Crônica de um Natal que ainda vai voltar, por Luis Nassif

Publicado originalmente em 25.12.2019

Minha família, pelo menos o círculo mais próximo, não pratica o discurso de ódio. Temos algumas diferenças, nenhuma no plano moral. Antes, julgava ser um padrão normal de família classe média brasileira. Hoje em dia, agradeço a Deus pelo presente. Tias, irmãs, filhos, netos, primos próximos, todos preservam os princípios morais dentro dos quais fomos educados.

Há dissidências em algumas tias e primos mais afastados, mas educação suficiente para não externar as divergências em reuniões familiares.

O que me aflige, no contato com os bolsominions, é justamente o plano moral. Apoiar uma pessoa intrinsicamente imoral, como Jair Bolsonaro, é prova de falha de caráter.  É compactuar com a imoralidade.

E, olhe, jamais dividi as pessoas em bons e maus, de acordo com suas inclinações políticas. Mais que tolerância, sempre tive profundo interesse pela divergência. É a divergência que traz novas informações, permite reavaliar posições, de tal maneira que, no final da polêmica, os dois lados saem mais sábios.

Aliás, foi isso que me ensinou minha caçula Dodó quando, com 16 anos, saiu de um grupo de feministas maduras, que a utilizavam para desconstruir artigos contrários. Deixou de lado um fã clube de amigas adultas, que a cobriam de likes, por discordar da polêmica como instrumento de guerra contra o inimigo.

Da neta Cacá, com pouco mais de 10 anos, ouvi a seguinte indagação:

– Vovô, você fala para não termos preconceito contra ninguém. Mas posso ter preconceito contra o preconceituoso?

Foi autorizada.

Neste Natal, nos dividiremos entre as várias famílias, os Nassif propriamente ditos, os Sarraf, do lado de minha mãe, os Mesquitas, do lado das tias Nassif, que encontrarei em Poços de Caldas, os Aguirre, de sobrinhos do primeiro casamento, vários grupos familiares que se encontraram ao longo da minha vida, se juntaram e se tornaram uma comunidade única, porque compartilhando os mesmos valores da tolerância e da celebração da alma brasileira. Enfim, uma autêntica família brasileira, de descendentes de libaneses, sírios, italianos, portugueses, brasileiros, caipiras brasileiros, mas, acima de tudo, brasileiros.

Ao meu lado, a companheira Eugênia, que me ganhou no primeiro encontro, ao ver o plástico na traseira de seu automóvel: “Guaranésia, orgulho de sua gente”.

Mas o que fizeram com o interior, o que fizeram com a classe média, o que fizeram com o Brasil? Depois do Natal, sigo para Poços de Caldas e não sei o que irei encontrar. Não perdôo Sérgio Peru de ter se tornado um bolsonarista e espero nem vê-lo por perto quando chegar em Poços.

E não é pelas posições políticas, é pela imoralidade de apoiar um imoral.

Em outros tempos, meu avô Issa, udenista dos carrancudos, era amigo do Sebastião Trindade, comunista e eletricista, que tinha uma rotina semanal de visitar minha avó Marta, igrejeira convicta, para conversar sobre santos.

Havia momentos de raiva, sim. Pelo que me contou a vó Marta, meu avô comandou uma campanha inclemente contra o Dr. Martinho, candidato a prefeito, que além de santo era o melhor amigo do meu pai, e padrinho da minha irmã Inês. Ninguém se torna amigo de Carlos Lacerda sem sequelas.

A reação veio das amigas de Igreja da vó Marta, que fizeram uma vaquinha para colocar um anuncio no Diário de Poços, com críticas ao meu avô e defesa do dr. Martinho.

– E a senhora, como ficou nessa, vó?, indaguei dela.

– Ah, meu neto, eu tinha um dinheirinho guardado e ajudei na vaquinha.

Eram tempos em que as mulheres comandavam silenciosas revoluções familiares contra a agressividade dos maridos. E hoje, quando as próprias esposas, donas de casa, estão impregnadas do ódio secular, que emergiu das cavernas do bolsonarismo e invadiu os mais recônditos recantos familiares, todas as revanches contra a vida forjadas no exercício diuturno do ódio?

A companheira se desiludiu com Guaranésia quando uma sobrinha querida, frequentadora de missas dominicais, afirmou que queria ver Lula morto. Como pode alguém desejar a morte de outro, com essa facilidade? Como pode alguém que se pretende religioso defender a morte de alguém?

Um dos capítulos que mais me chocou, nesses tempos de ódio, foi certa vez, no Rio de Janeiro, passando em frente ao apartamento de Sérgio Cabral Filho. A esposa conseguira uma prisão domiciliar, para cuidar do filho, que tinha menos de 10 anos. Em frente da casa, urubus e gralhas berrando com violência imprecações para que a criança ouvisse. Algumas das gralhas certamente eram mães de família. Mas incapazes de se condoer, nem digo com a esposa de Cabral, mas com o filho.

O país emergiu das profundezas das senzalas, dos porões, das salas de tortura e passou a celebrar publicamente o pau-de-arara, a cadeira do Dragão, empalamentos, pimentinha, o pentatol sódico, os estupros e todo o conjunto de práticas dos porões, que está na base da formação da família Bolsonaro.

