Da Universidade do Brasil ao Diário Carioca: as origens do texto objetivo no jornalismo brasileiro de notícias, por Nilson Lage

Na época, havia só dois cursos de jornalismo no país, o da Universidade do Brasil e o da Cásper Líbero, em São Paulo.

Da Universidade do Brasil ao Diário Carioca: as origens do texto objetivo no jornalismo brasileiro de notícias

por Nilson Lage

[Os textos da coluna de Joaquim Manoel foram recuperados em uma pesquisa dos jornalistas Tales Farias e Sérgio Rodrigues, então (nos anos 1970) meus alunos de graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eu mesmo comecei minha vida profissional no Diário Carioca, com José Ramos Tinhorão, Jânio de Freitas e colegas já falecidos]

Quem lê um jornal brasileiro nos anos da Segunda Guerra Mundial repara na diferença de estilo entre os telegramas internacionais, que compunham toda ou quase toda a primeira página, e as matérias locais, redigidas à maneira antiga – estrutura narrativa, frequentemente cronológica; linguagem pernóstica e pretensão literária; muitos adjetivos e denominações estranhas ou tendenciosas. Não que os telegramas tivessem redação perfeita: traduzidos às pressas, não tinham e não têm, hoje bom texto em português; no entanto, o contraste dava para perceber que alguma coisa andava errada no jornalismo brasileiro.

Naqueles anos, Carlos Castello Branco era editor internacional do Estado de Minas e isso o familiarizou com a forma de noticiar das agências, a ponto de levá-lo a conclusões bem próximas daquelas que Pompeu formalizou em seu manual de redação, de 1950, no Diário Carioca. O próprio Pompeu trabalhou durante a guerra na Colúmbia Broadcasting System (CBS) que, antecipando-se à Voz da América, transmitia um boletim para o Brasil, lido por Luís Jartobá, às sete e meia da noite.

No entanto, Pompeu confessou que apenas compreendeu as normas do estilo jornalístico moderno em 1949, quando lecionava na Universidade do Brasil, atual UFRJ,, como assistente de Danton Jobim, Se é assim – e Pompeu sempre esteve longe de ser alguém modesto –, há uma pergunta interessante a fazer quem terá sido o Joquim Manoel que, em 1945, resumiu em colunas sucessivas no Diário, a técnica do lead?

Matou a charada o Conselheiro Acácio que respondeu: “Danton”.

Ponto para a universidade. Na época, havia só dois cursos de jornalismo no país, o da Universidade do Brasil e o da Cásper Líbero, em São Paulo.

A nacionalização da técnica

Nascida da experiência acadêmica de Danton Jobim e Pompeu de Souza – o primeiro catedrático e o segundo seu assistente, na cadeira de Técnica de Jornal e Periódico do curso de Jornalismo da Faculdade de Filosofia – a técnica de redação jornalística introduzida pelo Diário Carioca incorporou ao lead americano (com períodos um tanto mais longos, tal como os jornais ingleses da época) uma série de inovações introduzidas na linguagem literária pelos modernistas de 1922. Entre elas, a eliminação de adjetivos testemunhais e valores imprecisos, o combate aos chavões, o uso de preposições mais próximo ao da linguagem falada e a supressão, paulatina mas constante, das formas arcaicas de tratamento e referência (‘doutor’, ‘eminente jurista’, ‘sua excelência’) e do jargão jurídico dominante em uma profissão até então exercida freqüentemente por bacharéis em Direito, quando não contagiada pela vulgata de rábula de policiais e bandidos.

