrutivo imbróglio envolvendo alguns personagens que ajudaram a elaborar a teoria sintética da evolução (ver ‘Falsos problemas científicos’).

Além de professor e pesquisador, James Crow atuou em outras esferas do serviço público, participando de comi-tês e conselhos gestores, tanto em âmbito nacional como internacional; assumiu vários cargos administrativos, dentro e fora do meio acadêmico (Abrahamson 2012).

Recebeu diversas honrarias e homenagens ao longo da vida. Uma das mais significativas talvez tenha sido a adoção de seu nome para batizar o J. F. Crow Institute for the Study of Evolution, um centro multidisciplinar de pesquisa, ensino e extensão da Universidade de Wisconsin, criado em janeiro de 2010. Em dezembro de 2011, a revista Genetics, com a qual ele colaborava desde a década de 1940, anunciou que publicaria uma série de artigos em sua homenagem.

Segundo os editores (Turelli & Langley 2011, p. 1127; tradução livre) [7]:

Com este número, nós iniciamos uma série de artigos ‘Perspectivas & Revisão’ em reverência ao nosso colega James F. Crow, que, junto com esta revista, celebrou este ano [2011] o seu 95º aniversário. Por que reve-renciar o Jim? Para muitos que têm o privilégio de conhecê-lo, a resposta é óbvia: um cavalheiro e erudito do mais alto nível, ele representa o melhor do nosso campo.

Jim Crow é um elo vivo entre nossas gerações e os fundadores da genética de populações. Jim foi colega de Sewall Wright, na Universidade de Wisconsin, em Madison, durante décadas (1955-1988); Jim iniciou uma amizade com Ronald Fisher em um bate-papo regado a champanhe im-provisada, nos anos 40; e ele acolheu J. B. S. Haldane para uma memorável palestra em Madison, no início dos anos 60 (após saber pelo New York Times que a Carolina do Norte havia cancelado uma palestra pública desse famoso comunista). Poucos geneticistas de populações não têm um significativo débito intelectual com Jim; ninguém desconhece a sua maestria em nosso campo e nas interações humanas. Para muitos de nós, Crow & Kimura (1970) foi uma introdução elegante e inspiradora aos modelos matemáticos que formam a base da teoria genética de populações. Crow materializa o ideal de uma época saudosa quando os modos e as roupas eram um sinal de refinamento. E ninguém que o encontre ficará surpreso ao descobrir que ele é um [violinista] habilidoso.

Coda

A pretensão, como se vê, era promover uma comemoração em vida; lamentavelmente, porém, a publicação se converteu em uma homena-gem póstuma (Hartl 2012).

James Crow faleceu enquanto dormia, em casa, em Madison. Era viúvo. Deixou os três filhos, seis netos e dois bisnetos. Além de um grande mestre, a genética perdeu também um raro cavalheiro.

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Notas

[1] O título deste artigo – os sete anteriores estão aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui – faz alusão ao filme Angels & insects (1995), de Phillip Haas, adaptado do romande Morpho eugenia (1992), da escritora inglesa A. S. Byatt (assinatura literária de Antonia Susan Duffy [nascida em 1936]).

[2] Hartl & Temin (2014). Hermann J. Muller foi posteriormente laureado com um Nobel (1946) por seus estudos a respeito dos efeitos genéticos da radiação. Simpático a posições de esquerda, terminou saindo do país. Foi para a Alemanha (1932); esteve em outros países, incluindo a União Soviética e a Escócia; voltou aos EUA em 1940. Durante a II Guerra, participou do Projeto Manhattan. A linha de pesquisa de Patterson envolvia os efeitos genéticos da radiação; antes disso, ele havia estudado a poliembrionia em tatu-galinha (Dasypus novemcinctus), pesquisa pela qual se tornou conhecido.

[3] Sewall Wright (1889-1988) e ele seriam ‘vizinhos de gabinete’ durante muitos anos. Em 1953, às vésperas de se aposentar, Wright recebeu dois convites, um da Universidade da Pensilvânia e o que viria a aceitar, de Wisconsin. Em 1954, ele e a esposa se mudaram para Madison – sobre a vida e obra de SW, ver Provine (1986).

[4] Outro exemplo seria Kimura & Crow (1964), artigo no qual eles mostram que

F ≈ 1 / (4Neu + 1),

onde F seria a probabilidade de que um indivíduo retirado ao acaso da população seja homozigoto para um dado gene; Ne representa o tamanho populacional efetivo e u é a taxa média de mutação do referido gene. (Pressupõe-se que os alelos sejam neutros e que cada mutante difere dos demais alelos preexistentes.) A expressão (4Neu + 1) equivale ao número de alelos mantidos na população. Quando 4Ne é muito inferior à recíproca da taxa de mutação (1/u), a maioria dos indivíduos será homozigoto para o referido gene. Seja u = 10–6, se Ne = 107, teremos então F (em %) ≈ 2,4% e (4Neu + 1) = 41 alelos; se Ne = 106, F = 20% e (4Neu + 1) = 5; e se Ne = 105, F ≈ 71% e (4Neu + 1) = 1,4. Estes são os valores previstos pelo modelo, os quais devem ser então comparados a valores observados em populações. Para detalhes, ver Crow & Kimura (1970); em português, ver Hartl & Clark (2010).