Mesmo assim, não passarão. Passada a grande noite do pesadelo, em um ponto qualquer do futuro haverá um reencontro no Natal brasileiro. Há de cair a ficha do país. Em consideração aos laços familiares, os imbecis, imorais, ignorantes não serão cobrados por esses tempos de insânia e bestialidade.

Todos lembrarão os antepassados, os momentos felizes em que o lado civilizado do país aproveitava o Natal para reencontros, reconciliações, celebrações.

E cantaremos as canções natalinas, que ajudaram a construir a alma de um país que eu quero de volta.

 

 

 

 

Luis Nassif

Luis Nassif

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  • Considerem-se abraços, todos dessa ''sua ENORME FAMÍLIA''. Em você, um grande aperto de mão, cúmplice, parceiro. Queremos de volta o país que já foi nosso. Bom encontro de Natal, Nassif.

    • Nassif, admiro sua persistência na difusão da informação segura com posicionamento claro contra a desfaçatez e ignomínia que tomou conta do país. Vamos derrubar este gigante de pés de barro, como na profecia de Daniel. Pode demorar, mas a mentira não pode vencer num país como o nosso, embora a destruição pela qual ele passa vai demandar no futuro uma reconstrução que - concordo com outros aqui - será longa, muito longa. Temos de aprender da história. e a sua história de natal é genial porque é um depoimento honesto de quem admira e ama sua família, sem preconceitos. Só aquele de sua neta contra os que que nutrem preconceitos - às vezes, sórdidos - contra
      os outros. Abraço. Roberto Z (rezwetsch@gmail.com)

    • 'Sentou o cacete' em quem pensa diferente mas diz pregar a civilidade? Tempos felizes e passados? Nestes 40 anos de Redemocracia sob as bençãos de Constituição Cidadã que Partidos Progressistas protegerem e se cumpliciaram com Luiz Zveiter? Que defenderam com unhas e dentes o Monopólio do Futebol de RGT? Então quem fez isto nestes 30 anos? Trump? Bolsonaro? Quem destruiu o Espirito Natalino de Jesus Cristo, falando em Política e nos 'Novos Santos' de um Messianismo Católico-Marxista não foram os Padres Comunistas, que criaram uma Legião de Evangélicos ?!! Parabéns Boff!! Parabéns Arns!! Vimos nestes 30 anos, as maravilhas socialistas produzidas em Bolsa de Valores de NY e Residências e Cidadanias Americanas e Européias !! Como ter novamente este Natal? Só viajar para as Potências Colonialistas Capitalistas para visitar Filhos e Netos. Tentem disfarçar. Sabemos que nada acontece, até alguém dar uma escorregada e correr para Miami, não é Dória?! A culpa? Esta é do Povo e da Guilhotina. Aqueles que estão sob o cabresto de 90 anos de Estado Ditatorial Caudilhista Absolutista Assassino Esquerdopata Fascista. Assim como conseguem assumir os erros e golpes produzidos por Folhas, Estadões, Globos, Vejas,..assumam que foram vocês que rechearam esta Imprensa Indigesta e Golpista. Então exterminando estas 9 décadas e a Indústria da Miséria no país mais rico do planeta, poderemos voltar a ser cabeça e não rabo. Não sobrou mais ninguém, pelo menos assumam estes 90 anos entre Medíocres e Mediocridades. Aí então FELIZ NATAL !!!!!

      • A Direita sempre decidiu os rumos desse país, sempre exterminou o fio de esperança que se cria a cada minuto nos redutos da pobreza e da necessidade, a esquerda por sua vez tentou curar o pouco que lhe podia e restava durante todos esses “90 anos” ! Ou D. Pedro I e II eram esquerdopatas ?? Marechal Deodoro era esquerdopata ?? Rui Barbosa era esquerdopata ?? Floriano ? Prudente ? Rodrigues ? Afonso ? Getúlio ??? Os milicos da ditadura ??? Sarnento ?? Collor ?? O que estamos passando atualmente é o escárnio de tudo que vivemos intensamente na nossa história... A diferença é que tivemos um momento de 12 anos que nos fizeram entender que existe vida após a morte da sociedade. Vivemos momentos de mais respeito, mais fartura, mais justiça social, mais instituições à serviço do povo, é isso que faz a diferença pra entendermos o que estamos vivendo agora.

        • Sempre é muito tempo. Mas é a doutrinação imposta pelo Revisionismo Histórico. D. Pedro e 1.a República? Cabeça então, antes da Ditadura Esquerdopata-Fascista transformar em rabo?! De Castro Alves? De Luiz Gama? De André Rebouças? De Lima Barreto? De Carlos Gomes? De Santos-Dumont? De Machado de Assis? Do primeiro e único Presidente Negro que já tivemos: Nilo Peçanha !! Mas como se dá o milagre entre a tal Elite Latifundiária Escravocrata? Como o Revisionismo Histórico explica isto? E toda Elite Negra, Mulata e Miscigenada que era o Alicerce desta Sociedade? Sabemos. Uma coisa é uma coisa...grande filósofo-presidente FHC. Também de invenção desta Elite da Ditadura Esquerdopata-Fascista. Não é a Nação das Coincidências? Pobre país rico. Mas de muito fácil explicação.

