Entre o silêncio e o entulho autoritário, por Caio Henrique Lopes Ramiro

Entre o silêncio e o entulho autoritário

por Caio Henrique Lopes Ramiro[1]

“Quare siletis juristae in munere vestro?”.

A presente sentença funciona como epígrafe do livro Estado de Exceção do filósofo italiano Giorgio Agamben ─ que de maneira muito erudita reelabora o veto de silêncio lançado por Alberico Gentili (“Sileti theologi in munere alieno”) aos teólogos ─, a fim de fazer um chamado em sentido de provocação aos juristas para que se pronunciem a respeito de um tema que lhes deve ser caro, a saber: o problema do estado de exceção. Essa questão ficou durante algum tempo a margem do pensamento jurídico, uma vez que os juristas diziam não se tratar de uma problemática jurídica por excelência, mas, sim, sociológica, política ou mesmo filosófica, o que, então, autorizava o afastamento dos jurisconsultos da reflexão e do debate a esse respeito. Não obstante, Agamben nos provoca a observar a presença mesma da exceção no universo jurídico e, para tanto, retoma os termos de um “debate de gigantes” como ele caracteriza. A controvérsia observada por Agamben acerca do estado de exceção é protagonizada por Carl Schmitt e Walter Benjamin, que polemizaram em diálogo em certa medida oculto nos tempos republicanos de Weimar. No que tange a uma meditação a respeito da exceção em sentido jurídico, em que pese à controvérsia acerca da biografia de Schmitt, não parece arbitrário reconhecer que esse autor tentou, de maneira até certo ponto pioneira no universo do saber jurídico, dar conta da questão do estado de exceção de maneira sistemática, com a publicação dos primeiros textos sobre o estado de sítio, estado de guerra e ditadura a partir de 1916.

Em apertada síntese, nos textos de Benjamin e Schmitt se coloca uma discussão para além dos problemas que envolvem o clássico debate entre direito natural e direito positivo, bem como da muito importante questão que gira em torno do Guardião da Constituição, em que Carl Schmitt tem como opositor Hans Kelsen. No debate retomado por Agamben existe um enfrentamento de perspectivas teológico-políticas e leituras divergentes da relação entre messianismo e história, uma vez que Schmitt pretendia construir a partir da categoria da ditadura e na figura do ditador uma abordagem do Katechon, que representa o retardamento da vinda do anticristo na tradição católica, enquanto Benjamin identificava a vinda de uma nova era histórica com a chegada do Messias, com o argumento de que existe uma violência-poder (Gewalt) incontrolável, fora de relação com as instâncias de instituição e manutenção do poder.

O ponto fundamental, ao que parece, encontra-se justamente na possibilidade de existência de uma esfera de poder não controlada pela ordem histórica, em especial pela forma-direito (jurídica). Benjamin analisa a questão do poder instituinte e mantenedor do direito, ao que se constata uma desconfiança deste último para com o poder e ação políticas, o que leva o jurídico a reivindicar para si o monopólio do poder-violência como forma de manutenção do controle da ação política, o que estaria representado na possível resposta de Schmitt ao texto de Benjamin, contida em seu texto de 1922 Teologia Política, oportunidade em que Schmitt deixa de lado as categorias do poder constituinte e poder constituído, presentes em seu texto de 1921 sobre a Ditadura, categorias representadas nas imagens da ditadura soberana e comissária, para então se debruçar sobre a questão que envolve a soberania e o estado de exceção. Assim, pode-se reconhecer que o tema do estado de exceção percorre o pensamento e a obra de Carl Schmitt, que compreende a exceção como uma situação limite que põe em risco a ordem e justifica o direito do Estado de seu autopreservar, o que gera implicações, inclusive, na maneira como Carl Schmitt entenderá a questão do guardião da constituição.

O livro de Schmitt a respeito do guardião da Constituição vem a público no ano de 1931, texto que encontra alguns antecedentes em um primeiro trabalho publicado em 1929 na Archiv des öffentlichen Rechts (AÖR) e no livro Teoria da Constituição (Verfassungslehre) de 1928. Na sequência da publicação do livro de Carl Schmitt, no mesmo ano de 1931, Hans Kelsen leva a público sua resposta no texto Quem deve ser o guardião da Constituição? (Wer Soll Hüter der Verfassung sein?). Em linhas muito gerais, o ponto central desse debate se coloca na questão a respeito da supremacia do direito sobre a política ou da política sobre o direito, com uma reflexão acerca da imagem institucional de defesa da constituição e de quem seria o ator competente para o exercício de tal função, ou seja, se um Tribunal Constitucional (Kelsen) ou Presidente (Reichspräsident/Führer- Schmitt), titular do Poder Executivo. De tal modo, é possível verificar que o debate entre Kelsen e Schmitt se apresenta para além de seu tempo como questão de fundamental importância também para nossos dias. O problema de uma função de guarda da constituição também se faz presente nas reflexões constitucionais do Brasil, que do ponto de vista histórico, como adverte Paulo Bonavides em seu texto Evolução Constitucional do Brasil, trata-se de um país constitucional que possui muitas peculiaridades e acidentes de percurso, tendo em vista inúmeros obstáculos criados como forma de resistência de interesses comprometidos com a garantia permanente de um status quo de dominação e desigualdade, herança imposta a um constitucionalismo que se levanta das ruínas de uma sociedade escravocrata em conexão com o absolutismo europeu.

