Bons e maus miseráveis, boa e má caridade, por Paulo Fernandes Silveira

Para Foucault, os hospitais gerais, as casas de trabalho e as casas de correção promovem uma espécie de caridade estatizada, contrária às formas particulares de ajuda aos miseráveis, que alimentam o mal

(Imagem do livro Vies ordinaires. Vies précaires, de Guillaume le Blanc)

Bons e maus miseráveis, boa e má caridade

por Paulo Fernandes Silveira

Portanto, não se trata mais de exaltar a miséria no gesto que a alivia, mas, simplesmente, de suprimi-la. Dirigida à Pobreza como tal, a Caridade também é uma desordem” (Michel Foucault, História da loucura na Idade Clássica, p. 58).

Num belo ensaio, Salma Muchail analisa as abordagens que Michel Foucault faz dos discursos da tradição filosófica “enquanto integrantes de um ‘dispositivo’ de poder, seja como peças de sustentação, seja como instrumentos de luta” (1995, p. 17). No livro História da loucura na Idade Clássica, por exemplo, Foucault percorre uma série de discursos filosóficos, científicos, religiosos e jurídicos que ancoram as políticas públicas sobre esse tema. Como observa Guillaume le Blanc, essa história da loucura traçada por Foucault está diretamente articulada à uma história da pobreza (2013, p. 173).

Na passagem da Idade Média para o Renascimento, há uma notável mudança nos discursos sobre a miséria e a caridade (FOUCAULT, 1997, p. 56). Com os textos relacionados à Reforma, cujos discursos não indicam um caminho de salvação comum      à pobreza e à caridade, prepara-se uma nova sensibilidade. Os miseráveis deixam de ser vistos como pessoas que devam convocar a caridade de todos, para ser compreendidos como um obstáculo à ordem social. Um dos elementos principais dessa mudança foi a laicização das obras (FOUCAULT, 1997, p. 58).

Algumas décadas depois, diversos países da Europa passam a delegar ao Estado a tarefa de retirar os loucos e os miseráveis das ruas. Ao abordar essa questão, Foucault cita o discurso de um influente jurista inglês do século XVII: “E ninguém será tão fútil, nem quererá parecer tão pernicioso aos olhos do público, que dê esmolas a esses mendigos ou os encoraje” (1997, p. 58). Esse processo culmina com a implementação das casas de trabalho (workhouses), na Inglaterra, das casas de correção (Zuchthäusern), na Alemanha, e dos hospitais gerais (hôpitaux généraux), na França.

No caso da França e, mais especificamente, de Paris, o número de miseráveis vivendo nas ruas aumenta muito por causa da Fronda, as guerras civis ocorridas em meados do século XVI. Além disso, como pontua Claude Quétel, a urbanização crescente transformou a capital da França num espaço privilegiado para todos aqueles que mendigavam sua subsistência: os que carecem de trabalho, válidos ou inválidos, todo tipo de aleijados, de desertores e de prostitutas, crianças abandonadas, idosos, loucos, epiléticos, etc. (2000, p. 114-115).

É nesse contexto que se configura a distinção entre o pobre bom e verdadeiro, que não teve oportunidades, mas que tem condições de trabalhar pela cidade, e o pobre ruim, ocioso e perigoso, “sem religião, imoral, vetor de todas as pestes, capaz de todas as delinquências, propagador da prostituição e da loucura” (QUÉTEL, 1981, p. 46). Indiscriminadamente, válidos ou inválidos para o trabalho, os mendigos são levados para os hospitais gerais. No século XVI, pelo menos um décimo dos 40.000 mendigos de Paris foram aprisionados nesses locais (QUÉTEL, 2000, p. 115).

Para Foucault, os hospitais gerais, as casas de trabalho e as casas de correção promovem uma espécie de caridade estatizada, contrária às formas particulares de ajuda aos miseráveis, que alimentam o mal (1997, p. 59). Para Quétel, que segue as diretrizes do livro La société et les pauvres en Europe: XVIe-XVIIIe siècles, de Jean-Pierre Gutton, foi preciso realizar uma reformulação teológica e filosófica do conceito de caridade para que a imposição do trabalho obrigatório nessas instituições pudesse ser compreendida como algo necessário e positivo (1981, p. 44).

O que se perde com essa mudança? O que se perde quando a caridade, o cuidado ou a bondade particular de um indivíduo para com o outro deixam de existir, ou pior, tornam-se recrimináveis pelo Estado e pela sociedade? O psicanalista Fabio Landa me contou que, para Emmanuel Lévinas, cujo pensamento e trabalho foram marcados pelos horrores da Shoah, a resposta a essa questão encontra-se no livro Vida e destino, de Vassili Grossman, romancista russo que viveu os horrores do totalitarismo stalinista (POIRIÉ, 2007, p. 128). Em meio a uma realidade triste e vazia, Grossman descreve cenas de uma bondade pura, sem testemunhas, sem ideologias, sem sentido, gestos que nos fazem lembrar que ainda somos humanos.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

Referências bibliográficas

FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva: 1997.

LE BLANC, Guillaume. História da loucura na Idade Clássica: uma história da pobreza. In: MUCHAIL, Salma; FONSECA, Márcio; VEIGA-NETO, Alfredo (Orgs.). O mesmo e o outro: 50 anos de História da Loucura. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 173-187.

LE BLANC, Guillaume. Vies ordinaires. Vies précaires. Paris: Éditions du Seuil, 2007.

MUCHAIL, Salma. Foucault e a história da filosofia. Tempo Social, n. 7, p. 15-20, 1995. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ts/v7n1-2/0103-2070-ts-07-02-0015.pdf?fbclid=IwAR0cLVr8TUbRg2qJ0iKr4WroGgmcBDfxMBkIMEySo-6FkyEu9MLuWeEpFPE

POIRIÉ, François. Emmanuel Lévinas: ensaio e entrevistas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

QUÉTEL, Claude. El problema del encierro de los insanos. In: POSTEL, Jacques; QUÉTEL, Claude (Orgs.). Nueva historia de la psiquiatría. México: Fondo de Cultura Económica, 2000, p. 112-136.

QUÉTEL, Claude. En maison de force au siècle des Lumières. Annales de Normandia, n. 13, p. 43-79, 1981. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/annor_0570-1600_1981_hos_13_1_3861

 

Redação

1 Comentário

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  1. É curioso como o liberalismo econômico obriga o estado e interferir na miséria que ele deixa acontecer.
    Se é para o estado não interferir, o liberalista deveria se incumbir de resolver esse assunto e deixar o estado ser só estado.
    Aqueles que têm mas não querem que os outros tenham e nem querem dividir o que conseguem ter.
    Aqueles que tiram dos que não tem para terem até sobrar, têm que achar a miséria linda e não se incomodar com ela.
    Acham feio, acham que é vagabundagem, acham que tem que ter polícia, cadeia, sanatórios, casas de correção, juizados… Que tirem de seus bolsos para financiá-los em vez de promoverem lindos chás beneficentes regados a champanhes e roupas caras, já que nem impostos querem pagar.

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