          • Como Sartre diria, o entendimento dos universais antropológicos nos leva ao caminho impenetrável das condições epistemológicas e cognitivas exigidas. Por outro lado, o monismo confuso característico de algumas vertentes contemporâneas cumpre um papel essencial na formulação da fundamentação metafísica das representações. De maneira sucinta, a interioridade do Ser social, eminentemente enquanto Ser, prova que a infinita diversidade da realidade única representa uma abertura para a melhoria do antiplatonismo fichteano resultante dos movimentos revolucionários de então.

            No entanto, não podemos esquecer que o ceticismo sistemático auxilia a preparação e a composição dos testes de falseabilidade das teorias científicas. Este pensamento está vinculado à desconstrução da metafísica, pois o Cosmos submetivo aos poderes do puro-devir justificaria a existência da condição de verdade de proposições elementares como ((p ^ ~q) -> (~r v (p r))).

  • O que fizeram com "o Brasil", "a classe média", "o interior" ? Simplesmente arrebentou-se (felizmente) a casca frágil dessas abstrações vazias, dessa civilização e dessa nação inexistente. Se há algo unificador nesse Estado nação é a violência, a exclusão do outro, o cristianismo reacionário e hipócrita. Esse processo quase psicanalítico de encarar a verdade é angustiante, mas necessário.

    Eu já há um bom tempo não faço questão alguma de ouvir o pai nosso puxado pelo tio que sempre apoiou a ditadura, diz que em favela só tem bandido, e conta sempre "piadas" racistas e homofóbicas. Libertar-se de relacionamentos tóxicos impostos por convenções é libertador, ainda mais desse conceito de família também conservador. Não há como tolerar a intolerância, nem ser familiar a ela.

    Quando "essa nuvem escura" passar, se houver uma civilização, uma nação, será a que construiremos, porque isso nunca houve aqui, a não ser no modo de abstrações vazias.

    • Saudade é amar um passado que ainda não passou,
      é recusar um presente que nos machuca,
      é não ver o futuro que nos convida…
      Pablo Neruda

      ¡Que Viva Chile!
      .

      • "Ainda que esta seja a ultima dor que ela me causa,e estes,os últimos versos que lhe escrevo".
        Grande arks agora Brasil,por onde andava companheiro,cheguei a pensar que as milícias tinham cercado você.
        Você é o cara.Feliz Natal e prazer em reve-lo.

  • após dois meses nas ruas e mais de 350 olhos vazados, para o povo chileno en lucha não há qualquer dúvida:

    hoy estamos pior, pero estamos mejor. porque antes estábamos bien pero era mentira, no como ahora que estamos mal pero es verdad.

    o que nos dilacera o coração não é a saudade de um mundo passado que jaz na fantasia da memória.

    e sim a insuportável nostalgia. esta saudade de um mundo futuro, só possível de ser concretizado por nosso sangue, suor e lágrimas.

    20-20 se aproxima decidido: nada será como antes. viveremos os momentos decisivos de nossas vidas, aqueles que darão sentido à nossa existência.
    .

  • Valeu Nassifão,mais um natal q eu te encho saco,é o q mais gosto de fazer,neste processo todo, aqui foi e é a minha válvula de escape,se não fosse esse espaço aqui eu teria explodido(é sério)e...Nassif vc é de direita ou esquerda,tô na dúvida(vixe,estraguei tudo com esta parte final do meu comentário!)

  • Como não sou religioso quero mais é que sergio moro e família, dellagnol e família, bolsonaro e família, marinhos e família,et etc se fodam todos.
    Estes criminosos não podem sair impunes da ruína que provocaram no país para benefício próprio.

  • tenho Lula como pai de coração, se nao for amor , eh um sentimento muito forte, choro muitas vezes em que ouço seus discursos que vem de dentro de sua alma, mas creio que seu nome deve ser de apoio a um novo candidato, o pais dividiu e nao se conserta de novo, quem nao gosta dele por pior que seja Bolsonaro, Aecio, Serra vai continuar votando contra, o proximo sera Moro , Doria, Witzel etc, portanto deve se achar um novo nome, poderia ser Ciro, mas nao chega nem perto do gigante Lula , feliz natal a todos

  • Infelizmente, Nassif, acredito que o período de trevas será longo... Em minha família também ocorreu essa cisão! Aí, eu me pego lembrando do Lilico, da Praça, e começo a cantarolar "tempo bom não volta mais, saudade não me deixa em paz"... Feliz Natal pra você e sua família!

  • Luís Nassif, comemoraremos esse Natal todos juntos, uma imensa família, com todas as cores, tons, idéias, e desejaremos, profundamente, a paz, a alegria de viver, a saúde a todos os homens, mulheres, meninos e meninas; nos abraçaremos, hetero, gays, lésbicas, trans, índios, negros, brancos, amarelos, verdes e vermelhos, como quem ama e quer preservar a vida daquele que ama. E preservaremos! Um abraço

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