Foi no Diário que se eliminou o uso da palavra ‘indivíduo’ como sinônimo de ‘criminoso’ (mais ou menos como ‘suposto’ ou ‘suspeito’, exigidos hoje pelo império dos bacharéis mas que, na prática, perderam o sentido) e ‘indigitado’ (que quer dizer ‘apontado’) como substantivo, para mencionar o réu em um processo; trocou-se ‘homicídio’ por ‘assassinato’, latrocínio por ‘assassinado para roubar’, ‘humilde’ por ‘pobre’ (já que a humildade é subjetiva e a pobreza objetiva), ‘homem de cor’ por ‘negro’ ou ‘mulato’ (os censore do ‘politicamente correto’ ainda não sabiam inglês e, portanto, nada tinham contra essa denominação tão brasileira). As pessoas passaram a morar ‘na rua x’ e não ‘à rua x’; as esposas tornaram-se ‘mulheres’, os advogados deixaram de ser ‘causídicos’, os médicos ‘facultativos’, os vereadores ‘edis’, os prefeitos ‘alcaides’, as prostitutas ‘damas da noite’, as casas de dois andares ‘mansões’, os automóveis quando passam depressa ‘bólidos’ etc.

Os redatores do noticiário policial tiveram que aprender que corpos em ‘decúbito dorsal’ estão de costas, ao contrário daqueles em ‘decúbito ventral’, que estão de frente para o chão ou a cama. Tomaram contato com a tradução para a linguagem corrente de expressões da anatomia topográfica que aparecem nas fichas de hospitais: região inguinal, ínguino-crural e pubiana passaram a ser ‘virilha’; região glútea, ‘nádegas’; cintura escapular, ‘ombros’; cintura pélvica, ‘quadris’; tórax, ‘peito’; ventre, ‘barriga’; regiões occipital, frontal, occipto-frontal’ e ‘temporal’, crânio; e por aí em diante. Aos poucos, foi-se eliminando o costume de colocar entre parêntesis, após o nome de alguém envolvido em um evento policial (crime ou acidente), a idade, a nacionalidade, a residência e a cor do sujeito – dados dispensáveis e até inconvenientes numa cidade grande e o último deles, muitas vezes, impossível de precisar, na realidade étnica do Rio de Janeiro, cidada então orgulhosamente mestiça.

O ‘manual de redação’

Tudo isso começou em um dia de carnaval, em 1950, na Avenida Rio Branco, esquina de Sete de Setembro, onde ficava a sede (a primeira) do Diário Carioca. Era um tempo de esperança, em que Horácio de Carvalho Júnior parecia entusiasmado com a construção da sede própria na Praça Onze, que nunca foi bem uma praça, mas era assim cantada em muitos carnavais. Pompeu de Souza, inspirado nos ensinamentos do curso do catedrático Danton, redigiu o manual de redação do jornal – o primeiro do Brasil – baseando-se em modelos americanos e na leitura de jornais ingleses e franceses que chegavam de avião, com atraso de alguns dias.

É um texto sucinto, com normas técnicas e isento de discursos institucionais. Lá se resumiam as diretrizes do texto noticioso estabelecidas no início do Século XX nos Estados Unidos como um esforço para conter o sensacionalismo que abalava a credibilidade dos jornais. A inspiração básica dessas normas é o uso corrente na linguagem falada, quando se conta um fato recente e notável. Mas elas incluem um tanto de lógica e retórica clássica (Cícero, em especial), via tradição pragmática:

i. “Ocupar o primeiro parágrafo das notícias com (a) um resumo conciso das principais e mais recentes informações do texto, esclarecendo o maior número das seguintes perguntas relativas ao acontecimento: que?, quem?, onde?, quando?, como?, e por que? ou (b) um aspecto mais sugestivo e suscetível de interessar o leitor no acontecimento.”

ii. “Restringir aos médicos, quando no exercício da função, o título de ‘doutor’. Usar parágrafos curtos e evitar palavras desnecessárias, qualificativos, principalmente tendenciosos, e frases feitas. Só excepcionalmente usar períodos com mais de quatro linhas datilografadas. Evitar palavras chulas e expressões de gíria não incorporadas à linguagem gral, assim como termos preciosos e frases conteúdo puramente sensacionalista.”