A partir do destaque de Bonavides para um país constitucional que detém em sua história peculiaridades, o professor da Universidade Federal Ceará propõe uma hipótese bastante original que é a da existência de uma crise do poder constituinte do povo, haja vista que o poder originário dos governados teve sua soberania bloqueada e golpeada na temporalidade da ação constituinte do Estado e da formação da ideia de Nação. Uma das peculiaridades sublinhadas por Bonavides diz respeito ao aparecimento no período imperial ─ oportunidade em que houve apenas uma metamorfose de uma monarquia absoluta para uma monarquia contitucional ─, da distorção da ideia institucional de um poder moderador, conceito importado do universo francês e trabalhado por pensadores e juristas como Clemond Ferrand e Benjamin Constant.  É interessante notar como a questão do poder moderador, examinada e caracterizada por Bonavides no período imperial como uma deturpação que permitiu ao Brasil conhecer sua primeira ditadura constitucional é retomada em nosso tempo, aparecendo muito especialmente nas manifestações públicas em formato de entrevistas e artigos do professor emérito da Escola Superior de Guerra Ives Gandra Martins[2], intervenções sobre o tema que ocorrem ao menos desde o ano de 2008. Não obstante, uma reflexão a respeito das posições dos juristas e das Faculdades de Direito e suas relações com períodos sombrios da história do país é algo que se apresenta de maneira bastante fecunda, bem como de fundamental importância, inclusive para que se possa melhor compreender certo silêncio conivente que se rompe de tempos em tempos a fim de recuperar a ideia romana de uma magistratura de crise, justamente a forma jurídica originária da ditadura.

Em excelente artigo publicado recentemente no Jornal GGN, o professor Roberto Bueno[3] examina algumas entrevistas do professor Gandra Martins ─ que também foram alvo da análise do professor Lênio Streck, em sua coluna na revista eletrônica Conjur[4] ─, que desde algum tempo vem apresentando uma interpretação bastante peculiar do artigo 142 da Constituição Federal, com a hipótese de que as Forças Armadas, dado um cenário de crise institucional, podem funcionar como um poder moderador que intervém nas relações institucionais. Algumas questões podem ser apresentadas, como o foram, a essa interpretação. A primeira peculiaridade está em retomar a imagem institucional de uma ideia de poder (moderador) distorcida no Brasil, que do ponto de vista do debate constitucional mais contemporâneo (Kelsen X Schmitt) acerca da guarda da Constituição sequer se encontra presente. Ainda, parece-nos interessante observar, para lembrar de Herbert Hart, a textura aberta do dispositivo normativo do artigo 142 da Constituição Federal[5], em especial no que tange a ideias como garantia dos poderes constitucionais e da ordem, com a conexão de tais expressões a uma não menos aberta como a de crise.

O conceito de crise deriva do vocábulo grego krinein, que segundo Giorgio Agamben, diz respeito ao ato de julgar, dessa forma, krisis (também krino) etimologicamente assume o significado de separar, julgar e de-cidir, ou seja, toma a forma de um momento decisivo, que em sentido teológico-político é o do dia do Juízo, em que se terá de tomar uma decisão fundamental. É justamente no limbo terminológico em que se perde a teoria do direito, pois a decisão do soberano é que determinará quais são as situações extraordinárias ou casos-limite, que manifestam-se de forma factual. De tal modo, no intuito de prever todas as situações fáticas, em especial no anseio de positivar a exceção, a forma jurídica se vale de normas de textura aberta, tais como: regime extraordinário, situação-limite, segurança e ordem públicas, por exemplo[6].

O que se mostra importante sublinhar é a presença da lógica paradoxal da soberania que se apresenta na relação de exclusão includente, assim, o estado de exceção pode ser concebido como remédio ou autodefesa democrática, como o compreendia Miguel Reale, bem como desejado como uma autodefesa do Estado, na perspectiva de Carl Schmitt e de alguns juristas nazistas.

Assim, parece que uma interpretação do artigo 142 da Constituição Federal que pretende retomar a ideia de um poder moderador, caracterizado por Paulo Bonavides como “a programação deliberada da ditadura”, não é razoável e não está em busca do fortalecimento da democracia, mas, sim, recoloca o país na via de uma profissão de fé na concentração de poderes e na negação de toda herança do constitucionalismo que eclode no período das luzes, com a defesa do horizonte sombrio da ideia, não de um Guardião da Constituição, mas, sim de um seu Senhor, dessa maneira, a perspectiva de teóricos que meditam a respeito do estado de exceção se apresenta como uma fecunda hipótese de pesquisa a respeito do silêncio dos juristas acerca de ditaduras, bem como uma possibilidade de crítica aos fundamentos da dogmática jurídica com o exame do entulho autoritário presente no documento constitucional de 1988.

[1] Professor no curso de Direito do Centro Universitário Central Paulista (UNICEP). Integrante do grupo de pesquisa Ética, política e religião: questões de fundamentação, vinculado ao programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).

[2] Em recente publicação ver: https://gandramartins.adv.br/artigo/ives-gandra-diz-que-atuacao-do-stf-pode-fazer-forcas-armadas-intervirem-no-pais/.

[3] Ver Bueno: https://jornalggn.com.br/artigos/aproximacoes-sucessivas-a-ditadura-e-o-constitucionalismo-simca-chambord-1964-por-roberto-bueno/.

[4] Ver Streck: https://www.conjur.com.br/2020-mai-21/senso-incomum-ives-gandra-errado-artigo-142-nao-permite-intervencao-militar.

[5] Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

[6] A partir desse ponto, o texto é uma versão algo modificada de nosso livro Estado Democrático de Direito e Estado de Exceção: fronteiras da racionalidade jurídica. Mackenzie. 2016

Redação

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