[5] No caso de razão sexual aberrante, o tamanho efetivo equivale a

Ne = 4Nm x 4Nf / (Nm+Nf),

onde Nm e Nf indicam o número de machos e fêmeas, respectivamente. No primeiro caso (Nm = 10; Nf = 100), teríamos

Ne = 4(10)(100)/(10+100) ≈ 36.

Para detalhes, ver Hartl & Clark (2010).

[6] Eis o comentário que recebi de Fernando Roberto Martins (Unicamp), em mensagem de correio eletrônico enviada em 1/3/2012:

O que vou escrever a partir daqui não tem nenhuma base bibliográfica, é apenas uma impressão. Creio que Crow teve um papel primordial para esfriar o fervor eugenista que tomou conta dos EUA no início do séc. xx. Sabe-se que a eugenia nasceu com [Francis] Galton [1822-1911], primo de Darwin, na Inglaterra, e que se desenvolveu fervorosamente nos EUA e muito na Europa, onde se adaptou muito bem aos modelos de governos totalitários, como os de Hitler, Mussolini e Stalin. Mas, enquanto a pesquisa nos EUA não era controlada pelo Governo (não havia comitês ditando o que era ciência e o que não era, como nos governos totalitários), os governos europeus totalitários só aceitavam os paradigmas que se conformavam ao seu modelo de governar (veja-se, por exemplo, o famoso caso Lysenko vs. Vavilov, na União Soviética). Como a pesquisa era livre nos EUA, logo se descobriu (Crow descobriu) que agentes do meio ambiente induziam mutação. Ora, se o ambiente induzia mutação, então toda a construção eugênica poderia resultar em nada – esse foi o pensamento nos EUA. Mas, se o ambiente induzia mutação, então se poderiam dirigir as mutações para construir uma raça superior – esse foi o pensamento dominante nos governos totalitários. Como os comitês totalitários ditavam o que era ciência e o que não era e eles não existiam nos EUA, logo diminuiu a sanha eugênica no Tio Sam, mas não na Europa, e um dos grandes nomes ligados à destruição do castelo eugênico foi justamente Crow.

Para uma revisão histórica da eugenia, ver Allen (2011).

[7] Para comentários a respeito de Wright, Fisher e Haldane, ver ‘Sobre o darwinismo’; sobre este último, ver ainda ‘Anjos e insetos. IV. Sopa primordial e transições evolutivas’.

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Referências citadas

+ Abrahamson, S. 2012. James F. Crow: his life in public service. Genetics 190: 1-4.

+ Allen, GE. 2011. Eugenics and modern biology: critiques of eugenics, 1910-1945. Annals of Human Genetics 75: 314-25.

+ Crow, JF. 1999. Hardy, Weinberg and language impediments. Genetics 152: 821-5.

+ ——. 2003. Was there life before 1953? Nature Genetics 33: 449-50.

+ ——. 2008. Maintaining evolvability. Journal of Genetics 87: 349-53.

+ ——. 2009. Mayr, mathematics and the study of evolution. Journal of Biology 8: 131-4.

+ —— & Kimura, M. 1970. An introduction to population genetics theory. NY, Harper.

+ Freeman, S & Herron, JC. 2009. Análise evolutiva, 4ª edição. P Alegre, Artmed.

+ Hartl, DL. 2011. James F. Crow and the art of teaching and mentoring. Genetics 189: 1129-33.

+ ——. 2012. James F. Crow (1916-2012) a remarkable geneticist, a remarkable man. Genetics 190: 1-2.

+ —— & Clark, AG. 2010 [2007]. Princípios de genética de populações, 4ª edição. P Alegre, Artmed.

+ —— & Temin, BG. 2014. James F. Crow 1916-2012: A biographical memoir. Washington, NAS.

+ Kimura, M. 1968. Evolutionary rate at the molecular level. Nature 217: 624-6.

+ ——. 1983. The neutral theory of molecular evolution. Cambridge, CUP.

+ —— & Crow, JF. 1963. The measurement of effective population number. Evolution 17: 279-88.

+ —— & ——. 1964. The number of alleles that can be maintained in a finite population. Genetics 49: 725-38.

+ Margulis, L. 2001 [1998]. O planeta simbiótico. RJ, Rocco.

+ Otto, PA. 2012. In memory of James F. Crow (1916-2012), a life dedicated to population genetics; with an updated list of his publications. Genetics and Molecular Biology 35: 200-1.

+ Provine, WB. 1986. Sewall Wright and evolutionary biology. Chicago, U of Chicago P.

+ Turelli, M & Langley, C. 2011. Honoring our colleague James F. Crow, an outstanding gentleman, citizen, and scientist. Genetics 189: 1127.

+ Wright, S. 1931. Evolution in Mendelian populations. Genetics 16: 97-159.

*

[Nota adicional: artigo extraído e adaptado do livro O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017); para informações a respeito da obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, ver aqui; para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.]

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