“Era o fim do nariz de cera”, comenta Ferreira Gullar. “A tradição mandava abrir a matéria com uma história contada de maneira frouxa e prolixa. O Diário inaugurou um estilo de texto econômico, sintético. As quatro primeiras linhas davam o fundamental, as quatro seguintes complementavam a informação. Se você quisesse ler o resto, era problema seu.”

Outros manuais de redação, lançados em seguida, trouxeram normas similares. O da Tribuma da Imprensa, do polemista Carlos Lacerda, dava ênfase ao “por que” e acrescentava o “para que” entre as perguntas do lead, coisa que Aristóteles evitou em sua Lógica porque causa e consequências são presunções humanas, não constatações frequentes na natureza. Outros veículos estenderam-se em normas ortográficas, éticas e até algum provincianismo, como este do Estado de São Paulo: “Capital se escreve com letra minúscula, exceto quando se refere à cidade de São Paulo”.

Um novo padrão de linguagem

Na prática, à medida que iam sendo contratados novos redatores, saídos em regra de cursos universitários (não necessariamente de jornalismo; as ‘escolas de comunicação’ só proliferaram a partir da década de 1960) e habituados à leitura de escritores do modernismo – principalmente de Graciliano Ramos, tomado como paradigma do texto que se buscava, ‘enxuto’, informativo e sem excesso de palavras – foi-se desenvolvendo na redação uma crítica de linguagem que evoluiu para formas de construção dos parágrafos adaptada à língua portuguesa. Algumas dessas adaptações se perderam; outras incorporaram-se à linguagem jornalística, qus, aos poucos, iria enfeitar-se novamente. Mas a valorização da simplicidade e da eficiência comunicativa, esta passou a ser buscada, em geral, no português brasileiro culto padrão — pelo menos até a onda retrô recente, que afeta toda a atividade cultural.

A juventude da redação no Diário Carioca transbordava em um humor por vezes lírico, por vezes quase pornográfico. Em um dia em que um grande acidente ocorrera na cidade e o noticiário internacional dava conta do iminente perigo de guerra nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética – a primeira página cheia de notícias sombrias – , um telegrama da France Press deu a manchete do alto, em corpo claro: “Nasce uma flor no Pólo Sul” (esse é meu). Um press release do Ministério da Agricultura transformou-se em uma notícia que começava assim: “O Brasil introduzirá brevemente sua banana no Canadá, anunciou o Serviço de informação Agrícola. A banana brasileira entrará nas costas canadenses pelo porto de Vancouver…” (do Tinhorão). Não é de espantar que, de madrugada, afastadas as mesas da redação, chefes e chefiados jogassem animadas partidas de bola de meia.

A condensação do texto permitiu ao Diário Carioca editar a primeira página só com chamadas redigidas, em lugar de nela iniciar as matérias principais, ‘cortando’ – geralmente no meio de uma frase – para uma página interna. No entanto, o jornal não era diagramado, isto é, projetado em escala em papel milimetrado, com base no cálculo do tamanho dos textos. Contavam-se apenas as letras dos títulos – padronizados em uma mesma família de letras, o Bodoni, ao contrário do que era usual na época – e desenhava-se cada página em escala aproximada, numa folha de papel que também aproximadamente (o corte era feito sem rigor) equivalia ao A-4. A contagem dos caracteres dos títulos levou à adoção de alguns recursos, como os dois pontos e o ponto e vírgula; à invenção de palavras novas, como ‘desarme’ (‘desarmamento’, efetivamente, não cabia); à simplificação dos nomes, como Dutra para o presidente e Góis para o general – irreverência total naquele tempo O primeiro título com esse estilo foi dado em 2 de agosto de 1945: “Hoje: sai Dutra e entra Góis”. Tratava-se da substituição do primeiro, que iria concorrer à Presidência da República, pelo segundo, no Ministério da Guerra.

Foi daí que o Jornal do Brasil, com Amílcar de Castro, artista mineiro com presença internacional, partiu para introduzir o planejamento gráfico moderno, baseado na estética do construtivismo: delimitação de espaços de foto e texto, eliminação de fios, preferência pelas proporções próximas da ‘regra de ouro’, fundada na estética grega. Isso não seria possível sem a disciplina de texto introduzida pelo Diário.

Um certo ‘Joaquim Manuel’

As colunas assinadas por Joaquim Manoel saíram no canto direito da página 2 do Diário Carioca nos dias 4, 7, 8, 9, 10 e 11 de agosto de 1945. Com o título geral “Cartas a um foca”, traziam uma nota explicativa sempre repetida (“Num país em que todos se julgam jornalistas, eis uma pequena seção para discutir todos os dias os assuntos de jornalismo”). Sucessivamente, os títulos foram “O primeiro parágrafo”. “Elementos da notícia”, “A arte de opinar”, “Ser exato e poupado (?)”, “Primeiro a concisão” e “O que é notícia?”.

O autor cita, dia 4, o livro City Editor, de Stanley Walker (edição mais recente: 1999) e defende que a notícia comece pela informação:

“O primeiro parágrafo, em certos casos também o segundo, deve satisfazer a curiosidade do leitor e estimulá-lo a prosseguir na leitura. Isso se obtém respondendo clara e diretamente a seis perguntas latentes e fundamentais. Em inglês, são cinco W e um H: who?, what?, when?, where? e, freqüentemente, why? – ou, em certos casos, how? Em português, são pelo menos três Q? quem?, que?, quando? e onde? e, freqüentemente, por que? ou, em certos casos, como?”

No dia 7, ele analisa esses elementos da notícia, um por um, e conclui:

“Quanto a distinguir esses elementos numa notícia, separá-los, pesar o valor de cada um e lhes dar uma ordem de proeminência decrescente, meu caro, isto é – como o amor naquela ilha dos Lusíadas – ‘mais fácil experimentá-lo que julgá-lo, mas julgue quem não pode experimentá-lo.”

O terceiro texto, dia 8, trata do texto opinativo, condena as citações presunçosas e as conclusões descabidas:

“Uma informação é pura e simplesmente uma informação. De certo será impossível e mesmo inviável chegar um jornal à perfeição de dar informações rigorosamente imparciais. (…) Mas sejam ou não ‘imparciais’, elas devem ser objetivas. Não fantasiar, não fazer literatura, porque então você cometerá dois erros: não trabalhará como bom jornalista e fará uma péssima literatura.”

A coluna do dia 9 denuncia o uso de expressões vagas (‘vários’, ‘muitos’, ‘pequena multidão’) e condena os chavões comuns na imprensa da época:

“O Barão de Itararé, nos grandes tempos da Manha, inutilizou com seu riso a expressão ‘nosso querido diretor’, ridículo inominável que afetava a imprensa da época. Pois bem: até hoje muita gente não percebeu isso e continua a escrever ‘o nosso querido diretor’, como você escreve ‘ilustre progenitora’ em vez de ‘mãe’ , ‘pequena multidão’ e ‘impressionante desastre’ para dizer que a mãe de um funcionário classe J escorregou na escada e juntou gente para ajudá-la a levantar-se.”

A denúncia enfática do ‘nariz de cera’ está na coluna do dia 10. Cita:

“Aumentam dia a dia os desastres na Central, dolorosamente desgovernada pelo major Napoleão, que é um queremista ardoroso. Ainda ontem, o cargueiro P-17 …”

E pergunta:

“A notícia, onde está?”

A última coluna da série baseia-se numa estratégia didática de George Bastian (Editing the day’s news, primeira edição de 1923, livro atualizado em 1943 por Leland Davidson e reeditado pela última vez em 1956), que dava nota zero e um ao que não era e ao que era notícia. Mostra exemplos e completa:

“Mas de repente (você) há de verificar que uma vida inteiramente comum de uma família pode ser notícia – se você transformá-la numa reportagem sobre as desventuras da vida de uma família comum. (…) Mas não se meta, por enquanto. Senão, em vez de jornalismo, você estará enriquecendo apenas a fauna dos literatos fracassados.”

Redação

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